Desde março de 2019 o Espaço Socialista e o Movimento de Organização Socialista se fundiram em uma só organização, a Emancipação Socialista. Não deixe de ler o nosso Manifesto!

Como lutar contra a crise e o desemprego?

 

Enquanto no mundo todo a crise segue se aprofundando, no Brasil, podemos dizer que já estamos em uma recessão, cujo início ficou patente com a primeira grande leva de mais de 2 milhões de demissões ocorridas entre o fim de 2008 e o início de 2009 – entre elas as 4.200 demissões na EMBRAER. Isso sem falar na quantidade de empresas que deram licenças sem remuneração, reduziram salários e direitos.

O desemprego segue aumentando, embora em um ritmo menor, e novas levas de fechamento de postos de trabalho estão por vir com terríveis conseqüências sociais.

 

Governo Lula, CUT e Força Sindical: do Lado dos Patrões

A inversão rápida do ciclo anterior de crescimento econômico para uma recessão pegou os trabalhadores de surpresa pois, de uma hora para outra, viram sua situação decair.

Pior ainda, todos aqueles que teriam maior poder para fazer alguma coisa, como o governo Lula, e as grandes centrais como a CUT e a Força Sindical, estão em conluio com os patrões para convencer os trabalhadores de que não há mesmo outra saída a não ser preservar a saúde (leia-se grande lucratividade) das empresas.

Assim, realizam Fóruns como o do ABC, onde se reuniram, nos dias 11 e 12 de março, representantes das empresas, do governo (na pessoa da Dilma Ruseff) e das Centrais. O objetivo: encontrar “saídas criativas” para crise na região. Mas todos sabemos quais saídas são essas: dinheiro para as empresas, demissões, corte de salários e direitos para nós.

Empresários e governo tentam convencer os trabalhadores de que as demissões e o corte de salários e direitos são males inevitáveis, mas passageiros. Dizem que assim que a economia melhorar, os trabalhadores serão chamados de volta. Uma grande mentira.

A crise atual é extremamente profunda e a reestruturação que as empresas estão fazendo será ainda mais intensa que a dos anos 90. A maioria dos postos de trabalho fechados não serão mais reabertos, nem os direitos devolvidos.

O Estado entra para assumir as perdas da iniciativa privada. Para isso, pretende-se que haja cortes substanciais nos gastos com saúde e educação públicas, com o funcionalismo, bem como sobrecarga de trabalho e responsabilidades dos servidores.

O governo Lula já direcionou mais de R$300 bilhões para as empresas e bancos, e Serra, que por sua vez pretende se mostrar como melhor aluno ainda, destinou um pacote de R$20 bilhões. Esse dinheiro sairá do orçamento público, das áreas sociais, da saúde, da educação e dos salários do funcionalismo.

Agora Lula lança o pacote da habitação de R$ 32 bilhões com o mote de incentivar a construção de casas populares. Mas ao invés de usar nesse pacote o dinheiro que está indo para os empresários, pretende tirar esse montante do FGTS, dos cortes no orçamento da saúde e da educação, além do funcionalismo público.

Ou seja, o governo tira dinheiro dos próprios trabalhadores para sustentar as grandes construtoras em crise, e tentar preservar sua popularidade, que começou a cair.

Porém, essas medidas não serão suficientes para fazer a economia voltar a crescer no ritmo anterior, muito menos servirão para reverter o desemprego. Ao contrário, estas são medidas que visam fortalecer as empresas e ajudá-las a se reestruturar, demitindo e precarizando as contratações. O caso da EMBRAER é emblemático pois, como se viu, o governo já sabia das demissões e mesmo assim deixou a empresa de mãos livres para fazer o que quis.

Assim, a perspectiva burguesa e governista de saída para a crise já está sendo encaminhada: um processo brutal de ataques ao emprego, aos salários e direitos da classe trabalhadora, no sentido de impor uma super-exploração e recompor sua margem de lucro, a partir do atendimento a uma demanda menor. Isso sem falar das possíveis guerras, repressões e intervenções militares contra os pobres em geral, como as intervenções nas favelas do Rio e de São Paulo.

É dentro desse marco que a CUT e Força Sindical atuam, reforçando os preconceitos de que o lucro é sagrado, que fora do capitalismo não há alternativa, que deve-se dar mesmo dinheiro e isenções de impostos para grandes empresas transnacionais, reduzir salários e direitos, como se mesmo depois de tudo isso os empresários não continuassem demitindo…

 

Unidade” com a CUT e a Força Sindical… mesmo elas defendendo os patrões e o governo?

Em janeiro, por ocasião do Seminário de Esquerda contra a Crise no Fórum Social 2009, foi tirado um dia de luta contra o desemprego e a crise. Essa iniciativa partia da avaliação correta de que tanto a CUT quanto a Força Sindical não iriam impulsionar mobilizações contra a crise, ao contrário, estariam defendendo medidas a favor dos patrões, o que de fato vem acontecendo.

No entanto, faltando 15 dias para a manifestação, no final de semana de 14/15 de março, a direção da CONLUTAS resolveu, por orientação do PSTU (corrente hegemônica) modificar o calendário tirado em Belém para a realização de um Ato no dia 30 com a CUT, Força Sindical, CTB, etc..

Essa mudança foi prejudicial, pois foi jogada fora a oportunidade de avançar em uma diferenciação com essas centrais pelegas. Suas reivindicações são dinheiro para as empresas, redução de impostos, banco de horas, redução de salários, PDV’s, etc, ou seja, todas as soluções nos marcos de garantia da lucratividade do capital, o que só é possível atacando os trabalhadores. A CONLUTAS por outro lado defende que sejam os ricos a pagarem pela crise que eles criaram.

Como organizar uma manifestação conjunta com objetivos opostos?

A desculpa de que todas as centrais defendem a manutenção dos empregos não procede, pois as centrais governistas têm defendido “Planos de Demissões Voluntárias”, ou literalmente se calado diante das demissões da virada do ano.

O argumento de que com a mesma data e um Ato unificado seria possível disputar os trabalhadores que ainda acreditam nessas centrais também não se sustenta.

Conforme dito acima, isso não se confirmou. O controle das manifestações e o seu caráter foi ditado pelas Centrais pelegas, com pouco espaço para um discurso de luta.

E o pior é que o esperado aconteceu: nem a CUT nem a Força mobilizaram trabalhadores, porque eles simplesmente estão contra qualquer mobilização!!! O comparecimento foi basicamente de sindicalistas liberados e de cabos eleitorais.

Seria diferente se houvesse um processo de lutas em nível estadual ou nacional, no qual essas centrais fossem obrigadas a encabeçar lutas massivas. Mas na conjuntura em que estamos, a mudança de data só serviu para manter o nível atual de dispersão e de ilusões nessas centrais pelegas.

Por último, a mudança de data em cima da hora desorientou as atividades que já estavam sendo preparadas, e além de tudo se perdeu a oportunidade de marcar um perfil independente junto aos próprios trabalhadores.

Valia muito mais a pena ter feito a atividade nos moldes tirados em Belém, ainda que com todas as dificuldades pois seria mais um passo no sentido da construção de um pólo alternativo, ainda que embrionário, à burocracia sindical da CUT e da Força.

 

Apostar na Unificação da Esquerda e dos Trabalhadores pela Base!

Por tudo o que foi dito antes, a situação atual apresenta-se como de total necessidade da construção de um pólo alternativo às centrais pelegas, que impulsione as lutas e apresente uma outra saída aos trabalhadores contra a crise do capitalismo.

Construir um pólo socialista alternativo é ainda mais necessário, devido ao fato de que nos últimos anos as referências socialistas e revolucionárias ficaram em crise e na defensiva. Agora, com o estouro da crise do capitalismo, é possível e ao mesmo tempo urgente lutarmos para a reconstrução de uma alternativa socialista de massas.

De forma geral, os trabalhadores não vislumbram outra sociedade que não o capitalismo e, portanto, o discurso das empresas e do governo de que a lucratividade deve ser preservada aparece como algo natural e inquestionável. Mas é justamente a lógica do lucro que os socialistas devem ter a coragem de questionar, pois todo lucro funda-se na exploração do trabalhador, e na destruição da natureza!

Assim, continuaremos insistindo na necessidade de um amplo trabalho independente de agitação e propaganda junto à classe trabalhadora, para disputar sua consciência, denunciando as armadilhas das propostas patronais e apontando um programa alternativo em defesa dos interesses dos trabalhadores, que rompa com a lógica do lucro.

Para potencializar esse trabalho, defendemos desde o início deste ano a realização de um Encontro Nacional de Entidades de Luta e Ativistas, precedido de Encontros Regionais, como forma de abrir um amplo debate junto à classe trabalhadora e à vanguarda, para tirarmos um calendário de luta e um programa alternativo dos trabalhadores contra a crise e o desemprego.

Seria possível envolver milhares de ativistas de todo o país, a partir da unificação dos esforços da CONLUTAS e da INTERSINDICAL, que por sua vez aumentariam sua inserção junto à classe trabalhadora através da organização desse Encontro Nacional.

O Encontro poderia e deveria ser chamado ainda nesse primeiro semestre, como forma de preparar o enfrentamento às demissões e aos ataques aos nossos direitos.

Se nos lembrarmos, a experiência do Encontro de 2007 no Ibirapuera foi extremamente produtiva, e todas as correntes reconheceram isso.

A unificação da CONLUTAS com a INTERSINDICAL amplamente defendida nas palavras por todos os setores, seria assim colocada em prática a partir da realidade das lutas, e não apenas com palavras ou discussões de cúpula.

Até agora, porém, as principais correntes políticas (O PSTU, que dirige a CONLUTAS e o PSOL que dirige a INTESINDICAl), têm se recusado a encampar essa proposta de um trabalho ofensivo e pela base junto aos trabalhadores. Essa atitude é contraditória com sua disposição de se unir com a CUT e a Força Sindical.

Assim, propomos que os ativistas e trabalhadores se juntem a nós na pressão junto às maiores correntes, no sentido da realização de um Encontro Nacional anti-patronal e anti-governista, precedido de encontros regionais.

A realização no ABC do Encontro de Luta Contra a Crise e o Desemprego (ver matéria neste jornal) foi um passo importante nesse sentido.

Propostas para um programa dos trabalhadores contra a crise

1) Não às demissões! Estabilidade no emprego e reintegração dos demitidos!

2) Redução da jornada de trabalho sem redução dos salários!

3) Estatização sob controle dos trabalhadores e sem indenização das empresas que demitirem, ameaçarem fechar ou se transferirem!

4) Reestatização da Vale e demais empresas privatizadas sob controle dos trabalhadores , sem indenização e com readmissão dos demitidos!

5) Não pagamento das dívidas públicas, interna e externa , e investimento desse dinheiro num programa de obras e serviços públicos sob controle dos trabalhadores, para gerar empregos e melhorar as condições imediatas de saúde, educação, moradia, transporte, cultura e lazer . Fim da remessa de lucros para o exterior!

6) Estatização do Sistema Financeiro sob controle dos trabalhadores!

7) Reforma agrária sob controle dos trabalhadores. Fim do latifúndio e do agronegócio. Por uma agricultura coletiva, orgânica e ecológica voltada para as necessidades da classe trabalhadora!

8) Por um governo socialista dos trabalhadores baseado em suas organizações de luta!

9) Por uma sociedade socialista!

 

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A miséria, o espetáculo e suas perversidades

 

 

(Comentário sobre o filme “Quem quer ser um milionário”)

 

 

 

O grande vencedor do Oscar 2009 tem como principal mérito o fato de ter escolhido um favelado como protagonista. Afinal, mais de um bilhão de pessoas são favelados hoje no mundo. Vivemos no “Planeta favela”, título de um livro de Mike Davis que descreve a estarrecedora realidade dessa porção nada desprezível da população humana. A favela é o retrato acabado do fracasso da civilização capitalista. Desemprego, subemprego, trabalho informal, biscates, mendicância, prostituição, doenças, fome, violência, crime; são a realidade social dessa população. Esgoto a céu aberto, lixo, fezes, cadáveres em decomposição, ratos e moscas são a realidade material. Um bilhão de pessoas vive literalmente na merda (há uma cena em que o protagonista do filme em questão ilustra graficamente o que quer dizer “viver na merda”).

Pouco acima dessa camada de favelados, temos as também numerosas camadas dos pobres, dos remediados, dos trabalhadores explorados formalmente, que compõem a imensa maioria da humanidade, para quem a simples sobrevivência é um desafio cotidiano. Isso é um grotesco absurdo em face da abundância de recursos e de capacidade produtiva disponível no planeta. O sistema funciona de fato apenas para uma restrita minoria. Nada pode ser mais eloqüente do que essa realidade para demonstrar o fracasso estrepitoso do capitalismo, do livre mercado, da globalização, do progresso, do desenvolvimento, do crescimento, etc. Pedir a cada um desses 1 bilhão de pessoas que continue suportando a vida no inferno por mais um dia sequer, apenas para que a minúscula elite internacional dos banqueiros, executivos, especuladores, aventureiros e rapinantes de toda espécie que controlam a economia mundial possam seguir desfrutando do luxo obsceno em que se refestelam; é dar mostras de um sadismo verdadeiramente hediondo.

Entretanto, é exatamente isso que fazem os gestores do sistema, os tecnocratas e ideólogos mercenários encarregados de reciclar cotidianamente as promessas furadas da viabilidade do capitalismo e propagá-las maciçamente por todos os canais e meios de comunicação que intoxicam diariamente a consciência coletiva. Por esse motivo, os méritos de um filme que tem a coragem de expor as entranhas de uma sociedade periférica como a da Índia devem ser sempre destacados. Trata-se de uma abordagem diametralmente oposta à do “Caminho das Índias” da rede Globo, que optou por mostrar a Índia dos nababos e marajás.

Por falar em Globo e em Brasil, “Planeta Favela” registra o fato de que nosso país tem 51,7 milhões de favelados, e a Índia 158,4 milhões, o que corresponde a 36,6 e 55,5 por cento da população urbana dos dois países respectivamente. Mas nem tudo na nossa indústria cultural é pura mistificação. Por vezes a realidade também aparece. “Quem quer ser um milionário” tem um predecessor importante no seu gênero, o brasileiro “Cidade de Deus”, do qual recebe nítidas influências. Além do cenário de miséria, semelhante em Bombaim (cidade que os inventores de modismos resolveram rebatizar com o insosso nome de “Mumbai”) e no Rio de Janeiro, temos um protagonista que tenta fazer seu caminho sem se envolver com o crime, embora esse tenha sido o meio em que cresceu. No que se refere à narrativa, temos também o recurso à linhas temporais intercaladas que compõem o quebra-cabeças da vida dos personagens. Finalmente, no aspecto puramente estético, temos o estilo de edição, o ritmo acelerado, as cores fortes.

Ao escolher um favelado como protagonista, “Quem quer ser um milionário” tem a oportunidade de retratar as diversas formas de opressão de que essa população é vítima. A opressão se manifesta não apenas na condição material, mas também nas diversas formas de preconceito, discriminação e violência, não apenas física, mas também psicológica.

O título do filme se refere a um programa de televisão do tipo de perguntas e respostas. No Brasil tivemos há alguns anos o “Show do Milhão”, apresentado pelo grotesco Silvio Santos (que aliás fez sua fortuna explorando a credulidade dos pobres), imitação de um modelo internacionalmente difundido, prova de que na indústria do espetáculo nada se cria, tudo se copia. No filme, o programa é inesperadamente vencido por um concorrente que vive na favela. Jamal Malik é um típico representante do emergente capitalismo indiano: trabalha servindo chá aos operadores de telemarketing. Ele é o subalterno entre os subalternos da classe trabalhadora, parte da gigantesca massa humana anônima triturada nas engrenagens implacáveis do superlucro globalizado.

Ninguém na televisão, dos produtores ao público, acredita que Jamal tem a mínima chance de acertar as perguntas do programa. Mas ele acerta uma após a outra, e seu prêmio em dinheiro vai aumentando rodada após rodada. Antes que ele chegue à pergunta final, os produtores do programa tentam descartar-se dele nos bastidores e o acusam de ser um fraudador. Um favelado jamais poderia ter acertado as perguntas sem algum tipo de expediente ilícito. Favelado não é gente, não pode vencer nunca. Está fora do script.

Os órgãos da repressão, por outro lado, cumprem fielmente o roteiro que deles se espera. O favelado é torturado para confessar o crime que não cometeu. Lá como aqui, a polícia bate primeiro e pergunta depois. Ninguém sequer cogita na possibilidade de o vencedor do concurso ter realmente acertado as perguntas, até que a tortura se prove ineficaz e o infeliz tenha a oportunidade de falar. Para explicar para a polícia como acertou as perguntas do programa, Jamal tem que narrar uma série de incidentes de sua vida, pois cada resposta tinha relação com algo que aprendeu por ter sofrido na pele. Desdobra-se então a narrativa de sua vida, desde a infância até o momento em que chega ao programa de TV.

Além do “crime” de ser favelado, Jamal deve pagar pela ousadia de tentar transgredir as normas e mudar sua realidade. O favelado só pode conseguir algo depois de apanhar muito e ganhar traumas e cicatrizes. Depois da tortura policial e de apresentar as justificativas para cada uma das respostas que acertou, ele terá a chance de voltar ao programa e arriscar a sorte na pergunta final. O detalhe é que a tortura e o interrogatório transcorrem longe dos olhares do público. O inferno vivido por Jamal não pode ser televisionado. O favelado não pode ser humanizado, seu sofrimento não pode ser partilhado pelo espectador. A televisão suprime a brutalidade do real e a dissolve na superficialidade do estereótipo. O público do programa inevitavelmente desenvolve uma empatia por Jamal e torce por ele, mas nem sequer desconfia dos horrores pelos quais ele passou para chegar até ali, desde sua infância distante até a tortura policial ali mesmo, às vésperas da pergunta final.

O mundo do espetáculo é um mundo asséptico, higienista, forjado, embalado para presente e emoldurado pelo sorriso artificial e monstruoso dos apresentadores de TV. Um mundo de fantasia que dissimula por meio da hipocrisia profissional a verdadeira realidade dos seres humanos. A demanda por “reality shows” expressa justamente isso, a necessidade do público de torcer por personagens com os quais possa se identificar. Os “reality shows” fornecem tais personagens, mas não modificam a dramaturgia básica do espetáculo, apenas substituem os atores profissionais que encenam o conto de fadas por amadores com os quais o público se considera mais parecido. Nenhum reality show mergulha na realidade de um ser humano com a mesma profundidade de que somente a verdadeira arte, a literatura, o teatro, e alguns raros filmes são capazes.

Um dos méritos de “Quem quer ser um milionário” é humanizar seus personagens, valorizando sua trajetória de vida. Jamal adquiriu uma diversificada (e terrível) experiência de vida na favela, nas ruas, na mendicância, no trabalho. Vivenciou a barbárie dos conflitos religiosos, o trauma da orfandade, a precariedade da mendicância, o horror da exploração do trabalho infantil, enquanto as pessoas mais próximas dele resvalavam para o crime e a prostituição. Conheceu a inveja, o autoritarismo e por fim a traição da parte do próprio irmão. Mas ele conheceu também a amizade e o companheirismo que unificam os miseráveis e as pessoas que atravessam situações extremas. Conheceu até mesmo o amor, que foi o fio de esperança que o manteve firme e vivo enquanto era massacrado pela vida e levado pela correnteza dos acontecimentos.

Depois de passar por esse purgatório, Jamal faz jus ao prêmio milionário do programa de TV. Chegamos então ao ponto limite do filme. “Quem quer ser um milionário” nos mostra a realidade do favelado, humaniza sua trajetória, cria no espectador a empatia pelo personagem, nos faz torcer por ele e vibrar por sua vitória; tudo isso é bastante louvável e excepcional no cinema, mas é feito no bojo de uma solução narrativa também artificial, que termina por endossar o mecanismo básico do espetáculo e seus pressupostos ideológicos.

O problema começa na forma como Jamal vence o prêmio. Ele acerta a pergunta final no chute, sem realmente saber a resposta. Com isso fica referendada a concepção de que o conhecimento, no seu aspecto acadêmico, formal, livresco, é algo supérfluo, e se pode “vencer na vida” sem ele. A cultura nesse caso aparece como algo que não é de fato necessário, que não enriquece a vida, que não recompensa aquele que se esforça para adquirí-la; enfim, algo que não é preciso conquistar e se pode viver muito bem sem tê-la.

O segundo problema está no próprio conceito do que significa “vencer na vida”, ou seja, ficar milionário. Reforça-se um ideal de realização em que o indivíduo não pode simplesmente ser o que ele é, ele precisa ser como os “vencedores”. Ou o indivíduo é parte da massa miserável, ou é parte da elite privilegiada. O favelado é festejado, mas apenas pelo fato de que ele “vence” e deixa de ser favelado para se tornar milionário.

O terceiro problema, resultante do anterior, é que se acaba referendando assim o culto ao dinheiro e aos bens materiais. É evidente que a miséria material é um mal, mas isso não torna automaticamente um bem a abundância de bens materiais. Especialmente quando tal abundância é resultante das mesmas relações sociais que produzem a miséria, o modo de produção capitalista.

O quarto problema está na idealização do amor romântico. Como numa novela da Globo, em que o final feliz é sempre um casamento (ou pior, vários casamentos), o filme indiano termina numa festa em que o casal de protagonistas fica junto. Ao contrário do que a indústria do romantismo para consumo popular insiste em dizer, o casamento não é onde os problemas terminam, é onde eles começam.

O quinto problema está na frase que encerra o filme, quando aparece a alternativa que responde à pergunta colocada ao espectador logo no começo: “estava escrito”. Isso quer dizer que o destino dos personagens já estava traçado. Com isso, reforça-se a idéia nefasta de que não é o homem que faz sua história, é alguma força sobrenatural que determina o curso dos acontecimentos. Sendo assim, não é preciso se esforçar para modificar a vida, basta se deixar levar. Nesse ponto, “Quem quer ser um milionário” coincide um pouco com outro concorrente do Oscar, “O curioso caso de Benjamin Button”, em que o destino e o roteiro determinam a vida do personagem, sem que ele tenha muita interferência e aprenda algo significativo através da luta.

Por último, e também mais grave, está o fato de que a solução para o problema do favelado é puramente individual. Com toda a ruptura que representa por conta da escolha de seu tema e do retrato humano que faz do personagem, o filme permanece prisioneiro da lógica do espetáculo. As narrativas da indústria cultural reforçam a crença de que “qualquer um pode chegar lá” e impedem o indivíduo de pensar em sua própria vida ao contemplar a vida dos “vencedores” que protagonizam o espetáculo.

Jamal fica milionário, mas a favela continua lá, com o esgoto a céu aberto, lixo, fezes, cadáveres em decomposição, ratos e moscas. Os favelados assistem pela TV e comemoram em toda Índia a vitória de um dos seus, mas continuam favelados. Aceitam assim a permanência de um sistema em que um em 1 bilhão pode ficar milionário, mas os restantes permanecem miseráveis. Um sistema em que um afro-descendente pode chegar a presidente dos Estados Unidos, mas os africanos sucumbem na barbárie das guerras tribais legadas pelo saque do continente realizado pelo imperialismo.

É tudo uma questão de sorte, de destino, de acertar um palpite. Se você for um pré-destinado, parabéns, pois se tornará um milionário. Quanto a nós todos, continuaremos na merda.

 

Daniel M. Delfino

 

15/03/2009

 

 

 

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Boletim 19 – Declaração do Espaço Socialista contra os ataques a Gaza

 No dia 27 de Dezembro de 2008 as Forças Armadas de Israel (cinicamente denominadas Força de Defesa) lançaram um ataque contra a população palestina de Gaza, primeiro por meio de bombardeios aéreos, seguidos logo depois por uma invasão por forças de infantaria. Os ataques provocaram até agora, segundo a imprensa burguesa, mais de mil mortes e milhares de feridos. Mas, pelo poderio bélico do exército israelense e pelo seu desejo de sangue, o número de mortos na realidade o número deve ser bem maior. Os ataques atingem pesadamente a população civil, destruindo residências, escolas e hospitais (inclusive da ONU), matando indistintamente homens, mulheres, crianças e idosos. O pretexto alegado para o ataque seria a repressão aos combatentes do Hamas, cujos ataques ao sul de Israel com mísseis caseiros provocaram a morte de 5 civis. Na realidade, foi o exército de Israel quem rompeu o cessar-fogo de seis meses, recusando-se a levantar o bloqueio contra Gaza e atacando integrantes do Hamas no dia 4 de Novembro, data das eleições estadunidenses.

A população de Gaza, cerca de 1,5 milhão de habitantes, se comprime num exíguo território de 360 km², e ao longo dos últimos anos tem sido vítima de constantes incursões armadas do exército israelense, que tem feito das chacinas uma rotina diária. Como se não bastasse isso, a economia da região tem sido asfixiada pelo bloqueio israelense. Os palestinos sobrevivem praticamente às custas da ajuda humanitária internacional. As instalações elétricas e de tratamento de água tem sido sistematicamente destruídas por Israel. Faltam comida, remédios e água potável. Hospitais, escolas e prédios públicos também tem sido atacados e as instituições da sociedade palestina estão em colapso.

O governo do primeiro-ministro israelense Ehud Olmert está paralisado por denúncias de corrupção e enfrentará eleições em fevereiro. Nada melhor para desviar a atenção do público do que mais uma guerra contra os povos árabes.  Desde sua criação Israel desobedeceu dezenas de resoluções da ONU e zombou do direito internacional e das regras democráticas mais elementares, apoiado no seu poderio militar e no respaldo dos Estados Unidos.

A guerra atual também satisfaz a cúpula das Forças Armadas, humilhadas pela derrota frente ao Hizbolá na guerra que devastou o sul do Líbano em 2006. A política israelense é controlada por uma camarilha militar. Os setores da população israelense que são contra a ocupação dos territórios palestinos são socialmente marginalizados e politicamente impotentes. Ex-generais ocupam quase todos os postos importantes na administração civil e estão em todos os partidos. O serviço militar por dois anos é obrigatório para ambos os sexos.  Com uma população de menos de 7 milhões de habitantes, Israel possui um dos maiores e mais bem armados exércitos do mundo, graças também ao apoio incondicional dos Estados Unidos. O recém-eleito presidente estadunidense Barack Obama já sinalizou em sua campanha que manterá esse apoio incondicional.

A constituição de Israel como um Estado teocrático, em que a cidadania é garantida por filiação religiosa e o expansionismo ilimitado é interpretado como um dever religioso fundado na Bíblia, obedeceu aos interesses dos Estados Unidos de criar um enclave no Oriente Médio, região rica em petróleo. A formação de um tal Estado não teve nada a ver com a luta dos judeus contra o anti-semitismo que os perseguiu durante séculos e que teve sua culminação no Holocausto perpetrado pelos nazistas. Hoje Israel conduz seu próprio Holocausto contra a população palestina.

Os 1,5 milhão de palestinos que vivem em situação de miséria e degradação em Gaza são parte dos mais de 4 milhões de palestinos expulsos de suas terras desde a formação de Israel em 1948 e obrigados a viver como párias e mendigos em campos de refugiados no Líbano e na Jordânia. Nesses mais de 60 anos os palestinos tem sido expulsos de suas terras, privados do acesso à água e às condições elementares de vida. Seus líderes tem sido encarcerados, torturados e mortos. Os palestinos tem sido sistematicamente descritos pela mídia como fanáticos e terroristas, enquanto Israel, uma ditadura militar governada por religiosos de extrema-direita, é apresentado como farol da democracia no Oriente Médio.

Israel e seu mandante, os Estados Unidos, posam de defensores da democracia, mas se recusam a reconhecer o Hamas, que foi democraticamente eleito para administrar os territórios palestinos. Ao invés disso, reconhecem como dirigente dos palestinos o empresário Mahmoud Abbas (que fornece cimento para a construção dos muros israelenses na Cisjordânia), do corrupto partido Fatah. O imperialismo e a mídia querem fazer do Hamas o culpado pelas mortes. Para isso contam com a colaboração dos governos burgueses dos países árabes, em especial do Egito e da Arábia Saudita, marionetes servis do imperialismo, opressores ferozes de seus povos e temerosos da ascensão de grupos radicais islâmicos.

Nós do Espaço Socialista discordamos da linha política do Hamas e de outros grupos e governos fundamentalistas islâmicos, bem como discordamos do terrorismo como método de luta. Como socialistas, consideramos que apenas a mobilização e a auto-organização dos trabalhadores pode trazer uma solução para o povo palestino. Entretanto, reconhecemos o direito dos palestinos à resistência armada e repudiamos a agressão israelense. O governo de Israel repete os nazistas e a luta dos palestinos em Gaza repete a luta dos judeus no gueto de Varsóvia.

A solução dos problemas do povo judeu não está na formação de um Estado Nacional baseado na expulsão e massacre de outro povo. Essa falsa solução transformou o povo judeu, antes elemento de progresso e cultura, em instrumento da barbárie. O povo judeu, que produzia gênios humanistas e cosmopolitas como Marx, Einstein e Freud, depois da criação de Israel passou a produzir monstros como Ariel Sharon, que não deve nada em crueldade aos carrascos nazistas. O nacionalismo e as guerras apenas beneficiam as classes dominantes. São sempre os trabalhadores e o restante do povo que morrem e sofrem, seja nas trincheiras, seja como vítimas dos danos colaterais.

Uma coisa é o povo judeu no mundo inteiro, os trabalhadores judeus, seu passado, sua cultura, sua luta, a tragédia do Holocausto; outra coisa é a burguesia judia e seu Estado de Israel, uma entidade política que não foi criada no vazio, mas construída sobre a base da expulsão, massacre, tortura e degradação de outro povo, que não tem o objetivo de proteger os judeus que para lá foram atraídos, mas de cravar uma adaga no coração do Oriente Médio a serviço da burguesia internacional, em especial estadunidense, judia e não-judia, ligada ao complexo industrial-militar e ao setor petrolífero.

A burguesia judaica estadunidense, que controla parte das finanças e da mídia do principal país imperialista, continuará tranquilamente instalada em Wall Street e em Hollywood, beneficiando-se da pilhagem capitalista do restante do mundo, promovendo uma guerra na qual os outros irão morrer e sofrer, explorando sentimentos religiosos e promessas bíblicas em pleno século XXI. A solução dos problemas dos trabalhadores do mundo inteiro não está nas guerras entre povos por falsos pretextos como religião e territórios, mas na guerra de classes contra a burguesia, pela destruição do capitalismo e pela emancipação humana de todas as formas de alienação.

Não somos contra o povo judeu, somos contra a burguesia e o capitalismo mundial. Somos a favor dos trabalhadores, sejam eles judeus, muçulmanos ou cristãos, na Palestina e no restante do mundo. O Estado de Israel é uma armadilha para os próprios trabalhadores judeus, obrigados a viver em guerra constante contra seus vizinhos palestinos e árabes. Só pode haver paz na região para os trabalhadores judeus e palestinos por meio da derrubada desse Estado e de sua ditadura militar-religiosa e pró-imperialista. Isso só pode acontecer por meio de uma revolução socialista conduzida pelos trabalhadores judeus e palestinos. Defendemos portanto o fim do Estado de Israel e a formação de um Estado palestino laico e multi-étnico, governado por organizações dos trabalhadores judeus e palestinos.

Exigimos o fim dos ataques israelenses a Gaza, o fim do bloqueio econômico aos territórios palestinos. Defendemos o direito dos palestinos de se auto-organizarem e se defenderem da agressão israelense.

O governo Lula, coerente com seu caráter burguês e pró-imperialista, mantém uma ocupação no Haiti por tropas brasileiras tão criminosa quanto a de Gaza por Israel. O governo brasileiro criou um incidente com o Equador para proteger as transnacionais brasileiras associadas ao capital imperialista naquele país. Entretanto, esse mesmo governo se recusa a romper com o Estado terrorista de Israel, que promove crimes contra a humanidade em Gaza. Os trabalhadores brasileiros precisam ser solidários aos seus irmãos no mundo inteiro e isso significa se colocar contra o governo Lula. Os trabalhadores precisam se mobilizar para exigir a retirada das tropas brasileiras do Haiti, a ruptura das relações diplomáticas com Israel, o fim dos acordos comerciais do Mercosul com aquele país, e também construir a mais ampla defesa e solidariedade internacional para com o povo palestino.

Fora as tropas isralelenses da Palestina!

Fora as tropas estadunidenses do Iraque e do Afeganistão!

Por uma Palestina laica, multi-étnica e socialista!

Por uma Federação Socialista dos Povos do Oriente Médio!

Espaço Socialista, Janeiro de 2009

 

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Benjamin Button, uma vida ao contrário, e na direção errada







            O diretor David Fincher e o astro Brad Pitt já trabalharam juntos no eficiente thriller “Seven” e em “Clube da Luta”, um dos melhores filmes da década passada. Nesses dois trabalhos anteriores, se expõe uma visão bastante crítica da experiência humana, para não dizer radicalmente negativa. Essa visão é de certo modo característica do restante da brilhante filmografia do diretor, que se coloca bastante acima da média dos realizadores comuns. Os dois repetem agora a parceria em “O curioso caso de Benjamin Button”, que narra a história de um homem que envelhece ao contrário.

 

            Tendo nascido com o aspecto de um ancião, encarquilhado, quase cego, surdo, com artrite e toda sorte de debilidades físicas que acometem os idosos, Benjamin rejuvenesce conforme cresce, tornando-se um homem velho, depois maduro, adulto, jovem, adolescente, criança, terminando seus dias como um bebê. Tendo sua mãe morrido no parto, ele é repudiado pelo pai, o rico dono de uma fábrica de botões, que o deixa nas portas de um asilo de idosos. Lá ele é adotado pela negra Queenie, que cuida dos idosos no asilo, e que não podia ter filhos.

 

            Nenhuma explicação direta é fornecida para o envelhecimento invertido de Benjamin, e de resto o bizarro fenômeno também não surpreende muito as pessoas que convivem com ele, nem provoca escândalo ou o transforma numa celebridade mundial, o que muito provavelmente teria acontecido em nosso mundo se seu caso fosse real. À guisa de explicação, faz-se alusão a um relojoeiro cego que projetou um relógio que corre ao contrário para ser instalado na estação ferroviária central da cidade. Com isso, o relojoeiro queria fazer retroceder o tempo e reverter a perda de seu filho, que tinha acabado de morrer na I Guerra Mundial. Não é apresentada uma relação direta entre os dois casos, apenas exposta a coincidência de que Benjamin nasceu nesse mesmo ano, 1918, e na mesma cidade, New Orleans.

 

            A capital do jazz foi assolada pelo furacão Katrina em 2005. É nesse exato momento que começa a narrativa. Às vésperas da chegada do furacão, uma idosa que está hospitalizada em estado grave pede a sua filha que leia o diário de Benjamin Button. É por meio da leitura do diário que a história é contada e que se conhece a relação das duas mulheres com Benjamin. O filme transcorre então como uma longa exposição do percurso de toda uma vida, do nascimento à morte.

 

            O percurso de uma vida bastante original fazem deste “Curioso caso” um filme extraordinário para os padrões da indústria. Isto, somado aos seus inegáveis méritos técnicos, a competência da direção, o bom trabalho do elenco, da maquiagem, etc., levaram a 13 indicações para o Oscar, prêmio máximo da indústria. Dadas as características do prêmio (o filme com o maior número de indicações é quase sempre o maior vencedor), “Benjamin Button” deve sair consagrado pela Academia. No deserto de criatividade em que se tornou o cinema comercial estadunidense, o filme de David Fincher é de fato excepcional. Tem a rara qualidade de provocar algum tipo de reflexão, de empatia e identificação do espectador com o destino dos personagens. Entretanto, isso não significa que o filme consiga dar conta de seu objeto satisfatoriamente.

 

            As fragilidades começam no esquematismo do roteiro. Assim como a pseudo-explicação fantástica para o envelhecimento invertido por causa do relógio, todo o restante da narrativa é construído por coincidências e paralelismos. Uma série de fatos convenientemente convergentes se articulam para direcionar o percurso da vida do personagem e sua formação. Vários fatos e contextos se combinam também para influenciar na interpretação que se pode tirar da moral da história. O fato de termos a presença de uma idosa intercalando a narrativa anuncia uma reflexão sobre a inevitabilidade da morte, que cedo ou tarde atinge a todos. Tal inevitabilidade é sublinhada pela presença do furacão Katrina, que nós espectadores já sabemos quão mortífero acabaria sendo, mas que as personagens ainda ignoravam. O furacão adiciona a devida dose de arbítrio ao lembrar como a vida humana é frágil e que não apenas os idosos morrem. Outro fato bastante conveniente é o de Benjamin ter sido criado num asilo, o que permitiu a ele não apenas receber os cuidados geriátricos adequados a sua “infância senil”, mas também partilhar do convívio com os idosos e sua sabedoria, e testemunhar a presença constante da morte.

 

            Diz-se que a infância de uma pessoa termina quando ela compreende que vai morrer. Benjamin testemunha desde cedo a desaparição dos demais hóspedes do asilo e experimenta o sentimento de perda que a morte traz aos que ficaram. Esse ambiente, somado à condição peculiar de alguém que nasceu idoso, teriam contribuído para que ele desenvolvesse algum tipo de percepção especial do percurso da vida. Logo que é acolhido no asilo e examinado por um médico, e antes que se pudesse perceber que ele estava na verdade envelhecendo ao contrário (rejuvenescendo), Benjamin era de fato tratado como alguém que tinha muito pouco tempo de vida, como os demais hóspedes do asilo. Ele teria nascido para morrer em pouco tempo, realizando em forma de piada a frase de Heidegger de que “o homem é um ser para a morte”.

 

            O fato de ter passado os primeiros anos de sua infância acreditando que iria morrer a qualquer momento, sem saber quanto tempo lhe restaria, deveria ter lhe inculcado muito precocemente o sentimento da precariedade da vida, acompanhado da percepção do quanto a vida é preciosa, que por fim se completaria com a lição de que todos os momentos deveriam ser muito bem aproveitados. Isso parece estar acontecendo ao longo da primeira parte do filme, quando Benjamin é uma criança e adolescente com aspecto de um velho, e desfruta todos os momentos e descobertas da vida como dádivas. Ao invés de crescer com a paranóia dos jovens, que querem apressadamente “conquistar o mundo”, ele cresce com a serenidade dos idosos, que apreciam os pequenos prazeres da vida, o sopro de uma brisa, o canto de um pássaro, o colorido de um por do sol. A essa primeira parte pertencem os melhores momentos do filme, como as divertidas reminiscências do homem que foi atingido sete vezes por relâmpagos. Aliás, em sua velhice, a única coisa que restou a este homem é a lembrança dos relâmpagos.

 

Entretanto, a profundidade da temática se desvanece conforme a narrativa avança e a vida de Benjamin se torna comum. Há uma grande dificuldade em mostrar o que ele aprende e o que tem a ensinar quando se torna ele próprio um idoso de verdade.

 

A temática do envelhecimento é estranha ao cinema hollywoodiano tradicional. A indústria cultural não contempla o fenômeno do envelhecimento e da morte natural nas suas narrativas. A morte, quando aparece, é quase sempre “heróica”, em nome de alguma causa, ou acidental, trágica. A morte pura e simples, como resultado natural do esgotamento da vida, é mantida ausente do imaginário coletivo. Há uma negação da morte natural na indústria cultural.

 

            A negação anti-natural da morte resulta em uma falsa afirmação da vida. O cinema esconde o percurso natural da vida no mesmo movimento em que comercializa a vitalidade exuberante de suas estrelas, a juventude, a beleza, o carisma, a sensualidade. Tudo isso é embalado nas narrativas fantásticas do amor romântico idealizado e devidamente arrematado pelos artifícios do final feliz e pelo mito do “viveram felizes para sempre”. As vidas de contos de fadas do cinema são concebidas para funcionar como um precário substituto e antídoto para a vida miserável da maioria dos seres humanos neste mundo bárbaro.

 

            Pensar na morte implica em questionar a vida. A filosofia nasceu com esse propósito, amparar o homem no confronto com sua inescapável finitude. Questionar filosoficamente a vida é uma atitude não muito bem vinda na nossa realidade atual. As narrativas adocicadas da indústria cultural induzem justamente à atitude oposta. O indivíduo compara sua própria vida com a vida idealizada do cinema, das telenovelas, dos romances, e percebe que há uma abissal diferença, mas considera que a causa da inadequação está na sua própria pessoa e não no mundo, e tenta se ajustar como pode.

 

            Aparentemente, Benjamin Button se coloca na direção oposta do cinema comercial, ao trazer uma narrativa que aborda o início e o fim da vida de um homem. Entretanto, o filme não escapa da armadilha de sua própria premissa. O homem que envelhece ao contrário acaba, na verdade, não envelhecendo. O Benjamin maduro, na imagem de um Brad Pitt adolescente, não é um homem maduro, mas um adolescente. Suas decisões e escolhas, sua psicologia e atitudes, sua moralidade não revelam nenhum conflito real, nenhum dilema, nenhuma cicatriz emocional, nenhum tesouro de sabedoria adquirido ao custo de doloroso aprendizado. A imagem prevalece sobre o conteúdo.

 

            O conto de Benjamin Button na verdade realiza a fantasia coletiva do rejuvenescimento. Ele é uma expressão radical do processo de rejuvenescimento dos protagonistas prototípicos do romance na narrativa cinematográfica. Os protagonistas dos grandes romances clássicos do cinema, como os de “E o vento levou” e “Casablanca” eram casais maduros. Os protagonistas dos romances do cinema atual são adolescentes, como os de “Titanic”. A indústria cultural rejeita a idade madura e busca refúgio na juventude.

 

Ao invés de ilustrar o envelhecimento como ganho de conhecimento, Benjamin Button retrata o desejo de juventude como fuga da realidade. Mesmo que essa não tenha sido a intenção consciente de seus autores, como muitas vezes não é no mundo da arte, o filme termina por expressar justamente a compulsão patológica pela juventude, a falsa afirmação da vida e a negação do pensamento e da morte que constituem o grosso da indústria cultural. A contradição do filme com a ideologia predominante na indústria é apenas aparente.

 

            A vida de Benjamin Button transcorre ao longo de todo o “breve século XX” (Hobsbawm), um dos períodos mais conturbados da história, atravessado por revoluções, contra-revoluções, guerras mundiais, guerras de libertação, movimentos, idéias e ideologias que empolgaram milhões de pessoas, transformações sociais, culturais, comportamentais. Nenhum desses acontecimentos o afeta realmente. Ele participa da II Guerra, mas o faz sem opinião própria, apenas porque o capitão do navio em que trabalhava decidiu se engajar na marinha. Ele experimenta as perdas e o drama da guerra, mas permanece quase indiferente.

 

            A História passa por Benjamin sem que ele se deixe afetar, sem que tome posição, sem que se comprometa com qualquer causa ou ideal, sem passar por uma sensação de vitória ou derrota. Benjamin é um ser a-histórico. Ele está tão deslocado do drama histórico da humanidade que resolve de modo também indiferente a questão mais básica para qualquer ser humano, a sobrevivência material. O adolescente/velhinho começa a trabalhar num barco apenas pelo prazer de realizar algo, mesmo que seja uma tarefa considerada degradante e rejeitada por todos os demais, como limpar o convés. O trabalho é uma atividade em si mesma gratificante, quando não realizado sob a compulsão da necessidade. Acontece que, nas atuais circunstâncias históricas, comprometidas pela divisão social do trabalho, ou seja, pela divisão de classes, o trabalho se concretiza como alienação, não como realização, para a quase totalidade dos seres humanos. Benjamin só pode se comportar assim em relação ao trabalho porque teve sua sobrevivência material convenientemente garantida no roteiro, seja pela Fundação filantrópica que mantém o asilo, seja pela herança da fábrica de botões.

 

            Entretanto, Benjamin se relaciona de modo atípico não apenas com as condições sociais e históricas, mas também com a vida pessoal. Nunca fica claro o que o atraiu para a relação com a mulher do espião na Rússia, e por sua vez, o que o tornou atraente para ela. Sua relação com Daisy também transcorre como um casamento convencional. A não ser pelo fato de que também não fica suficientemente claro o motivo que o levou a se afastar da família que havia constituído com a mulher que fora o amor de sua vida.

 

            No final das contas, a mensagem que se transmite não vai muito além daquela que se ouve em comerciais de TV ou livros de auto-ajuda: “nada dura pra sempre”, “viver um dia de cada vez”, “aproveitar cada minuto”. O filme fica nos devendo um personagem que tenha de fato aproveitado sua vida e que tenha algo a nos ensinar ao final de três preciosas horas do nosso tempo.

 

 

Daniel M. Delfino

 

 

08/02/2009

 

 

            Ficha técnica:

Nome original:  The Curious Case of Benjamin Button

            Produção: Estados Unidos

            Ano: 2008

            Idiomas: Inglês

            Diretor: David Fincher

            Roteiro: Eric Roth

            Elenco: Brad Pitt, Cate Blanchett, Julia Ormond, Jason Flemyng, Taraji P. Henson, Mahershalalhashbaz Ali, Elias Koteas

Gênero: drama, fantasia, mistério, romance

Fonte: “The Internet Movie Database” – http://www.imdb.com/ 

 

 

 

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