Jornal 96: O moralismo na questão da organização revolucionária
Um diálogo com Sérgio Lessa 1 As importantes contribuições de Sérgio Lessa para o Jornal Espaço Socialista discorrem com muito
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Leia mais“Os sindicatos trabalham bem como centro de resistência contra as usurpações do capital. Falham em alguns casos, por usar pouco inteligentemente a sua força. Mas, são deficientes, de modo geral, por se limitarem a uma luta de guerrilhas contra os efeitos do sistema existente, em lugar de ao mesmo tempo se esforçarem para mudá-lo, em lugar de empregarem suas forças organizadas como alavanca para a emancipação final da classe operária, isto é, para a abolição definitiva do sistema de trabalho assalariado.” (MARX, Karl. Salário, Preço e Lucro. 1865).
Como vemos, já em 1865, quando o capitalismo estava ainda em ascendência e podia conceder algumas melhorias no nível de vida dos trabalhadores sem comprometer sua existência como sistema, Marx já alertava para a unilateralidade da atuação sindical imediatista, chamando a atenção para a necessidade de que os sindicatos se convertessem em instrumentos da luta dos trabalhadores, no sentido da “abolição definitiva do sistema de trabalho assalariado”.
Aqui, embora Marx não se refira ao papel dos partidos políticos, este fica evidenciado a partir da necessidade de lutar para que os sindicatos cumpram justamente esse papel mais amplo, contra as correntes reformistas que lutam para que os sindicatos fiquem restritos à negociação mais ou menos vantajosa dentro do horizonte do capital.
Essa discussão é fundamental, pois mesmo alguns setores de esquerda que hoje buscam construir uma Nova Central a partir do CONCLAT (Congresso da Classe Trabalhadora) defendem e praticam um sindicalismo que, embora seja de luta, se mostra limitado aos aspectos imediatos, econômicos e corporativos da luta de classes. A maioria da esquerda segue desempenhando o que Marx chamou de “uma luta de guerrilhas contra os efeitos do sistema existente”, deixando de lado porém o combate ao próprio sistema, sua lógica e sua ideologia, não contribuindo assim para a elevação do nível de consciência e organização dos trabalhadores. Mesmo quando em seus discursos afirmam o contrário, sua prática os desmente.
Quando analisamos a prática das principais correntes nos sindicatos e demais entidades que dirigem – PSTU, que dirige a CONLUTAS; e PSOL, que dirige a INTERSINDICAL – salta aos olhos a defasagem do trabalho político e ideológico junto aos trabalhadores. Constata-se o fato de que, mesmo na base dos sindicatos dirigidos por essas correntes, a disputa política e ideológica da consciência dos trabalhadores é muito frágil e a organização de base, a formação da vanguarda são tarefas geralmente desprezadas, em nome da agitação momentânea adaptada aos interesses imediatistas, economicistas, corporativistas.
De acordo com essa concepção de sindicalismo que consideramos limitada, aos sindicatos cabem as lutas imediatas, enquanto, no outro extremo, ao partido cabe a luta pelas questões que dizem respeito aos interesses históricos dos trabalhadores e à luta pelo poder. Essa concepção leva a uma redução do papel e das tarefas que os sindicatos devem cumprir nos dias atuais, e que são ainda mais necessários que na época de Marx.
Em sua crise estrutural, e para justificar sua ofensiva sobre os trabalhadores, o capital precisa aparecer como a única alternativa de sociedade possível, apresentando os interesses de sua reprodução baseada na lucratividade como os interesses maiores que devem ser preservados a fim de que se mantenha a própria sociedade.
Por outro lado, é um fato que há uma enorme crise da alternativa socialista, à medida que a queda dos regimes do Leste Europeu foi erradamente apresentada, e infelizmente apreendida por amplos setores de massas e da vanguarda como a queda do projeto socialista e idealização do capitalismo como a única sociedade possível.
Para complicar as coisas, a maioria das correntes que no passado defendiam um projeto socialista como alternativa ao capital passaram, a partir dos anos 90, a defender o capital como horizonte insuperável – como é o caso do PT da CUT.
A crise estrutural do capital tem eclosões cada vez mais graves de tempos em tempos, com destaque para o momento atual iniciado no final de 2007, e que traz dificuldades ainda maiores de que o capital possa fazer concessões significativas aos trabalhadores, pois encontra-se diante justamente da necessidade de recuperar, ou ao menos impedir que sua taxa de lucro caia ainda mais. Dessa forma, é visível em todos os países, mesmo nas economias centrais, o nível de endurecimento e de ataques da patronal sobre os trabalhadores, que faz com que cada luta, por menor que seja, torne-se uma luta política e ideológica, pois o sistema logo mobiliza o conjunto de suas instituições e forças – econômicas, políticas, ideológicas e militares – no sentido de derrotar qualquer luta e, dessa forma, conter a insubordinação dos trabalhadores.
Assim, a vitória ou derrota até mesmo das lutas mais imediatas está na dependência de que consigam transpor a barreira dos interesses imediatos, econômicos e corporativos, sob pena de caírem no isolamento e serem derrotadas.
É preciso que as lutas específicas superem essa condição, apresentando-se para o conjunto dos trabalhadores como lutas maiores, reclamando soluções mais estruturais para os problemas colocados, soluções estas que apontem para a necessária ruptura com a lógica do lucro e do mercado, ou seja, necessitamos que as lutas imediatas dêem um salto no sentido de sua superação para uma condição de lutas políticas conscientes e conseqüentes.
A partir dessa nova realidade e novos desafios, está totalmente questionado o modelo de atuação sindical limitado que predomina mesmo na esquerda. É preciso que os sindicatos incorporem cada vez mais os papéis políticos e ideológicos que muitas correntes dizem ser apenas dos partidos, sob pena de que as lutas dos trabalhadores fiquem desarmadas em termos de rumos a seguir e em termos de evitar as armadilhas que o capitalismo cria no sentido de impedi-las, desviá-las, derrotá-las. Assim, a separação estanque entre luta sindical e luta política torna-se absolutamente ultrapassada e prejudicial aos combates dos trabalhadores. Todo o tempo que se leve para a superação desse problema estrutural significará mais derrotas e atraso na consciência dos trabalhadores.
É justamente nos momentos de agravamento da crise estrutural do capitalismo que os limites do sindicalismo imediatista, economicista e corporativista se fazem notar mais claramente. Isso porque são nesses momentos que a burguesia lança mão de toda sua carga ideológica, política, jurídica contra os trabalhadores, no sentido de os fazer aceitar os sacrifícios necessários para que o capital continue existindo.
Um exemplo das consequências funestas dessa prática limitada foi a atuação das correntes citadas acima quando a crise econômica bateu forte no Brasil, no início do ano passado. A patronal não hesitou em descarregar o peso da crise sobre os trabalhadores, demitindo milhares, cortando salários e direitos. E nesse momento, os pólos de organização mais à esquerda não conseguiram se apresentar com um projeto alternativo ao projeto pró- patronal da CUT e da Força Sindical, e o que vimos foi que cada categoria ficou lutando isolada, à mercê de suas próprias forças, sem uma campanha maior que unificasse as várias resistências e que apresentasse um projeto alternativo ao da patronal e das burocracias sindicais.
No caso dos metalúrgicos de São José, o lema “demitiu, parou” mostrou- se totalmente insuficiente, ao ser meramente reativo, pois não se antecipava ao problema, deixando de disputar ideologicamente e politicamente a consciência dos trabalhadores com a empresa e o governo, nem apontar uma saída mais estrutural para a crise.
No momento crucial da curta existência da CONLUTAS, que foi o enfrentamento aos ataques advindos a partir da crise em 2009, infelizmente temos que reconhecer que a resposta não esteve à altura das possibilidades, mostrando a falência do sindicalismo imediatista e corporativista. Era preciso realizar uma campanha nacional, que tivesse o envolvimento do conjunto dos sindicatos dirigidos pela esquerda, no sentido de fazer frente às demissões, pois elas tinham um caráter muito mais amplo do que o que era visto. Ao isso não ser feito, e ao não ter havido uma atuação mais qualificada anteriormente – em todos os mais de 20 anos em que o sindicato foi dirigido com acompanhamento direto da direção nacional do PSTU, e que tem prioridade da CONLUTAS -, o fato foi que os trabalhadores agiram da mesma forma que em outros locais cujas direções não são de luta.
Diante das dificuldades provocadas pela falta desse trabalho mais ideológico e político, a orientação da direção da CONLUTAS (PSTU) foi de se juntar à CUT e à Força Sindical, buscando uma “unidade”… e então vimos as cenas deprimentes em que Zé Maria saiu de braços dados com o Paulinho da Força em uma unidade artificial…
Portanto, a necessidade que se apresenta é a de se criar uma nova concepção de atuação sindical, e não apenas uma Nova Central com a mesma concepção que rege a CONLUTAS e a INTERSINDICAL, embora saudemos o quanto progressivo é a criação dessa central para os trabalhadores. É preciso um novo sindicalismo que ao mesmo tempo defenda as questões imediatas e, de forma combinada, aponte os caminhos e propostas no sentido da superação do capitalismo.
Assim, tudo aquilo que contribua para a construção da subjetividade dos trabalhadores e de sua consciência, formação e organização política e ideológica deve ser impulsionado.
Abrir mão da disputa de consciência dos trabalhadores significa deixar para a burguesia o domínio que ela já possui no campo das idéias.
Isso significa, portanto, o fim dos partidos e das organizações políticas? De forma alguma! A tarefa de elaborar e propor programas, estratégias e políticas para as lutas e para os sindicatos a partir de posições programáticas e estratégicas mais definidas em base a uma compreensão científica da realidade, bem como a preocupação em apontar a necessidade de que os trabalhadores venham a assumir o controle geral da sociedade rumo ao socialismo, continua sendo papel insubstituível dos partidos e organizações revolucionárias, até mesmo porque no interior dos sindicatos e no interior das categorias ocorrem disputas, seja contra as concepções de direita, como contra as de esquerda equivocadas.
Assim, a superação da atividade sindical estreita não significa nenhuma redução do papel dos partidos/organizações revolucionárias.
Aos partidos cabe a elaboração mais estrutural, tanto no tempo como no alcance da totalidade da realidade da luta de classes. Seu papel político é fundamental, intervindo não apenas no interior dessas organizações como na relação direta com a classe trabalhadora. Portanto, não se trata da redução do papel dos partidos e sim da ampliação do papel dos sindicatos e organizações dirigidos pela esquerda. Também não se trata de borrar as fronteiras entre as prerrogativas dos partidos e dos organismos de luta da classe. Os partidos devem levar sua contribuição aos organismos de luta, o que é radicalmente diferente da prática de aparelhar as entidades e usá-las como correia de transmissão das propostas de uma única organização. Os organismos da classe precisam ter sua autonomia decisória preservada, tirando suas deliberações em suas próprias instâncias, que devem respeitar as propostas de todas as organizações que colaboram na construção do movimento e também de trabalhadores não vinculados a nenhum partido.
Os trabalhadores devem exercitar em suas lutas e organizações os elementos fundamentais de sua forma de poder coletiva futura, exercendo a democracia operária nas condições concretas das lutas existentes, a fim de que se preparem para exercê-las em condições muito mais duras em um processo revolucionário. Ao mesmo tempo, precisam testar seus dirigentes, mantê-los, revogá-los, bem como testar e problematizar as táticas e estratégias mais bem sucedidas no calor das próprias lutas. Trata-se afinal de lutar pela reconstrução da subjetividade da classe.
A classe trabalhadora não ter conseguido manter coletivamente seu poder demonstrou-se o principal fator que possibilitou os processos de burocratização que destruíram a possibilidade de que os estados do Leste Europeu – a Rússia em primeiro lugar -, pudessem se manter como estados operários e referência para os trabalhadores do mundo, burocratizando-se e tornando-se regimes avessos ao avanço da luta pelo socialismo.
Outros elementos fundamentais da reconstrução da subjetividade dos
trabalhadores, melhor desenvolvidos em nossa Tese para o CONCLAT e em Nosso
Perfil Programático (ambos presentes em nosso site
(www.espacosocialista.org) são:
A relação Partido e Movimento é um tema crucial na luta pelo socialismo. A depender da concepção sobre o tema tem consequências graves para a luta de classes, como a "apropriação" das entidades do movimento pelo partido. Esse é um debate fundamental para os ativistas e para as organizações revolucionárias. Internamente também fazemos esse debate e como contribuição, publicamos o texto do companheiro Márcio da Oposição Bancária de São Paulo. Ao mesmo tempo convidamos os demais companheiros para participarem desse debate. |
As diversas tradições trotskistas tem como um ponto comum a idéia de que é necessário construir o partido revolucionário, como garantia de que a a revolução socialista seja bem sucedida. Essa idéia, que em si está correta, tem sido aplicada de uma maneira unilateral, como se a única tarefa fosse a construção do partido, a qual acaba se sobrepondo às necessidades do movimento socialista como um todo. O objetivo desse texto não é evidentemente fazer um balanço do trotskismo na sua totalidade, mas discutir um aspecto problemático da atuação da maior parte das correntes trotskistas, a sua concepção da relação entre partido e movimento.
Quando Trotsky disse em 1938 que "a crise da humanidade é a crise de sua direção revolucionária", essa afirmação tinha o sentido de apontar para o fato de que o proletariado como classe revolucionária capaz de trazer uma alternativa societária para a humanidade estava em crise, e essa crise incluía a ausência de uma organização política. Foi para suprir essa ausência que o grande dirigente revolucionário lançou a iniciativa da construção da Quarta Internacional. Na visão de Trotsky, a função da IV seria liderar uma revolução política que derrubasse o stalinismo dos "Estados operários burocratizados", retomando a construção do socialismo sobre uma base social já transformada.
Deixando de lado as questões a respeito da validade da caracterização da URSS e seus satélites como "Estados operários burocratizados" e da revolução anti-burocrática ser concebida exclusivamente como "revolução política" pelo fato de já se ter uma base social supostamente socialista; o fato é que as diversas correntes que reivindicam o trotskismo passaram a ter como eixo praticamente exclusivo de sua ação a construção de um "partido revolucionário marxista-leninista-trotskista" para tomar o poder.
Em nome dessa preocupação exclusiva, deixou-se de lado o estudo das condições concretas e a ação sobre a consciência do conjunto da classe trabalhadora. Quando aconteceu o desmantelamento da URSS, surgiu no movimento trotskista a caracterização (cuja versão mais acabada está nas "Teses de 1990" da LIT) de que estava aberta uma nova etapa revolucionária, pois havia sido removido o maior obstáculo para a revolução, que era a burocracia stalinista. Essa caracterização mecanicista e superestrutural ignorava o elemento estrutural central que era a defasagem na consciência da classe trabalhadora dos países do ex-bloco soviético, ou seja, a ausência de uma consciência socialista sobre a qual se poderia edificar um partido revolucionário. Essa caracterização equivocada e os apelos vazios à construção do partido para tomar o poder, num contexto de derrotas objetivas e retrocessos subjetivos da consciência da classe em nível mundial, foram responsáveis por desnortear e "quebrar" toda uma geração de militantes. A despeito disso, as correntes trotskistas continuam reivindicando a construção do partido como se nada tivesse acontecido na consciência da classe. Quanto mais a crise de direção se tornava patente como algo mais profundo e estrutural, uma crise da alternativa socialista, mais essas correntes se apegam à obsessão da construção do partido como a um dogma religioso (com o agravante de que cada militante acredita que o seu partido é "o escolhido" pela revolução para guiar a classe trabalhadora à vitória. A partir disso, os partidos passam a ter uma relação estranha com os organismos de luta da classe, como se o movimento operário e seus organismos fossem um "mercado" de militantes a serem disputados pelas organizações revolucionárias para o crescimento do partido, tal e qual os capitalistas se engalfinham na disputa de mercado para seus produtos. Essa prática está na origem da divisão da esquerda. Como cada organização socialista vê a outra como concorrente, vale tudo nesta disputa. Valem desde manobras para que a base não participe, usurpando a vontade dos trabalhadores, até encaminhar propostasSS, surgiu no movimento trotskista a caracterização (cuja versão mais acabada está nas "Teses de 1990" da LIT) de que estava aberta uma nova etapa revolucionária, pois havia sido removido o maior obstáculo para a revolução, que era a burocracia stalinista. Essa caracterização mecanicista e superestrutural ignorava o elemento estrutural central que era a defasagem na consciência da classe trabalhadora dos países do ex-bloco soviético, ou seja, a ausência de uma consciência socialista sobre a qual se poderia edificar um partido revolucionário. Essa caracterização equivocada e os apelos vazios à construção do partido para tomar o poder, num contexto de derrotas objetivas e retrocessos subjetivos da consciência da classe em nível mundial, foram responsáveis por desnortear e "quebrar" toda uma geração de militantes.
A despeito disso, as correntes trotskistas continuam reivindicando a construção do partido como se nada tivesse acontecido na consciência da classe. Quanto mais a crise de direção se tornava patente como algo mais profundo e estrutural, uma crise da alternativa socialista, mais essas correntes se apegam à obsessão da construção do partido como a um dogma religioso (com o agravante de que cada militante acredita que o seu partido é "o escolhido" pela revolução para guiar a classe trabalhadora à vitória.
A partir disso, os partidos passam a ter uma relação estranha com os organismos de luta da classe, como se o movimento operário e seus organismos fossem um "mercado" de militantes a serem disputados pelas organizações revolucionárias para o crescimento do partido, tal e qual os capitalistas se engalfinham na disputa de mercado para seus produtos. Essa prática está na origem da divisão da esquerda. Como cada organização socialista vê a outra como concorrente, vale tudo nesta disputa. Valem desde manobras para que a base não participe, usurpando a vontade dos trabalhadores, até encaminhar propostas do partido DIRETAMENTE no movimento, sem passar pelos fóruns deliberativos dos organismos da classe. Também é comum colocar como condição para a unidade o controle (maioria) sobre a direção das entidades do movimento. Discutiremos a seguir três exemplos relacionados a atitudes de três organizações em acontecimentos recentes do movimento: PSOL, PSTU, e LER-QI.
Antes de desenvolver os exemplos acima, é preciso deixar claro que: 1-os casos relacionados aos partidos acima são apenas exemplos, pois a prática de aparelhar os organismos do movimento é disseminada por toda esquerda; 2- o Espaço Socialista não vê tais siglas como inimigas, mas como aliadas, por terem um projeto estratégico socialista. A divergência paira sobre a relação que os partidos tem com o movimento, que entendemos ser equivocada.
Sob a alegação de combate ao burocratismo de seus militantes, que também são dirigentes sindicais no Rio Grande do Norte, o PSTU colocou como condição para que permanecessem no partido a renúncia à direção do sindicato para o qual foram eleitos pelos trabalhadores. Em respeito à soberania da base, os dirigentes sindicais optaram por permanecer nas direções dos sindicatos e saíram do partido.
Não entraremos no mérito da caracterização da direção nacional do PSTU sobre o burocratismo dos diretores sindicais, mas sim no problema de método que está em exigir a renúncia dos diretores sindicais em fóruns estranhos aos do organismo de luta dos trabalhadores, no caso, o sindicato. Isso é um atentado à democracia operária e não contribui para a educação das massas. Para se ter uma luta conseqüente contra a burocratização, o máximo que o partido poderia fazer seria expulsar os dirigentes burocratizados e denunciar perante a base os desvios desses dirigentes, travando a luta política para que os trabalhadores, de forma consciente, destituíssem os diretores tidos por burocratas. O PSTU optou por simplesmente desligá-los, o que revela que para o partido é normal fazer ingerências nos organismos de classe onde seus militantes exercem função de direção ou são maioria, como alguém que dispõe livremente que é "seu".
O PSOL, que é a direção política da INTERSINDICAL, coloca uma série de óbices para fazer unidade com a CONLUTAS, cuja direção é do PSTU, numa frente sindical e de movimentos populares. As diferenças "políticas" estão em torno da definição de qual organização terá maioria e de saber se há espaço suficiente para acomodar os maiores quadros de cada partido. Setores do PSOL claramente aparelhistas (sobretudo aquelas correntes que são aliadas da Articulação, como as que fizeram chapa com a burocracia nas eleições para os sindicatos dos bancários de São Paulo e do Rio), não querem saber de unificação, com medo de perder os seus cargos. Usam o movimento em proveito próprio.
No caso do Encontro dos Trabalhadores do ABC que deliberou pela construção do Comitê Contra o Desemprego e a Exploração Capitalista, a Liga Estratégia Revolucionária Quarta Internacional (LER-QI) colocou como condição para sua participação no Encontro o critério de que os participantes fossem delegados eleitos na base, ao invés de uma participação aberta a todos. Como a sua proposta foi derrotada, a organização se retirou da construção da unidade da região do ABC Paulista. No caso, o critério da eleição foi apenas uma desculpa para não participar, uma vez que os companheiros consideram, de forma equivocada, que o Comitê é um aparelho a serviço da construção do próprio Espaço Socialista, que é um dos seus maiores impulsionadores. Ou seja, a LER-QI não participou da construção do Encontro porque entendeu que isso significaria construir o ES e não ela própria. Ao invés de aproveitar a oportunidade para educar os trabalhadores e construir o movimento em conjunto com outras organizações, a LER-QI optou por se retirar ao perceber que não poderia "tirar proveito" do movimento.
Finalmente, no processo de formação de chapas para o diretório acadêmico da FAFIL (Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Fundação Santo André – FSA), o grupo formado pelo Espaço Socialista e independentes, ligados à gestão anterior do DA e que aglutina os principais ativistas do movimento de 2007 e 2008 (o qual culminou no afastamento do antigo reitor); propôs uma convenção aberta para formação de uma chapa unitária da esquerda, com base em um programa mínimo e em princípios elementares de independência de classe, como não aceitar dinheiro da reitoria para financiar a ida de delegados da FSA para o Congresso Nacional de Estudantes. PSTU e LER não aceitaram esses critérios e a esquerda concorreu em três chapas separadas. Isso expôs os estudantes da FAFIL à possibilidade de ter o DA dirigido por uma 4ª chapa, composta por estudantes dos cursos politicamente hostis ao movimento. Felizmente, apesar da divisão da esquerda, a chapa composta pelo Espaço Socialista e independentes foi eleita.
Também consideramos que a construção do partido revolucionário é necessária, mas para nós o partido deve estar a serviço do crescimento do movimento. Não se trata de marginalizar o papel do partido, nem de subordiná-lo ao movimento, mas de fixar de forma clara os limites de atuação dos partidos nos organismos de luta da classe trabalhadora. Assim, consideramos errado que os partidos encaminhem suas propostas sem passar pelo crivo dos organismos do movimento, ou seja, pelas assembléias e instâncias deliberativas de base.
Esse tipo de postura faz com que muitos trabalhadores abandonem a luta, porque se sentem como marionetes na disputa entre os partidos, como objetos de disputa das organizações. Muitos trabalhadores também se frustram por não serem ouvidos, não terem participação na construção do movimento, não terem influência na direção do movimento, pois tudo é decidido nos fóruns internos do partido que dirige a entidade, e as decisões já vêm "prontas" de cima para baixo.
Isso não significa que os partidos não devam participar dos movimentos. Pelo contrário. É um dever dos partidos inserir- se nos organismos de luta da classe, mas com um papel muito bem definido, que é o de educar a classe trabalhadora para a tomada do poder. Assim, o partido tem uma função precisa no movimento, mas não pode de substituí-lo.
A unidade entre os lutadores é um princípio a ser seguido por todos os partidos, pois isso é necessário para que os trabalhadores tenham uma referência, um movimento no qual possam se engajar e se colocar como sujeitos do processo histórico. A necessidade da unidade deve estar acima das preocupações desta ou daquela organização em particular de ser maioria ou minoria nas entidades e nos fóruns da classe. Nós do Espaço Socialista não cansamos de chamar o PSOL e o PSTU para construir um fórum de resistência à crise no ABC, mesmo estando conscientes de que seríamos minoria. Mais tarde este fórum viria a ser o Comitê Contra o Desemprego e a Exploração Capitalista, ao qual o PSTU e outras organizações não se integraram. Mesmo assim, continuamos chamando todas essas organizações para construir um polo político na região que tenha um caráter de oposição classista contra a burocracia, ainda que em tal polo o Espaço Socialista seja minoria. Para nós, o mais importante é construir e educar a base, para que ela, sim, seja o sujeito da história.
Leia maisAs revoluções da história do cinema
Periodicamente, a cada uma ou duas décadas, o cinema passa por revoluções que atualizam sua capacidade de funcionar como a arte típica da sociedade capitalista moderna e expressar seus dilemas e contradições. Esbocemos sumariamente algumas dessas revoluções:
– A primeira delas foi a própria invenção do cinema como veículo para contar histórias, saindo do submundo das curiosidades circenses para se tornar um ramo independente da indústria cultural com regras, métodos e cânones próprios. Esse processo de construção do cinema como instrumento da arte narrativa passa pelas criações de Méliès, Griffith, Chaplin, Eisenstein, o movimento expressionista, até alcançar a maturidade com Orson Welles e seu “Cidadão Kane”.
– A invenção do cinema falado no fim dos anos 1920.
– A introdução das cores no fim dos anos 1930.
– O aperfeiçoamento nas técnicas de projeção nos anos 1950 (CinemaScope, Cinerama, 3D), na tentativa de fazer frente à concorrência da televisão.
– A revolução temática impulsionada pela explosão das cinematografias não-hollywoodianas (neo-realismo, nouvelle vague, cinema novo, Fellini, Kurosawa, Bergman, Kubric, etc.) no pós-II Guerra e nos anos 1950.
– A chegada dessa revolução temática a Hollywood pelas mãos da contra-cultura, na virada entre os anos 1960 e 70, deixando para trás a inocência dos musicais e contos de fadas com final feliz obrigatório. O cinema se tornou capaz de falar da vida de pessoas reais e abordar abertamente certas questões sociais, com marcos como “Adivinhe quem vem para jantar?”, “Sem destino”, “Uma rajada de balas”, “A primeira noite de um homem”, até chegar ao “Poderoso chefão”.
– A revolução dos efeitos especiais entre os anos 1970 e 80, cujos maiores expoentes são as trilogias “Guerra nas Estrelas” e “Indiana Jones”.
Conhecedores mais profundos da história do cinema poderão completar e precisar essa lista e enriquecê-la com muitos outros exemplos. Mas tal debate alongaria demais esse texto e o desviaria de seu propósito.
Voltemos à última “revolução” indicada. O desenvolvimento dos efeitos especiais foi tido como uma resposta ao surgimento dos videocassetes (assim como nos anos 1950 fora preciso responder à massificação da televisão). Era preciso criar um espetáculo suficientemente grandioso para concorrer com o conforto do vídeo doméstico e motivar os espectadores a sair de casa para continuar freqüentando as salas de cinema.
Na época esse fenômeno foi interpretado por Pauline Kael (reputada como a maior crítica de cinema estadunidense) como a verdadeira morte do cinema, pois os filmes passariam a estar cada vez mais baseados nos efeitos visuais do que na história.
Coerentemente com essa interpretação “apocalíptica”, vimos cada vez mais as salas de projeção serem invadidas por filmes de ação, aventura, fantasia, ficção científica e histórias em quadrinhos, que se sustentam em efeitos visuais e secundarizam a expressão da realidade humana. Assim como o cinema deslocou o teatro para uma espécie de gueto habitado por remanescentes cultuadores das antiguidades culturais, o cinema de efeitos especiais transformou os filmes que tratam de pessoas reais num segmento apreciado por uma restrita tribo de cinéfilos, seguidores de produções independentes, européias, asiáticas, sulamericanas, etc.
A obra de James Cameron
Toda essa digressão sobre a história do cinema se propõe a preparar o terreno para a tentativa de localizar o significado do filme “Avatar”, de James Cameron. Passemos rapidamente em revista a obra desse diretor. Cameron foi um dos protagonistas da revolução dos efeitos especiais com “O Exterminador do Futuro”, de 1984, obra impulsionada por uma história originalíssima, de profundo impacto e marcante influência no imaginário da época (influência que perdura até hoje), culturalmente representativa do último surto da Guerra Fria e embalada por uma narrativa de suspense bastante eficiente, elementos que o tornam um clássico. A partir desse sucesso inicial, Cameron desenvolveu uma carreira pouco prolífica, mas repleta de títulos que o tornaram sinônimo de ambição e inovação: “Aliens, o resgate”, “Segredo do abismo”, “O Exterminador II”, “True Lies”, “Titanic” e agora “Avatar” (tornaram-no também titular da minha lista pessoal de diretores preferidos, fato que não tem a menor importância, mas para quem ficou curioso aqui vai: Martin Scorcese, Ridley Scott, Oliver Stone, Tim Burton e David Fincher).
A curta filmografia de Cameron inclui os 2 filmes de maior bilheteria da história (o recorde de “Titanic” estava sendo superado por “Avatar” no momento em que este comentário era finalizado), fato este sim da maior relevância para os executivos de Hollywood e para a votação dos prêmios Oscar. E tal filmografia inclui ainda os marcos de mais duas revoluções na história do cinema, ou pelo menos dentro da atual fase da história:
– “Exterminador II”, primeiro exemplar de utilização maciça e bem-sucedida de imagens geradas em computador (conhecidas pela sigla em inglês “CGI”), que causou escândalo na época pelo seu elevado custo de produção (mais de U$ 100 milhões, marca esta tornada rotineira a partir de então).
– O próprio “Avatar”, filme quase inteiramente feito em CGI e concebido para ser apreciado em 3D.
O paradoxo da técnica
No que se refere à técnica cinematográfica, “Avatar” é indubitavelmente um salto adiante. As diversas revoluções técnicas do cinema citadas acima acrescentaram sucessivos aperfeiçoamentos à sua capacidade de funcionar como uma armadilha sensorial que suspende o espectador da sua relação com o mundo real e o arremessam no universo da fantasia. A sala escura, a tela gigante, a luz em que brilham os astros e estrelas, o volume ensurdecedor do som, a trilha sonora cuidadosamente arquitetada para conduzir as emoções, o ritmo da edição, a profusão dos efeitos especiais, ganharam nas últimas décadas a companhia das imagens em CGI e no caso em questão, da profundidade em três dimensões. Essas sucessivas inovações técnicas, nas quais aliás Cameron tem demonstrado inigualável aptidão, dotaram o cinema das ferramentas necessárias para reproduzir na tela as fantasias mais delirantes que o cérebro for capaz de criar.
Os elementos criativos que povoam a história de “Avatar” (colonização interplanetária, engenharia genética, controle da mente sobre outro corpo, raças de humanóides descendentes de felinos com 4 metros de altura e ossos de fibra de carbono, que moram numa aldeia-árvore e são capazes de se comunicar com animais e vegetais, que cavalgam em dragões e voam entre montanhas flutuantes) são lugares-comuns em vários nichos da ficção científica, como os contos da lendária revista de quadrinhos alternativos “Heavy Metal”. Claro que, para tornar o filme palatável para as grandes audiências, Cameron teve que retirar quase todo o sexo, violência, provocação política e amoralidade que caracterizam aquela publicação, retirando também a vulgaridade e futilidade em que os elementos acima costumam vir empacotados na revista. “Avatar” é Heavy Metal em embalagem da Disney.
A simplicidade quase banal da história e a falta de originalidade tem rendido a Cameron uma série de processos por plágio. Entretanto, a confiança do diretor em sua capacidade técnica o fez desdenhar impavidamente esses contratempos insignificantes e se dar ao luxo de se esbaldar com o brinquedo, dando livre curso a algumas das suas obsessões típicas já exploradas em filmes anteriores: o ambiente militar, a ética dos soldados, a parafernália tecnológica armamentista, os limites da ciência (e as criaturas bioluminescentes, como o absurdo “inseto-cóptero” que passeia no filme), etc.
“Avatar” representa a chegada ao patamar histórico em que qualquer coisa que pode ser imaginada pode também ser filmada de modo tecnicamente convincente, o que coloca em pauta uma outra questão: o hiper-realismo proporcionado pela técnica cinematográfica acrescenta credibilidade à fantasia ou destrói a sua fecundidade, já que não deixa nada ao espectador para ser livremente imaginado? Ou dito de outra forma, porque o cinema fantástico-hiper-realista deve ser considerado um avanço em relação ao teatro de bonecos, se este pode ser tão eficiente quanto aquele na sua tarefa fundamental, que é contar uma história?
O culto da novidade e da técnica como substitutos da vida é mais um sintoma da patologia social contemporânea, da qual “Avatar” é mais uma confirmação. Mas é uma confirmação invertida, pois a moral da história é justamente… a volta à natureza!
Esse paradoxo é o grande achado de “Avatar”. O homem adquire a capacidade de viajar pelo espaço, conservar-se vivo em sono criogênico, colonizar outros planetas, construir e reconstruir corpos por engenharia genética, controlar remotamente um outro corpo, etc., mas o seu objeto de desejo é retornar à mesma relação com a natureza que os índios praticam: caminhar descalço pela floresta, beber água coletada da chuva pelas folhas das árvores, dormir em rede, contar histórias em torno da fogueira…
A hipótese apocalíptica
Para explicar esse paradoxo, é preciso entrar na discussão sobre a relação do cinema com o contexto político-ideológico. Dentre os filmes de Cameron, “Avatar” é uma espécie de antípoda do primeiro “Exterminador”, pois se aquele contava com uma história poderosa e efeitos que hoje podemos considerar precários, este possui um visual absolutamente deslumbrante e uma história sofrível. Ponto para Pauline Kael? Depende.
A hipótese apocalíptica que explica a decadência artística do cinema pelo abuso da técnica dos efeitos especiais tem uma contraparte dialética que consiste no fato de que a extrapolação da corrida tecnológica para o cinema corresponde proporcionalmente à vigência dessa mesma corrida tecnológica na vida social em geral. Não é apenas o cinema que se tornou irreal, mas a vida real que se tornou cinematográfica, espetacular, fantástica, ilusória e instável, no contexto histórico do capitalismo plenamente mundializado, o que vale dizer, plenamente atravessado pela aceleração explosiva das suas contradições constituintes. Nesse sentido, o cinema mais espetacular e irreal pode ser também o produto ideológico mais típico e ilustrativo de determinados fenômenos sociais muito reais. Isso atualiza o valor crítico do cinema e da crítica de cinema, ainda que o cinema em questão venha à tela completamente despido de intenções críticas; e demonstra também a impossibilidade de se fazer crítica de cinema e de arte com alguma seriedade e coerência sem uma perspectiva crítica do conjunto da vida social.
O paradoxo técnica X natureza em “Avatar” o torna culturalmente significativo a ponto de merecer a qualificação de obra revolucionária, para além do aspecto cinematográfico e do recorde de bilheteria. Para avaliar esse significado cultural, é preciso relacionar sua narrativa aos discursos ideológicos em voga. A história do filme, que já foi descrita como “Pocahontas no espaço”, é um completo clichê: soldado se apaixona por nativa e se volta contra os colonizadores dos quais era parte. Essa mesma história já foi contada antes muitas outras vezes, merecendo destaque pela profundidade antropológica e paixão humanista um outro clássico do cinema recente: “Dança com lobos” (outro fato sem a menor relevância: primeiro filme que me fez chorar).
O que torna essa narrativa culturalmente significativa é o acréscimo da questão ambiental. O ambientalismo é o bom-mocismo do século XXI. É a causa que aparentemente unifica a todos, gregos e troianos (veremos que não é bem assim nas próximas seções deste texto), o que ajuda a explicar o sucesso do filme (e o recorde de bilheteria), para além do refinamento visual. Ao colocar de um lado a defesa da natureza e de outro a sua destruição, “Avatar” fornece ao público heróis para os quais torcer e vilões aos quais odiar, e não há nada que o grande público aprecie mais do que heróis virtuosos derrotando vilões odiosos. Sem isso, não há efeitos especiais que bastem para construir um sucesso artístico e comercial dessa magnitude. Mesmo sendo rasa, banal, repetitiva, pouco criativa, a narrativa central de “Avatar” fornece ao espectador uma experiência dramática gratificante, ou seja, boa diversão.
Gregos e troianos?
A consagração artística e comercial do ambientalismo em “Avatar” (através de uma overdose de técnica cinematográfica) representa ainda uma espécie de “vingança estética” contra a era Bush. O discurso dos vilões do filme é literalmente o mesmo dos sinistros personagens que povoaram os noticiários na década de 2000, os procônsules estadunidenses no Oriente Médio e os executivos rapaces da Enron, Halliburton, AIG, Lehman Brothers e Cia. O executivo que dirige a exploração do mundo de Pandora em “Avatar” diz que tudo o que importa para os acionistas é o balanço trimestral, a mesma obsessão dos especuladores trazidos à berlinda pela atual crise econômica. O coronel que chefia a milícia particular da empresa diz que se deve “combater o terror com terror”, a mesma coisa que os Estados Unidos fizeram no Iraque e no Afeganistão (e em Guantánamo ou em outras bases secretas nas quais torturaram “suspeitos de terrorismo”) ou que Israel fez contra Gaza.
Dando mostras do quanto está sintonizado com o sentimento anti-Bush ainda presente na opinião pública mundial, “Avatar” dá a pista dos próximos alvos da “guerra ao terror”, quando lembra que o protagonista, antes de ser mandado para o espaço, serviu na Venezuela, enquanto o coronel servira na Nigéria, ambos “coincidentemente” produtores de petróleo. Ao aterrissar em Pandora, o ex-fuzileiro paraplégico ainda acredita que na Terra as forças armadas estadunidenses estão “lutando pela liberdade”, sendo que a corrupção dos soldados no processo da colonização seria causada apenas pelo fato de estarem servindo como mercenários de uma empresa privada.
Algumas de suas falas poderiam ter saído da boca de um veterano do Iraque dos nossos dias de crise econômica e desemprego galopante nos Estados Unidos, quando diz que seria possível reparar sua espinha para que pudesse voltar a andar, “mas não nessa economia, não com essa pensão”. Gradualmente o protagonista muda seu ponto de vista sobre o mundo de onde veio, pois passa-se para o lado dos nativos. Supera-se também aos poucos a hostilidade mútua entre o soldado e os cientistas. A separação entre o homem de pensamento e o homem de ação, entre trabalho intelectual e trabalho braçal, típica da cultura estadunidense, também é vencida no filme, conforme o soldado se torna capaz de refletir (o videolog mostra-se uma ferramenta bastante útil, mas também perigosa) e os cientistas de se engajar numa rebelião contra a corporação.
Cameron também subverte outro padrão típico da cultura estadunidense, retirando as mulheres do seu papel subalterno tradicional e dando-lhes funções decisivas, o que aliás é um dos traços mais marcantes da sua filmografia. Em todos os seus filmes há personagens femininas fortes, que não ficam atrás dos protagonistas masculinos, seja em inteligência ou desenvoltura. Em “Avatar”, temos a cientista-chefe e até a piloto de helicóptero, mas o destaque fica para a guerreira nativa, capaz de desafiar as tradições de seu povo para unir-se ao estrangeiro por quem se apaixonou.
Há outros traços “politicamente corretos” e pós-modernos em “Avatar”, como a concessão que se faz à religião, quando a “mãe natureza” se envolve pessoalmente no combate, enviando um exército de criaturas para enfrentar os humanos, ainda que se faça um esboço de explicação científica para a experiência mística de comunicação com a divindade-natureza vivenciada pelos Na’vi. A mesma concessão à religião, as mesmas boas intenções e o mesmo paradoxo de técnica X natureza comentado duas seções acima já foram vistos antes em “Final Fantasy”, tentativa pioneira e infeliz de substituir atores reais por CGI que fracassou estética e comercialmente. Prova de que é preciso algo mais do que boas intenções e propostas politicamente corretas para que um filme possa funcionar. “Avatar” oferece esse algo mais, expondo uma ilustração um pouco mais radical das contradições sociais.
“Cedo ou tarde, sempre temos que acordar”, aprende o fuzileiro. A operação de exploração mineral em Pandora é uma metáfora de todas as invasões imperialistas no planeta Terra. Repete-se ali o mesmo processo que se desencadeou sobre a América, a África e a Ásia, onde se destruíram povos, culturas e ecossistemas em busca de riquezas efêmeras, com a diferença de que, na batalha de Pandora, os nativos venceram. E o público que lotou os cinemas do mundo inteiro para dar a “Avatar” o recorde de bilheteria torceu pela vitória dos nativos. Eis uma novidade ideologicamente significativa, que sinaliza a vitória política do ambientalismo.
Entretanto, qual é a conclusão a que a vitória dos nativos pode nos levar? Devemos abandonar a tecnologia e voltar a viver como os índios? Será que “caminhar descalço pela floresta, beber água coletada da chuva pelas folhas das árvores, dormir em rede, contar histórias em torno da fogueira…” devem ser o nosso ideal de felicidade e realização humana? Todo o progresso técnico realizado até hoje deve ser jogado fora, pois representa um pecado contra a inviolabilidade da mãe-natureza? Toda a ciência, a arte, a cultura, a humanização do mundo, o conforto, são inseparáveis dos males que o homem provocou?
Trabalho alienado e natureza
Para responder a essas perguntas, é preciso recorrer a uma perspectiva histórica concreta. Não existe tecnologia (nem arte, nem religião, etc.) que não esteja envolvida no contexto de determinadas relações sociais. O problema das agressões da nossa tecnologia contra a natureza não está na tecnologia em si, mas no propósito social que dirige a sua utilização. A tecnologia é apenas uma ferramenta a serviço de uma lógica social, que determina o que deve ser produzido e de que forma, e em proveito de quem. A lógica que dirige a utilização da tecnologia em nossa sociedade é a da acumulação de capital.
Portanto, não é “o homem” abstrato que agride a natureza, mas quem o faz é o homem histórico e concreto, o homem envolvido em relações de produção social e historicamente determinadas, o homem envolvido nas relações capitalistas (para as quais inconscientemente se dirige a condenação moral estetizada em filmes como “Avatar”). A relação destrutiva com a natureza (e portanto auto-destrutiva) posta em prática pelo homem é uma decorrência das relações de trabalho alienado. O paradoxo técnica X natureza que viemos debatendo se enraíza em contradições muito profundas, que requerem uma adequada contextualização antropológica e filosófica do trabalho alienado.
O trabalho é a atividade que diferencia o homem dos demais animais. O homem se torna humano por meio do trabalho, que se define como atividade previamente ideada, ou seja, consciente. Ao contrário dos demais animais, cuja atividade é inconsciente, instintiva, repetitiva e imutável, o homem altera o mundo com seu trabalho e ao fazer isso altera também a si mesmo. Por ser a única espécie capaz de alterar o mundo e a si mesmo, só o homem possui uma História propriamente dita, que é na verdade um desdobramento da história natural. O surgimento da espécie humana, com sua capacidade de trabalho, é um desenvolvimento de propriedades inerentes ao mundo natural, mas ao mesmo tempo representa o surgimento de um mundo novo, humano.
O trabalho constrói biologicamente o corpo do homo sapiens, com seu caminhar ereto, polegar opositor e cérebro superdesenvolvido, e cria o gênero humano como ser capaz de atribuir uma finalidade aos objetos e um sentido para as próprias ações. Ao satisfazer suas necessidades naturais (comer, vestir-se, abrigar-se, procriar) por meio do trabalho, o homem cria novas necessidades sociais, pois as satisfaz de modo humano. As características humanas do homem, a socialidade, a historicidade, a liberdade, a universalidade, a consciência, a linguagem, são produto do trabalho.
O trabalho é a forma especificamente humana, social e histórica, de metabolismo com a natureza. Cada ser humano está em relação com a natureza por meio de seu corpo físico, cuja existência precisa ser mantida, mas essa relação não se dá de forma imediata, pois é social e historicamente mediada pelo trabalho. O uso de recursos naturais para produzir alimentos, vestimentas, moradias, utensílios, etc., não é feito separadamente por cada indivíduo, mas coletivamente por meio da formação social da qual este indivíduo faz parte. Ou seja, o homem somente se relaciona com a natureza indiretamente, por meio de sua relação com os outros homens, com o meio social no qual desempenha algum tipo de papel produtivo e de onde recebe uma cultura.
A humanidade do homem não está dada de modo imediato na realidade histórica, ou seja, cada homem não está imediatamente unificado com a sua humanidade, da forma como estão os animais. Cada animal é imediatamente idêntico a sua espécie e capaz de fazer tudo que a espécie é capaz. O homem, ao contrário, se encontra separado de sua espécie, da sua humanidade, seu ser genérico, por conta da condição histórica da divisão da sociedade em classes e do trabalho alienado.
Assim que o trabalho se torna capaz de produzir um excedente em relação às necessidades sociais, surge uma classe social que se apropria desse excedente. Ao longo da história desenvolve-se uma luta entre as classes proprietárias e as classes trabalhadoras pela posse desse excedente do trabalho social. O controle do excedente pelas classes proprietárias transforma o trabalho numa atividade alienada, ou seja, estranha para a maior parte dos seres humanos. O homem se separa de seu ser genérico, sua humanidade, ao não poder determinar o que fazer com seu tempo de trabalho e ser forçado a trabalhar para outro. O homem se aliena da atividade do trabalho, dos produtos do trabalho, da sua relação com os outros homens, que aparecem todos como elementos externos e opressivos sobre o indivíduo; e se aliena também da natureza.
Capitalismo e destruição da natureza
Se a relação com a natureza se dá primordialmente por meio da relação social e histórica de trabalho, o trabalho alienado leva a uma relação também alienada com a natureza. Na sociedade de classes, a natureza se apresenta ao homem como ambiente externo e objeto estranho a ser controlado, dominado, usufruído e descartado, conforme os interesses da classe dominante. A natureza deixa de ser o “corpo inorgânico do homem”, como a definiu Marx, e se torna propriedade privada. Na condição de propriedade privada, a natureza pode ser usada e abusada de maneira irresponsável, pois a necessidade coletiva é desconsiderada em favor dos interesses privados.
Na sociedade capitalista, que é a forma mais recente da sociedade de classes, a natureza mais do que nunca aparece como estranha ao homem, como puro objeto de manipulação, fonte supostamente inesgotável de matéria-prima e repositório dócil para os infinitos subprodutos da ação humana (lixo e poluição). O capitalismo simplesmente ignora que a natureza não é inesgotável nem pode suportar indefinidamente os dejetos que lhe atiramos. A lógica do capital considera apenas o curto prazo, o balanço trimestral das empresas, a cotação diária da bolsa de valores, e simplesmente despreza a sobrevivência da espécie. Como disse um autorizado representante da burguesia, o economista inglês John M. Keynes, “a longo prazo estaremos todos mortos”.
O trabalho excedente apropriado pela burguesia é a fonte da imensa acumulação de riqueza social que tem se multiplicado desde o início da Revolução Industrial, ponto de partida do capitalismo propriamente dito. Parte dessa riqueza social apropriada pela burguesia é consumida improdutivamente em luxo e parte tem que ser necessariamente reinvestida na continuidade da produção.
Acontece que não basta ao capitalista apenas manter a produção nos mesmos patamares do ciclo anterior de realização do capital, pois ele é forçado a produzir sempre mais mercadorias com o emprego de menos força de trabalho, para reduzir seus custos, aumentar seu lucro e vencer os concorrentes na competição por mercado. Essa é a única forma de realizar mais capital. A reprodução ampliada do capital é a força motriz que comanda as ações de burgueses e conseqüentemente também dos proletários na sociedade capitalista. Essa é a fonte material da ideologia do crescimento econômico (que não é sinônimo de desenvolvimento humano), do culto cego ao progresso e à novidade, que impulsiona um modo de vida voltado para o imediato e desprovido de sentido, em que os objetos se tornam sujeitos e os homens objetos.
Essa lógica social da reprodução ampliada origina uma espiral infinita de aumento da produção de mercadorias. Esse aumento da produção não leva em consideração as necessidades humanas e sim a possibilidade de lucro. A sociedade capitalista cria o paradoxo de uma gigantesca capacidade produtiva usada para gerar objetos absolutamente inúteis, como bombas atômicas e bens de luxo, ao mesmo tempo em que mais de 1 bilhão de pessoas passa fome.
Como se não bastasse o absurdo social desse desperdício e do desvio de capacidade produtiva, isso ainda é feito de uma forma tal que compromete a capacidade da natureza de suportar o impacto das ações humanas. O consumo de matérias-primas e de fontes de energia, o esgotamento da fertilidade do solo, o acúmulo de lixo, a poluição da terra, do ar e das águas chegaram a um nível tal que já ameaça a continuidade da vida. O efeito estufa, a elevação do nível dos mares, as secas e inundações, as tempestades e furacões, a escassez de água potável, as ondas mortais de frio e calor, a desertificação, a extinção em massa de espécies animais e vegetais, a multiplicação de vírus e bactérias mortais, etc.; tudo isso são conseqüências da ação irracional do capitalismo sobre a natureza.
Superação da alienação
Na natureza, a cada ação corresponde uma reação igual e contrária. Os desastres naturais não são resultado de castigo divino, mas reações naturais aos desequilíbrios provocados pelo capitalismo. Esses desastres atacam justamente as populações mais vulneráveis, os pobres, os pequenos camponeses, os moradores das periferias das metrópoles, os segmentos mais desprotegidos da classe trabalhadora, que somente acessam uma fração insignificante das riquezas geradas pelo trabalho social.
Os desequilíbrios não podem ser corrigidos sem uma ruptura com a lógica do capital. O capital é uma força social inerentemente incontrolável e submete ao seu controle todas as demais relações sociais. Não é possível impor restrições às atividades das grandes corporações capitalistas. Não existe Estado ou legislação capaz de impedir essas corporações de seguir explorando a natureza de forma irracional. Não existe pressão dos consumidores capaz de forçar as empresas a produzir de forma ambientalmente responsável A competição entre as empresas e a corrupção das instituições que teriam o papel de fiscalizar suas atividades abrem as portas para novas transgressões a cada remendo imposto pela pressão social.
Para restaurar o equilíbrio natural e reverter os graves danos já causados é preciso ao mesmo tempo reverter a lógica que dirige o emprego das forças produtivas sociais, direcionando-as para o atendimento das necessidades humanas. É preciso estabelecer racionalmente o que a humanidade precisa produzir e de que forma isso pode ser produzido sem afetar a capacidade do planeta de seguir fornecendo indefinidamente os recursos de que necessitamos. Ao invés de produzir a infinidade de objetos inúteis em que estamos entulhados, o trabalho social passaria a produzir aquilo de que os seres humanos realmente precisam para viver. Isso por si só já teria grande impacto na reversão dos danos ambientais.
Mas isso só é possível com o fim do trabalho alienado, ou seja, com a conquista do controle dos trabalhadores sobre seu tempo e seus instrumentos de trabalho. Para isso é preciso romper com a propriedade privada dos meios de produção e com a divisão da sociedade em classes. Somente uma humanidade sem classes pode se relacionar de forma racional com seu trabalho, direcionando seu tempo e recursos para produzir aquilo que realmente é necessário e considerando o equilíbrio da natureza e a continuidade da vida. Ao mudar a relação do homem com o trabalho, muda-se também a relação com a natureza.
Para a natureza é indiferente que o planeta seja habitado por seres inteligentes ou por bactérias, pois o planeta seguirá seu curso em torno do sol, quer sejam os homens os seus passageiros ou sejam os microorganismos. Para o homem, entretanto, a preservação de certas condições indispensáveis para a sua sobrevivência, como ar respirável, água potável, terras férteis, temperaturas suportáveis, etc., deve ser resultado de sua ação consciente e coletiva. Essa ação passa necessariamente pela revolução social, pela superação da lógica do capital e pela construção do socialismo, único regime capaz de devolver ao homem o controle sobre seu trabalho, sua humanidade e sua relação racional e sustentável com a natureza.