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Jornal 40: Novembro de 2010


17 de novembro de 2010
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Dilma Governará Para Quem?

O crescimento econômico da ordem de 7% em pleno ano de eleições, os programas sociais principalmente no Norte e Nordeste, as descobertas do Pré- Sal e a promessa de desenvolvimento do país foram, sem dúvida, os fatores estruturais mais importantes para a vitória petista.

A combinação desses fatores com uma imensa propaganda ideológica transmitiram a idéia de um país que estaria no caminho certo para se tornar uma potência mundial e reduzir os gravíssimos problemas sociais.

Por outro lado, Serra e o PSDB/DEM, desde o início tiveram dificuldade em emplacar um projeto próprio, alternativo ao do PT. Isso porque em seus oito anos de governo, o PT na verdade assumiu o programa do PSDB e, nos aspectos essenciais, deu continuidade ao governo FHC. As diferenças foram na forma, nos ritmos e no peso um pouco maior ou menor do estado na economia.

Por isso, também na campanha havia muito mais semelhanças do que diferenças entre os dois candidatos. Claro que essa identidade maior entre os dois blocos em disputa ajudava muito mais o PT/PMDB, que já estava no governo, e então o PSDB teve que buscar a diferenciação de alguma forma. Ao não poder se inclinar para a esquerda, sua saída foi buscar apoio mais à direita.

Campanhas difamatórias em torno da manutenção da criminalização do aborto, de menosprezo pela população pobre, de ligação de Dilma com a luta armada, etc, feitas pela Internet ou por panfletos, e a farsa montada no episódio da bolinha de papel tiveram o efeito de acirrar uma polarização. Os trabalhadores, que já viam Serra com enorme desconfiança, reagiram inclinando-se definitivamente por Dilma. Sem um projeto alternativo, identificado com as privatizações diretas, com os cortes sociais, com a truculência junto aos movimentos sociais e por último com os setores mais de direita, o PSDB foi derrotado.

Também é verdade que a pressão sobre o PT já a partir do final do 1º turno fez com que esse partido se comprometesse ainda mais com o programa da direita. Dilma não hesitou em dizer que manterá a legislação que criminaliza o aborto, ao invés de tratá-lo como um problema social e questão de saúde pública.

Mais do que manter a política econômica geral herdada, Dilma também prometeu ir além realizando as Reformas e ajustes que o capital necessita para seguir operando no Brasil a taxas altas de lucro.

Desde o início da campanha, um setor importante da burguesia já mostrava sua preferência por Dilma. Segundo os dados mais recentes de declaração das campanhas (06/09/2010), a campanha de Dilma havia arrecadado R$ 39,5 milhões enquanto a de Serra, R$ 26 milhões (http://eleicoes.uol.com.br).

Ao obter mais compromissos do PT, a maior parte da burguesia amenizou o tom nos últimos dias, entendendo que a forma de governo do PT ainda é muito proveitosa para o capital, apesar das críticas aos gastos de estado e com a burocracia. O fato de o PT representar uma burocracia sindical e política que gerencia fundos de pensões e estatais dá a esse partido a condição de atuar como administrador dos interesses do capital de conjunto no Brasil, arbitrando entre as várias frações da burguesia e entre a burguesia e a classe trabalhadora. Essa característica própria das burocracias é fundamental, principalmente quando se trata de gerenciar crises e retiradas de direitos dos trabalhadores.

Por isso, a burguesia ainda não teve a necessidade de descartar o PT como gestor do estado, mas deixou claro quem são os donos do capital e para quem o PT deve prestar contas. Como parte do Bloco PT/PMDB, a eleição pelo PSB de 6 governadores, 35 deputados federais e 4 senadores demonstra que a burguesia trabalha outras possibilidades futuras para o caso de o governo Dilma não der conta de segurar o movimento social.

 

Contradições na economia se acumulam…

A situação de crescimento econômico no Brasil, em contraste com a manutenção da recessão ou lento crescimento nos países centrais, passou a (falsa) idéia de que o PT e Lula possuem características quase mágicas para administrar e combater a crise. Mas isso não é verdade. Na base desse crescimento atual combinam-se fatores problemáticos como a precarização e informalização do trabalho, a desoneração de impostos dos empresários, o aumento espantoso do endividamento das famílias e do estado.

Como expressão disso, o volume total de crédito deve atingir 48,5% do PIB ao final do ano – um crescimento de 20% em comparação a 2009. O volume total de crédito ultrapassou R$ 1,5 trilhão no primeiro semestre.

Dados da Abecip (Associação Brasileira das Entidades de Crédito Imobiliário e Poupança) apontam que o montante das operações de crédito imobiliário contratado no primeiro quadrimestre de 2010 foi 74% superior em relação ao do mesmo período de 2009, e 90% maior comparado ao de 2008. (www.folha.com.br) No entanto, essa contradição entre o consumo baseado no crédito, combinado com as taxas de juros mais altas do mundo, têm levado ao aumento da Dívida Pública. A Dívida Pública reconhecida oficialmente chegará a R$ 1,73 trilhão em 2010. Porém, alguns economistas afirmam que, se somarmos a parte da Dívida encoberta por manobras contábeis, o endividamento bruto do governo chega a R$ 2,05 trilhões! Apenas em 2010, foram pagos R$ 160 bilhões de juros dessa Dívida: quase 14 vezes mais do que o consumido pelo Bolsa Família, que atende a mais de 11 milhões de famílias. (www.correiobraziliense.com.br).

Outro elemento a ser levado em consideração são os resultados cada vez piores da balança comercial – saldo entre exportações e importações. Com a desvalorização do dólar frente às várias moedas, inclusive ao real, devido à gigantesca emissão de dólares pelos EUA, desde que a crise se manifestou, os resultados das exportações brasileiras têm seguido uma curva descendente, ao contrário das importações. A patronal cobra medidas protecionistas de curto prazo e ao mesmo tempo o corte dos direitos trabalhistas, de modo que as empresas se tornem mais competitivas no mercado mundial.

 

O Estado a Serviço do Capital

A burguesia e o Agronegócio agora cobram seu quinhão, através da isenção de impostos sobre insumos e mercadorias, assim como empréstimos a juros baixos e prazos indefinidos. Além disso, exigem que o estado banque as chamadas obras de infraestrutura como rodovias, ferrovias e modernização dos portos, que têm como objetivo baratear a produção e o movimento das mercadorias.

Resumindo, o capital de conjunto quer que o estado assuma diretamente parte de seus custos de produção, de modo a maximizar seus lucros.

Além disso, o capital exige a liberação para a exploração das grandes áreas florestais antes preservadas. Ao serem alvos da exploração pelas monoculturas, essas áreas irão simplesmente desaparecer ao som das motosserras, sem que haja qualquer compromisso de reflorestamento.

A declaração de Dilma em seu discurso de que vai manter todos os contratos não tem outro sentido senão o respeito total ao pagamento dos Juros da Dívida Pública aos agiotas internacionais.

Ao defender acima de tudo os interesses do capital, que atravessa uma crise em nível mundial e precisa da intervenção direta do estado para sua sobrevivência, o governo Dilma será já em seu início um governo de ataques aos trabalhadores, um governo certamente mais duro do que o governo Lula em seus dois últimos anos.

Por outro lado, por mais que o PSDB tenha saído derrotado da disputa nacional, terá o governo dos estados mais importantes do país, que produzem 53% do PIB. Assim, teremos provavelmente uma divisão de tarefas entre esses dois blocos políticos. Por mais que se acusem, estados e União aplicarão em sintonia a mesma política de uso da máquina pública em prol dos interesses do capital e contra os trabalhadores. A ordem geral será cortar gastos dos serviços públicos e, em particular, aumentar a pressão e os ataques sobre os servidores públicos. Ao mesmo tempo, haverá a cobrança de que os serviços públicos atendam mais e melhor devido à necessidade de que essa esfera assuma responsabilidades e atribuições que as famílias e outras instituições não estão mais tendo condições de assumir. Aumentará o ritmo de trabalho, bem como as cobranças de resultados – batizadas pelo nome de meritocracia – no serviço público, que foram compromissos firmados pela presidenta em seu discurso logo após se saber eleita.

Assim, por mais que os trabalhadores nesse momento sintam um certo alívio pela derrota de Serra e do PSDB, chamamos a atenção para o fato de que o governo de Dilma será um governo burguês clássico, nem sequer um governo de frente popular do qual se possa esperar qualquer concessão importante para os trabalhadores.

 

A Agenda das Contra-Reformas no Horizonte

Dentro desse quadro, os trabalhadores devem se preparar para enfrentar ao longo do mandato de Dilma um conjunto de reformas que não foram apresentadas nem discutidas durante a campanha presidencial – pois são extremamente antipopulares -, mas que fazem parte do projeto de ambas as candidaturas.

A primeira medida do governo ainda neste ano deve ser aprovar o modelo de partilha da exploração do Pré-Sal, em que a União ficará com 30% das receitas e as empresas privadas com 70%. Ou seja, por mais que durante a campanha Dilma tenha falado em manter o controle sobre as reservas, na prática o modelo de partilha do PT pretende entregar a riqueza do país às transnacionais, que irão remeter os lucros para suas matrizes nos países imperialistas.

Ao longo de seu mandato, o novo governo deve encaminhar as Reformas da Previdência, Tributária, Trabalhista e Política. O mais provável é que busque implementá-las aos poucos e de forma disfarçada – na intenção de evitar confrontos com os movimentos. Assim a luta contras Reformas, seus disfarces e suas justificativas ideológicas será uma tarefa fundamental para os trabalhadores e a vanguarda dos movimentos.

Quanto à Reforma da Previdência, a Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda, comandada por Nelson Barbosa, já trabalha uma proposta a ser apresentada ao Congresso por Dilma Rousseff. (http://www.fenafisco.org.br). Não precisamos dizer que seu objetivo é dificultar a aposentadoria dos trabalhadores e diminuir os gastos do estado.

Quando Dilma fala também em desonerar um conjunto de atividades do capital, e em particular o investimento e a folha de pagamento, trata-se da Reforma Tributária já em curso. Qual o objetivo disso? Obviamente é aumentar a lucratividade das empresas, ao mesmo tempo em que o estado abre mão de arrecadar das empresas e portanto tem que aumentar a arrecadação dos trabalhadores e da classe média.

A flexibilização da legislação trabalhista pretende instaurar a “livre negociação” entre empresas e trabalhadores. Na prática, isto levará à perda de direitos na maioria dos ramos, pois com a ameaça do desemprego e a colaboração das direções sindicais pelegas, os patrões poderão impor a perda dos direitos aos trabalhadores a seu bel-prazer.

Já a Reforma Política visa acabar com o espaço já bastante minguado dos pequenos partidos de esquerda, pois pretende criar critérios impossíveis de serem cumpridos para o reconhecimento desses partidos.

Ao mesmo tempo em que se faz a apologia das eleições burguesas como sendo “a festa da democracia”, também se pretende reduzir cada vez mais o horizonte de opções políticas de questionamento e organização por parte dos trabalhadores. Por trás do clima econômico imediato de festividade, prepararam-se o agravamento das condições reais de vida dos trabalhadores e o conseqüente aumento da insatisfação social à qual o sistema pretende tratar cada vez mais com armas ideológicas e de contenção, mas também de repressão, através das escolas de tempo integral que muitas vezes viram semi-presídios dos jovens, das ocupações militares nas favelas, ou da prisão de líderes e ativistas.

Assim, aos trabalhadores cabe a preparação para enfrentarmos e resistirmos a um processo de ataque às nossas condições de vida e maior instabilidade. Mesmo que ainda demore algum tempo, os mecanismos que hoje dão sustentação à economia brasileira e ao seu crescimento – hoje festejado pelo governo, pelo empresariado e meios de comunicação – fundam-se em grande medida sobre alicerces complicados e em última instância explosivos como o endividamento desenfreado das famílias e empresas, o aumento da Dívida Pública e também a perda do mínimo de garantias do trabalhador, que passa a estar totalmente dependente das flutuações de mercado. Uma vez porém que se esgote esse fôlego, os efeitos da crise se farão novamente sentir, e com maior intensidade.

 

A crise de alternativas socialistas e a esquerda

O problema estrutural que os trabalhadores enfrentam é a ausência de uma alternativa socialista real que possa disputar a consciência das massas no sentido de um outro projeto de sociedade, em ruptura com a lógica do lucro. Essa é também a maior defasagem da esquerda.

As principais correntes – PSTU e PSOL – seguem presas a uma lógica imediatista de atuação, sem realizar de fato um trabalho político junto às estruturas de base, e sem fazer uma crítica profunda dos fundamentos que estão por trás das políticas do capital que agora são abertamente assumidas e implementadas pelo PT e pelas direções das centrais como a CUT e Força Sindical.

Não se faz um trabalho sistemático junto aos pólos fundamentais da classe trabalhadora que, dessa forma, fica ainda mais à mercê da propaganda e dos meios de comunicação burgueses.

Os principais partidos e organizações de esquerda sequer utilizam sua influência nos sindicatos para realizar esse trabalho de disputa política e ideológica. O sindicalismo praticado pela esquerda é marcado pelo imediatismo e pela falta de discussões mais profundas com os trabalhadores. Não se faz um trabalho de ligar os aspectos imediatos aos estruturais e de demonstrar para os trabalhadores que o problema maior é a lógica capitalista como um todo, e não apenas alguns de seus aspectos, que é essa lógica que deve ser quebrada, se quisermos realmente encontrar uma saída real e equilibrada para a situação dos trabalhadores.

 

Por um Movimento Político dos Trabalhadores

Outro fator de dificuldade na esquerda é a sua divisão, o fato de que as principais correntes – tanto o PSTU quanto o PSOL – colocam a disputa pela hegemonia no movimento acima das necessidades do próprio movimento. As próprias correntes acabam impedindo que se dêem os passos mais básicos no sentido da unidade, uma condição mínima, mas muito necessária para o desenvolvimento dessa consciência socialista entre as massas citadas acima.

Impossível não citar o fato de cada um dos principais partidos – PCB, PSOL e PSTU – ter deixado ruir a possibilidade de uma Frente de Esquerda dos Trabalhadores nas eleições. O mesmo se deu no CONCLAT, com a ruptura do difícil e tortuoso processo de unificação sindical que vinha se formando para a construção de uma única central de luta que reuniria a CONLUTAS e a INTERSINDICAL.

Ambos os processos foram interrompidos e inviabilizados, pois as direções de cada corrente impuseram cada qual suas condições, por fora da realidade e da vontade das bases e dos movimentos dos trabalhadores que queriam e precisavam mais do que tudo da unidade na luta para fazer frente à ofensiva do capitalismo.

Assim, mantém-se mais atual do que nunca a necessidade defendida continuamente pelo Espaço Socialista da construção de um Movimento Político dos Trabalhadores, a partir das discussões e organização na base dos movimentos, que seja uma forma de juntar os trabalhadores, organizações e ativistas, com fóruns democráticos de discussão e deliberação, no sentido de começar a corrigir a grave defasagem da alternativa socialista entre os trabalhadores e os demais explorados e oprimidos.

O governo de Dilma, no marco da crise mundial do capitalismo, irá colocar novos desafios para os trabalhadores, que só conseguirão responder à altura se desenvolverem uma alternativa prática e ideológica ao capitalismo. Para isso, será preciso não apenas novas lutas, mas também uma renovação no campo da esquerda.

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Para acabar com o racismo é preciso superar o capitalismo

O racismo é um problema social e histórico. Ele não existe porque os negros possuam qualquer “característica de inferioridade” ou os brancos sejam “naturalmente” opressores.

O racismo está ligado à exploração. As classes dominantes sempre buscaram aproveitar-se das diferenças de cor, gênero, nacionalidade, região, etc, para construir assim uma hierarquia na exploração. Essa hierarquia ao mesmo tempo divide os explorados em níveis diferentes de exploração (mais e menos explorados) e também justifica que uns sejam mais explorados por… serem negros.

No Brasil, conforme o capitalismo se estabelecia como sistema econômico, o racismo do período escravista foi assimilado, pois isso permitia aos empresários aplicar níveis mais intensos de exploração sobre os negros e as mulheres negras em particular, embora desde o inicio tivesse havido inúmeras formas de resistência. No topo dessa hierarquia de exploração encontram-se a burguesia e seus agentes: o Estado, a mídia, a Igreja, setores da classe mais alta que incorporam os interesses da burguesia.

Assim, a conclusão mais importante que tiramos, mas que não é de forma alguma unânime, é que para acabar de vez com o racismo é preciso acabar também com o capitalismo e com toda forma de exploração do homem pelo homem.

As lutas por mudanças mínimas, mesmo dentro do capitalismo, no sentido de questionar e enfrentar o racismo e incorporar a população negra são fundamentais, mas devem ser sempre consideradas como paliativos, que ainda não são a saída para o problema do racismo. A luta pela libertação real do povo negro é parte fundamental da luta da classe trabalhadora contra a exploração capitalista, e portanto o racismo deve ser considerado um problema a ser discutido e enfrentado por todos os trabalhadores, no sentido de unificar a nossa classe, com as suas características e diversidades, contra a burguesia que, por sua vez, também tem negros em seu meio.

Muitas correntes políticas ou acadêmicas, ao terem um enfoque apenas limitado à questão racial, sem um conteúdo de classe, sem abordá-la como parte da luta geral dos trabalhadores, acabam caindo no jogo da burguesia, que muitas vezes realça a opressão de raça apenas para silenciar sobre a dominação de classe, deixando a estrutura social capitalista livre do combate prático-crítico e livre para aprofundar a desigualdade e a exploração.

De fato, nos dias atuais é ainda mais difícil concebermos um movimento de libertação real do povo negro do racismo, sem que se enfrentem os limites do sistema capitalista – a lógica do lucro.

O sistema capitalista, que sobrevive cada vez mais da ajuda externa do estado, não reserva possibilidades de melhorias efetivas e sustentáveis para a maioria da população negra. O máximo possível dentro dos limites da lucratividade do capital é a ascensão de uma pequena elite negra, ao mesmo tempo em que a grande maioria permanece exatamente como estava antes.

 

Unir trabalhadores negros e brancos pela emancipação geral

Impor um conjunto de políticas efetivas de reparação para os negros requer, portanto, esforços para ligar a luta histórica dos negros no Brasil como parte da luta do proletariado por sua emancipação, pois o negro de hoje está também inserido no mercado de trabalho, e justamente em posições mais exploradas. Assim, a luta racial deve assumir também um caráter de classe e ter como preocupação a identificação dos verdadeiros aliados e inimigos.

Não partir do referencial de luta anticapitalista é o principal limite ao qual estão presos aqueles setores que hoje se acomodam e aplaudem as políticas governamentais, ao mesmo tempo se calando para o fato de que, este mesmo governo que pede paciência aos negros é também o que cede bilhões aos banqueiros e empresários todos os anos, mantendo justamente a exclusão da maioria.

Políticas eficazes de reparação do racismo só poderão ser conquistadas enfrentando-se os patrões e seus agentes: os governos de plantão.

A bandeira das cotas proporcionais deve ser levantada, juntamente com outras políticas de reparação, e com a luta dos demais trabalhadores por um programa geral que responda não apenas à questão de raça, mas também à questão de classe. Esse programa unitário de trabalhadores negros e brancos deve apontar para a ruptura com a lógica do capital e para que os explorados – brancos e negros – se unam para estabelecer uma forma de poder da classe trabalhadora, voltada para enfrentar os grandes problemas sociais.

Essa unidade tão necessária entre trabalhadores negros e brancos em sua diversidade – e que não será facilmente alcançada, por todos os preconceitos e modelos que nos foram impostos no decorrer de séculos – é um desafio que temos que ser capazes de realizar na prática das lutas e de um programa global.

Nesse sentido, a proposta de cotas deve estar inserida numa proposta mais geral de lutas do conjunto da classe trabalhadora por emprego, moradia, saúde, educação digna e de qualidade. Que essas questões imediatas sejam impostas mediante a luta direta da classe como um todo. Que os resultados obtidos possam ser estabelecidos a partir de cotas que reconheçam as desigualdades hoje existentes e, ao mesmo tempo, lutem para superá-las. É preciso que a aliança entre os trabalhadores negros e brancos preserve os direitos específicos de cada setor, para que possamos enfrentar e vencer o capital e todas as formas de exploração e opressão da humanidade.

Assim, por exemplo, a reivindicação de que os empregos gerados pela luta sejam divididos em cotas proporcionais, deve vir combinada com a luta pela redução da jornada de trabalho sem redução salarial, de modo que todos os trabalhadores se beneficiem desta mudança, através da geração dos milhões de empregos necessários. Nas universidades públicas, do mesmo modo, a luta pelas cotas deve se juntar à luta por mais vagas para que todos possam estudar.

É evidente que tudo isso só poderá ser imposto mediante a luta contra os interesses capitalistas e, em última instância, levará a uma ruptura do próprio sistema, ao questionar qual classe deve ter o poder na sociedade, se os trabalhadores (negros e brancos) ou a burguesia.

Somente uma sociedade socialista no profundo sentido da palavra – de socializar os meios de produção sob o controle e a serviço dos trabalhadores e da humanidade – é que pode colocar um fim à exploração e à desigualdade social entre os seres humanos, inaugurando um novo período na história humana onde tudo seja decidido democraticamente, respeitando-se as diferenças de gênero e raça, como diferenças físicas e não sociais.

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A revolução dos “jacobinos negros” no Haiti

É parte fundamental da luta dos trabalhadores negros a tarefa de reconstituir a história de resistência contra os séculos de escravidão, exploração e opressão. Ao contrário do que é normalmente veiculado, os negros jamais aceitaram passivamente o processo de serem raptados na África, vendidos como escravos, tratados como animais e explorados durante séculos nas Américas. Inúmeras formas de resistência foram praticadas, desde as saídas individuais desesperadas, como os suicídios, fugas, assassinato de capatazes, senhores e autoridades, saídas “por dentro do sistema” como a compra da liberdade através de cartas de alforria, até as formas coletivas, como as rebeliões, fugas em massa, quilombos e a revivescência das religiões, dos costumes e da cultura africanas.

No Brasil subsistem inúmeras comunidades de remanescentes quilombolas, herdeiros da resistência de seus ancestrais contra a escravidão. O mais famoso episódio de resistência contra a escravidão e também o mais atípico dos quilombos, pelo seu tamanho, longa duração e heroísmo de sua guerra contra os escravistas, foi o quilombo dos Palmares (1597-1695), cuja memória do principal líder, Zumbi, é celebrada no dia 20 de Novembro, dia nacional da consciência negra.

Fora do Brasil, um dos mais marcantes episódios da luta dos negros foi a revolução haitiana. O jornalista e militante negro Cyril Lionel Robert James (1901-1989), nascido no Caribe e tendo vivido a maior parte na Inglaterra e Estados Unidos, publicou em 1938 um clássico da historiografia marxista intitulado “Os Jacobinos Negros”, que narra a história da luta dos negros haitianos contra a escravidão e o domínio colonial e a trajetória de seus principais líderes. A obra de C.L.R. James faz uma análise rigorosamente marxista e científica das classes e frações de classes da sociedade haitiana, suas aspirações e ideologias, e suas relações com o mundo colonial, no momento em que o capitalismo experimentava a Revolução Industrial na Inglaterra e a Revolução Francesa.

 

Breve história do Haiti

O Haiti se localiza na parte ocidental da ilha de São Domingos (inicialmente batizada de Hispaniola por Colombo), com uma área territorial coincidentemente quase idêntica ao do Estado de Alagoas, em que existiu o quilombo de Palmares. A parte oriental forma a República Dominicana. A ilha de São Domingos foi inicialmente uma colônia espanhola, onde já em 1560, no primeiro engenho de cana de açúcar, de propriedade do governador Diego Colombo, filho do navegador, aconteceu a primeira revolta de escravos. Depois do massacre dos povos originários, de etnia arauaque e taino, as mesmas que habitavam o restante das ilhas do mar do Caribe, estabeleceu-se uma próspera colônia de “plantation”, especializada na produção de cana de açúcar, com base no trabalho escravo de negros africanos.

Em fins do século XVII, piratas franceses, em sua maioria originários da região da Normandia, começam a se estabelecer na parte ocidental de São Domingos, a partir de suas bases na lendária ilha de Tortuga, espécie de capital da pirataria no Atlântico. A língua hoje falada no Haiti, o “créole”, tem origem em grande parte no dialeto normando. Em 1697 foi assinado um tratado entre as coroas da Espanha e da França, reconhecendo a soberania dos franceses sobre o território que mais tarde constituiria o Haiti.

Ao longo do século XVIII a riqueza da colônia francesa cresce enormemente, a ponto de se tornar responsável por dois terços do comércio exterior francês. Os proprietários de São Domingos acumulam uma riqueza gigantesca, comparável a dos nobres na metrópole. Por volta da década de 1790, a colônia francesa contava com uma população de cerca de 500 mil escravos negros, contra pouco mais de 30 mil brancos. Havia também alguns milhares de negros libertos, mulatos e mestiços, que chegaram a gozar dos direitos de homens livres, e também do direito de possuir por sua vez propriedades e escravos. Quando eclode a Revolução em 1789, os proprietários na colônia, brancos e mulatos, vêem a oportunidade da independência em relação ao domínio francês. Entretanto, os escravos tinham outros planos…

 

A revolta dos escravos e seus líderes

Um dos traços característicos do regime escravista na São Domingos francesa era a crueldade, traço bastante ressaltado por James. Os constantes abusos, maus-tratos, castigos, torturas e mortes de escravos criavam um clima de ódio e revolta explosivos. Quando o governo revolucionário na metrópole proclama a libertação dos escravos nas colônias, os proprietários estavam mais preocupados com suas rivalidades internas, pois os mulatos queriam reaver os direitos que lhes haviam sido recentemente cassados, o que os brancos tentavam impedir. Os negros se aproveitaram disso e iniciaram uma rebelião, em 1791. O levante foi coordenado a partir dos rituais de vudu, cujos batuques ecoavam pelas florestas, unindo os negros nas senzalas aos seus irmãos nos quilombos, percorrendo toda a colônia e preparando o momento do ataque.

A primeira fase da revolução foi caótica, com os negros atacando repentinamente os brancos, assassinando os senhores e suas famílias, incendiando as propriedades e as cidades. Em meio a esse caos, os ingleses e os espanhóis se aproveitam para invadir partes da colônia francesa. É então que, em 1794, emerge a figura de Toussaint Breda, que depois adotaria o sobrenome de L’Ouverture, um escravo de mais de 40 anos, que trabalhava como secretário de um proprietário mais esclarecido (o qual inclusive salvou do massacre). Toussaint, homem de inteligência extraordinária (James o compara a Napoleão), foi alfabetizado em francês erudito e latim, tendo a oportunidade de ler a obra do abade Raynal sobre a escravidão no Caribe e os comentários de Júlio César sobre a guerra contra os gauleses.

Com este cabedal, e também o conhecimento dos ideais iluministas que guiaram a primeira fase da Revolução Francesa, propôs-se a liderar um exército de negros e constituir na colônia um novo estado, irmanado à França revolucionária. O ideal de Toussaint era um país unido à França sob um regime democrático e politicamente igualitário, em que brancos e negros teriam direitos iguais. Com este ideal, ele chegou a ter a aliança de Rigaud, líder dos mulatos, com o qual posteriormente rompeu e derrotou em batalha. Além de líder militar, Toussaint era também político e administrador competente, capaz de conter os excessos vingança contra os brancos, conseguir a cooperação dos proprietários, atender as reivindicações dos negros, que deixaram de ser escravos, e negociar com outros países, como a Inglaterra e os Estados Unidos.

 

Desfecho da revolução

A narrativa de James é uma defesa apaixonada da luta dos explorados e oprimidos, mas não deixa de apontar, de maneira implacável, os erros e limites de seus líderes, de forma a servir de lição para as lutas dos trabalhadores em vários outros cenários. Toussaint pretendia manter a economia haitiana em funcionamento, e para isso não encontrou outra forma que não forçar os ex-escravos a continuar trabalhando nas fazendas e engenhos, sob direção dos proprietários remanescentes. Ele jamais deixou de acreditar na França e sua revolução, sem perceber que, sob Napoleão, o regime caminhava para a estabilização e o estancamento das conquistas revolucionárias.

Em 1801, Napoleão enviou seu próprio cunhado a São Domingos, o general Leclerc, no comando de um exército que chegou a ter 34 mil soldados. Inquieto com a ameaça de retorno à escravidão, o sobrinho de Toussaint, chamado Moïse, comanda um ataque contra os brancos, pelo qual foi punido pelo tio. A punição de Moïse criou um abismo de desconfiança entre Toussaint e os negros, que passaram a achar que seu líder trabalhava pela restauração da escravidão. Toussaint acabou preso por Leclerc e enviado para a França, morrendo no cárcere em 1803, sem jamais ser ouvido por Napoleão, a quem tentaria convencer da necessidade de manter a liberdade dos negros como condição para manter a fidelidade da colônia à França.

Enquanto isso, em São Domingos, os tenentes de Toussaint que permaneceram no comanndo do exército por ele formado, Dessalines, Christophe, Clairveaux, Maurepas, Pétion, conduzem uma guerra implacável contra Leclerc, que acabaria morrendo de febre em 1803, assim como parte de seu exército. A vitória final dos negros conduz ao massacre dos brancos e proprietários que restaram. A independência é proclamada em 1804 por Dessalines e o país adota o nome de Haiti, que na língua indígena significa “lugar montanhoso”.

 

A história do Haiti até os dias de hoje

Logo após a independência, o Haiti se viu cercado por um isolamento internacional comparável somente ao bloqueio que hoje pesa sobre Cuba. O exemplo da revolução dos escravos, terrível para os senhores de todo o continente, precisava ser combatido e cercado a qualquer custo, para garantir a paz dos dominadores. A economia regrediu para uma agricultura de subsistência e a dívida para com a França sugou as riquezas do país durante décadas. Em 1913 o país foi invadido por fuzileiros estadunidenses. Entre 1957 e 1986 viveu sob a ditadura de François Duvalier, apelidado “Papa Doc”, e seu filho Claude Duvalier, o “Baby Doc”, que governavam por meio dos esquadrões da morte chamados “Tonton Macoutes”. Um dos líderes da resistência à ditadura, o padre Jean-Bertrand Aristide, foi presidente do país duas vezes desde então. Tendo por fim capitulado ao neoliberalismo, acabou mesmo assim removido do poder pelos Estados Unidos, em 2004.

Desde então, o país vive sob ocupação estrangeira, com uma tropa da ONU liderada pelo Brasil, que cumpre assim vergonhosamente o papel de braço armado do imperialismo para oprimir a população miserável do Haiti e impedir suas lutas. No início de 2010 o Haiti foi vítima de um fortíssimo terremoto, que destruiu a já precária infra-estrutura do país, e em outubro deste ano alastrou-se uma epidemia de cólera. O país mais pobre do hemisfério, o primeiro em que os trabalhadores protagonizaram uma revolução que levaria à independência, se ressente da falta de novos jacobinos e revolucionários que liderem seu povo contra a dominação.

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O trabalho escravo no brasil: a acumulação para a metrópole e a resistência dos trabalhadores negros

O objetivo desse texto é abordar brevemente duas questões relativas ao trabalho escravo empregado no que hoje chamamos de Brasil: a utilização majoritária da renda auferida com o sistema escravista ( venda de escravos, produção desse trabalho compulsório) para a acumulação na Europa – portanto, não se destinava a formação de uma burguesia interna; e a relação subjetiva do trabalhador escravo negro com a escravidão.

Partimos da compreensão de que a escravidão por aqui era parte do que o marxismo chama de acumulação primitiva do capital, ou seja, a produção derivada do trabalho escravo não era destinada ao mercado interno, mas ao mercado europeu, servia a acumulação para a metrópole. A combinação de venda de escravos, trabalho escravo e produção voltada para a exportação formam os elementos essenciais desse processo de acumulação.

A acumulação com o lucro resultante do comércio de escravos era fabulosa, constituindo-se como uma atividade econômica das mais lucrativas. Para se ter uma idéia o escravo negro era um dos principais produtos de importação do Brasil no final século XVIII: “O ramo mais importante do comércio de importação é, contudo, o tráfico de escravos que nos vinham da costa de África: representa ele mais de uma quarta parte do valor total da importação, ou seja, no período 1796-1804, acima de 10.000.000 de cruzados, quando o resto não alcançava 30.000.000”. Prado Júnior (História econômica do Brasil, p.116). Ainda segundo caio Prado Júnior, no final do século XVIII e início do XIX, o total de escravos que desembarcavam por aqui era cerca de 40.000 por ano. Dá para se ter idéia do potencial do aumento do capital de comerciantes que se dedicavam ao tráfico negreiro.

Em relação às taxas de lucro do que se produz com a utilização do trabalho escravo dá para supor que eram elevadíssimas. O fato de os escravos serem submetidos às piores condições de trabalho e de subsistência faz com que o tempo do trabalho destinado à satisfação de suas necessidades (tempo de trabalho necessário) seja reduzido a um curto intervalo de tempo e consequentemente o tempo de trabalho excedente constitui quase a totalidade de sua jornada de trabalho que não raro ultrapassava 15 horas diárias, incluindo sábados, domingos e feriados.

Ao comércio de homens e mulheres como escravos e a utilização em larga escala do trabalho escravo agrega o fato de que a produção era de monocultura de matérias primas e que ela estava essencialmente voltada para a metrópole onde servia para a formação das fortunas. Ou seja, o que se produzia era voltado quase que exclusivamente para a exportação. Esse era o “sentido da colonização”: “Se vamos à essência de nossa formação, veremos que na realidade nos constituímos para fornecer açúcar, tabaco, alguns outros gêneros; mais tarde ouro e diamante, depois, algodão e em seguida café, para o comércio europeu. Nada mais que isso” (Caio Prado, Formação do Brasil Contemporâneo: colônia. p. 31-32)

A expansão ultramarina, portanto, não era resultado do desejo da Nobreza, mas uma necessidade histórica que se colocava para responder às pressões econômicas do novo sistema social que surgia das cinzas da sociedade feudal. Assim, essa relação que a metrópole estabeleceu com a colônia portuguesa foi fundamental para a consolidação da acumulação primitiva do capital e foi a que deu bases para o financiamento do capitalismo industrial nos séculos seguintes no continente europeu.

O processo de acumulação do capital (assim como em outras de suas fases) ocorre em base a uma super exploração do trabalho, mas esse processo não aconteceu sem resistência por parte dos trabalhadores negros escravizados. Historiadores apontam várias formas de resistência, entre elas a que ficou mais conhecida pela complexidade de sua organização econômica e social, os quilombos.

Há, no entanto, historiadores que minimizam o processo de resistência apontando que sequer a relação entre senhores escravocratas e escravos era negociada e, portanto livre de violência. E mesmo quando havia alguma forma de violência essa era considerada como justa pelos próprios escravos, ou seja, os castigos eram como lições pedagógicas. Uma das conclusões que podemos tirar dessas concepções historiográficas (reconheço que há diferenças entre eles) é que há uma acomodação e aceitação por parte do escravo de sua condição, ou seja, um escravo dócil porque tem um senhor generoso. Prevalece nessa tese a coexistência pacífica entre ambos.

De acordo com essa concepção, por parte do escravo havia uma consensualidade na escravidão, um acordo entre escravos e escravocratas. Esse consenso fazia com que o escravo pudesse se sentir não como instrumento, como coisa, mas como ser humano que se deixa levar pela passividade e aceita os desígnios de ser submetido à escravidão.

O absurdo da tese consensualista está no fato de que entre o homem que escraviza e o escravizado há uma relação contratual, com direitos e garantias para as duas partes. E como sabemos uma relação contratual só pode ocorrer entre homens livres, o que de fato desmonta a tese do consenso. O uso do chicote para impor a vontade do escravocrata é outro elemento que desmonta a tese de que havia qualquer forma de consenso entre senhores e escravos.

Penso ser impossível, pelas necessidades da acumulação primitiva do capital, qualquer relação de consensualidade ou mesmo de “pacto social” entre escravos e escravocratas. A violência (em todas as suas formas) ao extremo é a explicação plausível para entendermos como um sistema de apropriação de trabalho alheio tão cruel tenha durado tanto tempo. “Para explicar o caráter repressivo e violento das relações escravistas de produção é necessário compreender que o escravismo é um sistema de produção de mais-valia absoluta, sistema esse no qual a mercadoria aparece imediata e explicitamente como produto da força de trabalho alienada. Aliás, o escravo é duplamente alienado, como pessoa, enquanto propriedade do senhor, e em sua força de trabalho, faculdade sobre a qual não pode ter comando. O escravo é obrigado a produzir muito além do que recebe para viver e reproduzir-se; e não dispõe de condições para negociar, nem o uso da sua força de trabalho, nem a si mesmo. Esse é o fundamento do caráter repressivo e violento do escravismo” Octávio Ianni.

Para Gorender, o que havia era uma adaptação, que não quer dizer passividade. No processo de resistência (que se manifestava em diversos aspectos da vida social) a “adaptação para seguir sobrevivendo” tornava-se uma forma de resistência. Mesmo que tenham nascido e morrido na condição de escravos isso não quer dizer que tenham aceitado tal condição. Essa resistência, por exemplo, podia se manifestar no relaxamento no trabalho, trato danoso para com os animais das fazendas, a sabotagem, etc. Para esse autor, a resistência era parte ativa do cotidiano dos escravos. Essa forma de resistência não se tratava exatamente de uma escolha, mas o que em muitos casos era o possível diante das condições objetivas impostas, uma vez que a elite colonial brasileira impunha aos escravos uma severa repressão a toda forma de rebelião. Assim, a adaptação não era uma acomodação, mas uma forma de resistência possível.

Destaco essa forma de resistência para ressaltar que a luta dos escravos contra a sua condição era permanente e cotidiana. Mas também merecem destaque todas as formas de resistência, em especial a que se organizava nos quilombos e ainda mais especial a dos Palmares, que questionava não só a escravidão, mas que colocou em xeque todo o modelo econômico implementado pela Coroa. Por isso o ódio particular da elite escravocrata brasileira contra esses resistentes quilombolas.

É importante compreender e dar valor a todos esses processos de resistência porque significa que entendemos que se o sistema escravocrata, pelas condições objetivas, conseguiu coisificar o seu ser social, graças a resistência que os milhões de escravos exerceram durante todos esses anos, os senhores escravocratas não conseguiram coisificar a sua subjetividade.

Graças a essa subjetividade os escravos conseguiram continuar as suas lutas e essas mesmas lutas que os escravos travaram durante séculos conquistaram o fim do trabalho compulsório. Mas sabemos que isso não significou o fim das condições precárias de vida, pelo contrário, vários aspectos de nossa vida denunciam que a verdadeira liberdade do trabalho ainda está por vir. E isso só vai acontecer quando nós trabalhadores conquistarmos o fim da escravidão assalariada.

 

As palavras como reprodução do preconceito

Os temas relativos ao racismo e a escravidão são muito sensíveis porque neles, se por um lado significa poder conhecer o papel dos trabalhadores negros e suas lutas pela libertação, por outro lado também nos deparamos com práticas que são preconceituosas e até racistas. A história brasileira que aparece nos livros, meios de comunicação, etc é aquela forjada pela classe dominante branca, da qual a ideologia dominante impõe sobre todos nós modos de agir que em muitas ocasiões terminamos por utilizar palavras e expressões que reproduzem a idéia de que tudo que é preto ou negro sempre está associado a algo ruim ou negativo.

As palavras têm um significado que foi sendo construído historicamente e essa construção, via de regra, obedece a interesses político ideológicos da classe dominante, uma vez que as palavras -assim como a linguagem- também se constituem como instrumento de dominação dos exploradores.

A expressão “a coisa tá preta” é uma dessas em que logo se assemelha a situações difíceis, ruins, seja na vida ou mesmo na situação política do país. Poderíamos também falar da expressão consagrada pelo filme Star Wars “o lado negro da força” utilizada como forma de exprimir que um dos personagens passou para o lado do mau.

Outra palavra muito utilizada é o verbo “denegrir”, geralmente utilizado para desqualificar a reputação de alguém e como o significado dela nos dicionários é tornar negro, escuro; enegrecer, escurecer, logo é feita a associação negro e desqualificação, negatividade se torna seu sinônimo.

Às vezes até utilizamos essas palavras sem saber o seu significado e o papel que têm, de reproduzir a linguagem dos dominadores, mas é preciso que fiquemos cada vez mais atentos para, na nossa prática militante, não reproduzamos tais preconceitos. Esses são apenas alguns exemplos relativos à questão racial. Há outros termos que se referem a mulheres, homossexuais e etnias, expressões estas que também merecem a nossa repulsa.

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O que produz e reproduz a escola?

Desde o momento em que nos propusemos a falar/escrever sobre a Educação e seus problemas, procuramos levar em consideração o contexto no qual estamos inseridos, sobretudo, a partir das últimas três décadas, período que nos evidencia a crise estrutural do capital, seus desdobramentos e a nacionalização dos prejuízos das empresas, bancos e seus agentes, bem como o “custo” para retomar o crescimento e “sair da crise”.

É diante desse cenário que devemos pensar a Educação Pública, pois a ação dos governos para atender aos interesses do capital se dá tanto no sentido da obtenção de incentivos fiscais e financeiros como no papel que a Educação deve cumprir enquanto instituição na formação de mão-de-obra, na atenuação dos reflexos da crise, na contenção social e na eliminação de qualquer ideologia que questione o sistema e proponha um outro tipo de sociedade.

As intervenções de agentes econômicos – Banco Mundial, FMI – na Educação Pública brasileira começaram a ocorrer nos anos 70/80 através da implantação de planos de ajustes econômicos, de modo que se garantisse o pagamento dos empréstimos tomados aos credores externos. Não obstante, é quando o mundo passa a ser atingido pela crise estrutural do capitalismo.

As metas implementadas a partir daí e nas décadas seguintes sob alegação de se buscar eficiência na educação, visava esconder o direcionamento em grande quantidade do dinheiro público para o pagamento da dívida aos organismos financeiros internacionais.

Nos dias atuais, além do pagamento da dívida, os governos concedem incentivos fiscais e financeiros aos banqueiros e empresários, reduzindo drasticamente os investimentos nos serviços sociais como saúde, educação, moradia, etc. Ao mesmo tempo, procuram esconder o não investimento nesses serviços responsabilizando os funcionários públicos pela falta de qualidade, sobretudo, na educação e saúde.

Dessa forma, os problemas da educação e o papel cumprido por ela só podem ser entendidos a partir de uma análise sócio-econômica.

Portanto, partimos do princípio de que “(…) a escola, em cada momento histórico, constitui uma expressão e uma resposta à sociedade na qual está inserida. Neste sentido, ela nunca é neutra, mas sempre ideológica e politicamente comprometida”. (Gasparin. In Uma Didática para a Pedagogia Histórico-Crítica, p. 1 e 2).

 

Por que os empresários e banqueiros se interessam tanto pela educação atualmente?

O Movimento “Todos Pela Educação” expressa bem o interesse atual da burguesia em participar ativamente das discussões e implementação de medidas na Educação Pública brasileira. Esse movimento conta com a participação de governos de diversas legendas partidárias, ONG’S e grupos empresariais – Fundação Roberto Marinho, Fundação Itaú Social, Instituto Airton Sena, Fundação Bradesco, Grupo Gerdal, dentre outros.

Essa preocupação se dá pelo fato de a classe dominante: primeiro, querer se consolidar e ampliar a sua própria situação de classe dominante; segundo, prevenir-se de uma possível rebelião das classes dominadas, ou seja, fazer com que os trabalhadores aceitem a desigualdade como algo natural e, portanto, a rebelião como uma loucura; terceiro, para que a escola forme uma mão-de-obra que atenda suas necessidades enquanto detentora dos meios de produção e; por último, assegurar seus incentivos fiscais e financeiros com o sucateamento dos serviços públicos.

 

Que tipo de mão-de-obra o sistema quer?

Diante da crise estrutural na qual se encontra o sistema, marcada pela tendência decrescente (queda) da taxa de lucro, dificultando a realização do ciclo reprodutivo do capital e produzindo momentos de crescimento, estagnação ou até mesmo de recessão da economia, as empresas travam uma intensa competição que visa reduzir o tempo entre produção e consumo, o que culmina na geração do descartável e do supérfluo. O capital necessita cada vez menos do trabalho estável e cada vez mais de formas diversificadas de trabalho tais como o trabalho parcial, terceirizado, que configurem uma mão- de-obra barata, de reposição ágil e flexível que passa a ser explorada em determinados momentos de interesse e de acordo com as determinações do mercado. Dessa forma, a competitividade entre as empresas se dá com a adoção do trabalho precarizado.

Procura-se também com isso “(…) aumentar a produtividade de modo a intensificar as formas de extração do sobre-trabalho em tempo cada vez mais reduzido”. (Antunes. In: Capitalismo, Trabalho e Educação, p.40). Essa lógica que é aplicada na produção de bens e serviços, também se aplica aos serviços públicos e, no caso da educação do Estado de São Paulo, se expressa nos professores contratados que se encontram na categoria “O”. Estes serão contratados por um ano e ficarão obrigatoriamente fora da rede de ensino por 200 dias, depois dos quais podem voltar à atividade e recomeçar este mesmo esquema.

 

1. A escola diante desse contexto

Dentro dos ditames mercadológicos, a educação deve se comprometer com uma incorporação de técnicas e procedimentos normatizados de aprendizagem rápida e fácil. A reestruturação curricular que ora assistimos visa atender a reestruturação da economia mundial em crise.

Dessa forma, procura-se ajustar a educação a lógica de mercado e ao mesmo tempo impor uma formação sem crítica e reflexão, pois é voltada para a adaptação, para a alienação e para o conformismo, procurando dificultar “(…) a compreensão da profundidade e perversidade da crise econômica- social, ideológica, ético-política do capitalismo real nesse fim de século”. (Frigotto. In Pedagogia da Exclusão: crítica ao neoliberalismo em educação, p.77) A imposição e a centralização do currículo produzem um tédio constante, pois não abrem espaço para a criatividade e intenções progressistas. Além disso, fazem aumentar os problemas disciplinares por não levarem em consideração a realidade das escolas e, “(…) a partir do momento em que elas se fazem cumprir, dividem os alunos entre uma minoria academicamente bem sucedida e uma maioria desacreditada”. (Connell. In: In Pedagogia da Exclusão: crítica ao neoliberalismo em educação, p.27)

A indisciplina também resulta do fato de a educação cada vez mais ser utilizada como mecanismo de controle social, na medida em que os alunos são colocados dentro das escolas com a intenção de não expô-los a criminalidade, para que não pratiquem atos criminosos e permitam a liberdade consumo. Esse papel cumprido pela educação fica claro na medida em que os alunos são jogados nas escolas, sem nenhum atrativo, e cercados por grades que dão um aspecto e um caráter de presídio ao lugar.

É o que assistimos na rede estadual de ensino do Estado de São Paulo, onde o professor não tem autonomia e é pressionado a trabalhar o currículo oficial desencadeando em muitas situações de “Assédio Moral”.

 

2. E os professores?

Os professores, além de serem o tempo todo responsabilizados e culpados pelo fracasso escolar do aluno, sofrem com a intensificação do trabalho provocada pela reestruturação curricular, sendo expostos a situações vexatórias na medida em que são obrigados a colocar em prática um currículo, um programa que em nada tem a ver com a realidade de seu trabalho diário.

São cobrados o tempo todo para se aperfeiçoarem. “O mercado e seus porta- vozes governamentais querem um professor ágil, leve, flexível, que a partir de uma formação inicial ligeira e com baixo custo, aprimore sua qualificação no exercício docente refletindo sobre sua prática, apoiado eventualmente, por cursos rápidos”. As novas pedagogias apresentam “(…) soluções mágicas do tipo reflexão sobre a prática, relações prazerosas, pedagogia do afeto, transversalidade dos conhecimentos e fórmulas semelhantes que vêm ganhando a cabeça do professor”. (Saviani. In: Carta na Escola, p.66, maio/2010)

O professor, com isso, acha que o problema está em sua formação, em sua prática e se submete a essa pedagogia mercantil, se matando de estudar aos finais de semana, se auto-intensificando na medida em que é cobrado a exercer suas funções com o máximo de produtividade.

No entanto, quando entram na sala de aula, essa formação não irá surtir efeito algum, pois o problema não está na formação do professor, e sim situação das escolas e no papel que a Educação Pública cumpre atualmente.

Essa situação está levando muitos professores a ficarem doentes, já que estes não se sentem (…) bem, mas infelizes, não desenvolvem livremente as energias físicas e mentais, mas esgotam-se fisicamente e arruínam o espírito”. (Marx. In: Manuscritos Econômico-Filosóficos, p. 114)

 

O que devemos fazer?

As saídas para os nossos problemas devem ser tratadas de modo coletivo, pois não envolvem um ou outro professor, e sim o conjunto dos professores.

A discussão sobre a qualidade do Ensino Público deve ir além da esfera de atuação dos professores. Os trabalhadores de um modo geral devem participar ativamente nessa luta.

É necessário um processo educativo em sua plenitude, que tenha como um de seus princípios uma nova forma de sociabilidade, que transcenda a sociedade de classes, possibilitando que os trabalhadores e seus filhos usufruam da riqueza espiritual e material produzido pelo processo civilizatório. Uma Educação que vislumbre uma sociedade sem classes, fraternal, onde a escola em todos os níveis não pode ser precária, uma sociedade Socialista, em que o nosso ensino defenderá exclusivamente os interesses dos trabalhadores!

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Tropa de Elite 2: vitória da violência

Daniel M. Delfino

No cinema de Hollywood as continuações em geral seguem uma fórmula típica em que tudo aumenta de escala: a ambição da trama, os desafios, o drama dos personagens, as reviravoltas no roteiro, os efeitos especiais, as cenas de ação, etc. O segundo “Tropa de Elite” segue esta fórmula e também amplia suas ambições.

O primeiro episódio tinha como alvo ideológico a “consciência social” da pequena-burguesia universitária, que milita em ONGs, é “amiga dos pobres” e consome maconha. No discurso do filme, o usuário de drogas é o culpado pela violência, pois é o seu dinheiro que financia o tráfico, e que arma os traficantes, com as mesmas armas com as quais se cometem os demais crimes. Para proteger “a sociedade” contra o crime, prossegue o filme, uma polícia comum não serve, pois a PM é na verdade sócia do crime, por meio da corrupção. A solução é o BOPE, uma tropa de elite selecionada por meio de métodos extremos de treinamento, capaz de desbaratar qualquer quadrilha por meio de técnicas de tortura e de guerra dignas de qualquer filme de Rambo. Para completar, o “bandido” é apresentado como uma raça à parte dos demais seres humanos, os “cidadãos de bem”, não como uma categoria social produzida por relações sociais específicas, e como tal pode ser torturado e morto pelos “mocinhos” da história sem qualquer sombra de remorso.

Ainda que tivesse alguma pretensão crítica por expor as entranhas da corrupção policial ou mesmo a destruição da vida pessoal do capitão do BOPE (que se torna ele próprio usuário de drogas – estas legalizadas – fornecidas com receita de tratamento psiquiátrico), o primeiro filme acaba funcionando como uma apologia dos métodos extremos da repressão. A questão fundamental, que é a proibição do uso de drogas, nem sequer é mencionada. Se o consumo de drogas não fosse ilegal, não haveria a necessidade de reprimir o tráfico, e não haveria quadrilhas armadas de traficantes aterrorizando a periferia das grandes cidades, e conseqüentemente não haveria a guerra entre traficantes, policiais corruptos e o BOPE. Certamente haveria um aumento do número de dependentes e de problemas para o sistema público de saúde, e haveria outros crimes a serem explorados pelo lumpesinato; entretanto, a letalidade social da proibição ao uso de drogas, com seu corolário de violência, corrupção e terror é muito maior. A série “Tropa de Elite” não discute essas possibilidades, tratando a proibição do uso de drogas como um fato dado e absoluto, um pressuposto imutável, e em cima disso constrói sua hierarquia de valores morais, de certo e errado, mocinhos e bandidos.

O resultado é uma apologia mais ou menos disfarçada da repressão, da guerra social, do extermínio de favelados, negros, nordestinos, desempregados, pelo crime de serem pobres. O herói do cinema brasileiro não é mais o bandido, o cangaceiro, expressão estética de uma “consciência social” anterior, também pequeno-burguesa e limitada, que glamourizava a resistência social dos pobres contra a repressão do Estado, como forma de aliviar a consciência pesada dessa camada social com a miséria brasileira, mas que não avançava para a defesa de mudanças profundas no regime social. Essa consciência foi tornada antiquada e a pequena-burguesia foi posta contra a parede. O novo herói do cinema nacional é o policial durão, estilo John Mclaine, da série “Duro de Matar”, em versão brasileira.

O novo episódio também não avança para um questionamento mais profundo sobre as causas do problema da violência. Logo no início, quando o BOPE está se preparando para debelar uma rebelião em um presídio, o nosso “herói”, o agora Coronel Nascimento, diz que o que impede a polícia de acabar de vez com o crime são os “intelectuais de esquerda que ganham a vida defendendo vagabundo”. O uso da expressão “vagabundo” não deixa margem de dúvidas quanto à ideologia que está sendo destilada. O criminoso é chamado de “vagabundo”, um adjetivo negativo que tem o significado de pessoa que não quer trabalhar. Logo, o criminoso não se torna criminoso por uma série de outras razões, mas simplesmente porque não quis trabalhar. Está subentendida nesse discurso a idéia de que, se o vagabundo quisesse trabalhar honestamente, ele poderia. Está expresso aí com todas as cores o brutal cinismo da ideologia burguesa, que explica as desigualdades sociais pelo mérito individual, que separa implacavelmente os vencedores dos perdedores.

O desemprego, o subemprego, o trabalho superexplorado, a miséria e a alienação em que vivem milhões de trabalhadores nas periferias são tomados também como pressupostos imutáveis, e também como se não tivessem nenhuma relação causal com a facilidade do negócio capitalista do tráfico, um mercado como outro qualquer, de recrutar seus aviõezinhos, soldados e gerentes de boca, proletários do negócio do tráfico, e seus chefes sanguinários, seus Beiradas, Baianos e Beira-mares, empreendedores capitalistas associados aos banqueiros encarregados da lavagem de dinheiro e aos políticos e magistrados encarregados de deixá-los tocar suas atividades, dentro ou fora da cadeia, em troca de propina. Combater o crime por meio da violência policial, ou por meio de ONGs assistencialistas, sem combater as suas causas, que estão na miséria social e no próprio sistema capitalista, é como enxugar gelo.

O processo social que alimenta a continuidade dos negócios criminosos e da guerra associada a ele permanece oculto ou intocado no 2º episódio de “Tropa de Elite”, que começa com a cena de rebelião no presídio, quando o Coronel Nascimento diz que os “vagabundos” deveriam ser deixados à própria sorte, para que se matassem todos. A intenção do Coronel, que expressa o desejo da consciência burguesa e pequeno-burguesa em relação aos “perdedores” da corrida social, era deixar os seus “caveiras” entrarem em cena apenas depois que os “vagabundos” rebelados tivessem exterminado seus rivais de outras facções, para exterminar por sua vez os que tivessem restado. Entretanto, ele foi atrapalhado em suas intenções pelo “intelectual de esquerda”, um professor universitário e ativista dos direitos humanos que se dispõe a negociar a libertação dos reféns e o fim da rebelião.

Temos então, com a presença do ativista de direitos humanos Diogo Fraga o salto de qualidade deste “Tropa de Elite”. Espécie de concessão à crítica, que malhou o primeiro filme por seu conteúdo explicitamente de direita, na maior parte das vezes como eco daquela consciência pequeno- burguesa habituada às fórmulas antigas do cinema nacional, e poucas vezes com real conhecimento de causa, a atuação do personagem de Fraga fornece uma espécie de contraponto ao discurso belicoso de Nascimento. Pela voz do Coronel, o militante é ridicularizado desde o início (apelidado de “Che Guevara”, espécie de deboche com os militantes de esquerda em geral), ainda mais pelo fato de ter se casado com sua ex-mulher e estar educando seu filho. Além disso, ao passar de professor universitário a deputado estadual e daí a federal, Fraga é também apresentado como alguém que tem ambições meramente eleitoreiras.

Mesmo assim, conforme o Coronel, paradoxalmente promovido para o setor de Inteligência da polícia depois do incidente no presídio, começa a tomar conhecimento das raízes profundas que unem a corrupção policial ao coração do sistema político, ele e o deputado Fraga acabam atuando em parceria para desbaratar uma quadrilha, uma das chamadas “milícias”, na verdade um esquadrão da morte de policiais corruptos que como uma máfia havia se apossado de um dos bairros da cidade, na qual estavam unidos policiais corruptos, apresentadores de TV e a cúpula da segurança pública. Os dois personagens assim “se redimem” por meio da cooperação. O filme alça então uma tentativa de reflexão mais ampla, em que o próprio Coronel, do alto da tribuna de uma CPI das milícias, se questiona “por que a sociedade o preparou para matar?”.

Nesse questionamento feito pelo filme aparecem episódios reais da história recente do Rio, como o roubo (farsesco, segundo o filme) das armas do exército, a equipe de reportagem torturada por integrantes da milícia (mortos no filme), e a CPI das milícias. O próprio Fraga é construído em cima da história do deputado estadual Marcelo Freixo, do PSOL, que impulsionou a CPI na assembléia legislativa. Lá ele tem como adversário o apresentador de TV Wagner Montes, que como o apresentador do filme, defende a política de “tolerância zero” com “bandidos” e “vagabundos”. Os dois foram reeleitos em 2010, o primeiro com votos da classe média da zona sul, o segundo com os votos da população pobre dos morros. Um paradoxo que mereceria uma reflexão mais aprofundada, pois constitui a chave para entender as dificuldades para combater a ideologia da violência entre suas próprias vítimas, ou seja, os trabalhadores mais pobres.

A reflexão do herói do filme o leva, numa seqüência em que a câmera sobrevoa os prédios do Congresso Nacional, a deduzir que o “sistema” ao qual combateu durante toda a carreira de policial-herói vai além da simples corrupção policial, e na verdade abrange as mais altas instituições políticas, tidas como inteiramente apodrecidas pela corrupção. As conclusões aparentemente são deixadas para o espectador. Ele pode optar pelo método de Fraga/Freixo, ou pelo método de Nascimento. O Coronel não deixa de estar certo ao sugerir que as instituições estão corrompidas. Entretanto, quem o aplaude neste momento, como a burguesia que o aplaudiu no filme depois de ter comandado o massacre no presídio, são aqueles que desejariam ver o Congresso Nacional fechado para que o país voltasse a ser comandado por “heróis virtuosos”. Não surpreende que a Globo Filmes, braço cinematográfico da Rede Globo, império empresarial de mídia que nasceu e cresceu com a função de fornecer sustentação ideológica para a ditadura de 1964, esteja entre os patrocinadores do filme.

As instituições do Estado burguês estão mesmo corrompidas, assim como todas as relações sociais no sistema capitalista, baseadas na violência, no roubo (de trabalho não-pago, fonte da mais-valia) e na mentira. A solução é a derrubada dessas instituições, não apenas por “Che Guevaras”, como os que são ironizados pelo Coronel do BOPE, mas pela ação organizada e consciente da classe trabalhadora.

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A luta de classes na França e as tarefas colocadas para a classe trabalhadora

Atualmente a França assume novo protagonismo no cenário mundial, como país onde novamente a classe operária ressurge e luta contra os ataques capitalistas, dando exemplo de luta e das dimensões das tarefas que os lutadores e lutadoras do mundo terão que cumprir.

Desde o anúncio de Sarkozy acerca do plano de austeridade – plano este que aumenta a idade mínima para a aposentadoria de 60 para 62 anos; os anos de contribuição para receber a aposentadoria integral sobem de 40,5 para 41 em 2012, e para 41,3 em 2013; e ainda a idade para receber aposentadoria integral passa de 65 para 67 anos -, trabalhadores e estudantes saíram às ruas para barrar este ataque aos direitos dos trabalhadores e trabalhadoras da França.

Escolas, universidades, refinarias foram ocupadas por trabalhadores e estudantes nas últimas semanas. Carros e ônibus foram queimados e as ruas de Paris, por vezes, apareceram para o mundo como verdadeiros campos de batalha – o que deixou estarrecida uma parte da burguesia que ainda não esqueceu os idos de 2005 e 2006, quando a juventude francesa lutou contra a repressão racista e xenofóbica da polícia francesa e no ano seguinte contra o Contrato do Primeiro Emprego (Contrat Première Embauche – CPE).

O plano de austeridade – plano de contenção de gastos dos Estados – anunciado e aprovado pelo senado francês no dia 22/10, não aparece no cenário europeu como especificidade francesa, mas antes como parte do processo de recuperação de danos e reposição de recursos dos Estados europeus, recursos que no auge da crise econômica iniciada em 2008 foram despendidos aos bilhões para salvar bancos e empresas da falência.

Agora os capitalistas, por meio dos Estados nacionais, mandam a conta da farra para os trabalhadores pagarem. A contenção de gastos públicos por meio de reformas na previdência, redução de investimentos sociais, aumentos na carga tributária, redução de postos de trabalho e salário, entre outras, tem sido fato comum à maior parte dos Estados, que compõem ou não a zona do euro, com impacto redobrado sobre os elos mais frágeis da Europa Ocidental.

No início de junho, a Alemanha anunciou o seu plano de austeridade, com cortes de investimentos sociais, direitos trabalhistas e aumento de impostos. Desde o anúncio de Angela Merkel, vários países europeus também começaram a apresentar seus planos de austeridade para “equilibrar” as contas públicas. Depois da Alemanha, a Grécia anunciou seu pacote de maldades, que também teve uma enorme demonstração de força por parte dos trabalhadores gregos, e a seguir, Portugal, Espanha, Grã-Bretanha, entre outros, somam-se à lista de países que lançam o saldo da crise sobre os trabalhadores.

 

As grandes revoltas na Europa e a necessidade da reconstrução da alternativa socialista

Calcula-se que na França, a cada protesto participavam cerca de 3,5 milhões de trabalhadores e estudantes; 70% da população estava contra o plano de austeridade e a favor dos protestos; e tudo isso intensificado pelo processo crescente de radicalização dos métodos de luta de trabalhadores e estudantes, que paralisaram escolas, aeroportos, rodovias, refinarias, etc, deixando o país quase sem gasolina, e enfrentaram com bravura nas ruas a repressão de Sarkozy.

Apesar de o plano ter sido aprovado pelo senado Francês, trabalhadores e estudantes deram o exemplo de como lutar contra os ataques que têm se espalhado pela Europa e que provavelmente atingirão outros países como o Brasil – com a reforma da previdência anunciada na campanha de Dilma – e a maioria dos Estados que gastaram seus recursos no resgate de bancos e empresas durante a crise.

Fica claro que hoje emerge novamente a necessidade da reconstrução da alternativa socialista em todo o mundo, pois mesmo com intensas lutas como as da Grécia e França, não poderemos sair plenamente vitoriosos enquanto persistir a falta de uma resposta ofensiva e não apenas defensiva da classe trabalhadora, que recoloque no panorama atual o socialismo como único projeto de superação não apenas da crise econômica, mas da crise societal contemporânea. E para que isso ocorra, faz-se necessário a reconstrução e o esforço de unidade da esquerda revolucionária, e o rompimento com políticas reformistas – como as da CGT na França -, para dar novos rumos às revoltas trabalhistas e fazer ressurgir como alternativa real e única viável o socialismo.

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