Contra a “Economia Verde” dos capitalistas, uma economia vermelha dos trabalhadores! – Daniel Delfino
Este texto é uma contribuição individual, não necessariamente expressa a opinião da organização e por este motivo se apresenta assinado por seu autor.
Contra a “Economia Verde” dos capitalistas, uma economia vermelha dos trabalhadores!
Crítica ao Eco-Reformismo da Cúpula dos Povos
1. A farsa imperialista da Rio+20
Nos dias 20 a 22 de junho de 2012 acontece no Rio de Janeiro a “Conferência sobre Desenvolvimento Sustentável” da ONU, chamada de “Rio+20”. A Conferência reunirá centenas de chefes de Estado para discutir o projeto da chamada “Economia Verde”, que seria simultaneamente uma saída para os problemas ambientais do planeta e os impasses da economia capitalista. O projeto está materializado em um documento intitulado “O Futuro que queremos” (original em inglês em formato pdf disponível em: http://www.uncsd2012.org/rio20/content/documents/370The%20Future%20We%20Want%2010Jan%20clean.pdf, sendo que há uma tradução não-oficial disponível em: http://cupuladospovos.org.br/2012/01/rascunho-zero-do-documento-final-para-a-rio20/).
A função dessas Conferências é garantir a continuidade da produção destrutiva capitalista, tal como aconteceu com a Rio 92 e acontecerá também com a Rio+20. Ao mesmo tempo em que se assinam acordos que mantém intocados os crimes das corporações capitalistas, consegue-se iludir a opinião pública mundial com discursos sobre “desenvolvimento sustentável” ou “Economia Verde”, onde a única coisa que se tenta sustentar é o lucro e a única coisa verde são os dólares dos capitalistas. Sob o pretexto de se preocupar com as mudanças climáticas e os problemas ambientais do planeta, e ainda a fome, a miséria, a exclusão, etc., e um conjunto de outras causas que aparecem nos discursos e declarações oficiais, os governantes do mundo estarão garantindo às corporações capitalistas a continuidade de seus lucros às custas da destruição do planeta e das vidas humanas.
E ainda, estarão ampliando o fôlego da especulação financeira ao transformar recursos naturais em ativos negociáveis nos mercados financeiros. A grande novidade no documento da ONU é a possibilidade da emissão de títulos negociáveis no mercado financeiro vinculados à conservação de florestas, bacias hidrográficas, reservas de biodiversidade, recursos naturais em geral, que assim passam à jurisdição do capital financeiro. A lógica que preside o documento dos governos e empresas capitalistas é de que é preciso atribuir um valor econômico-financeiro aos recursos naturais, como florestas, água, atmosfera, biodiversidade, etc., tornando-os passíveis de serem negociados nos mercados financeiros, pois somente aquilo que tem valor econômico pode ser preservado. Essa lógica identifica propriedade com propriedade privada capitalista, como se não houvesse outra forma de propriedade, de apropriação dos recursos naturais, uma forma coletiva, comunista e racional.
Está subentendido que os camponeses, povos originários, comunidades ribeirinhas, pescadores, extrativistas, etc., não sabem fazer bom uso dos territórios em que habitam, não são capazes de preservá-los, não merecem continuar usufruindo deles e podem ser expropriados e removidos pelos meios que forem necessários, inclusive a violência da polícia, milícias e jagunços, em benefício das corporações capitalistas como mineradoras, petrolíferas, agronegócio, empresas de energia, água, etc., que compreendem o verdadeiro sentido de propriedade. Não se poderia esperar outra coisa de um órgão do imperialismo mundial como a ONU.
2. A Cúpula dos Povos
Como contraponto ao evento oficial da Rio+20, acontece também no Rio, entre os dias 15 a 23 de junho a “Cúpula dos Povos por Justiça Social e Ambiental e contra a mercantilização da vida”. Trata-se de um mega-evento que pretende aglutinar todos os setores contrários ao projeto expresso na Conferência da ONU, aí incluídos partidos políticos, centrais sindicais, movimentos sociais, ONGs e outras organizações da chamada “sociedade civil”, tanto nacionais como internacionais. Um breve olhar sobre a lista de entidades brasileiras que participam da articulação da Cúpula (disponível em: http://cupuladospovos.org.br/quem-organiza-a-cupula/), tais como CUT, CNBB, Via Campesina, Jubileu Sul, etc., ou seja, componentes do que podemos denominar com muito boa vontade de “ala esquerda do governo Dilma-PT”; já é suficiente para identificar a linha política e ideológica que orienta o conjunto do evento.
Sobre a falta de combatividade dessas entidades e do evento, basta lembrar que o governo que apóiam, ou com o qual no mínimo são coniventes, o governo Dilma, acaba de aprovar o novo Código Florestal, que seria muito melhor denominado como “código ruralista”. O código legaliza a destruição da Amazônia, das áreas de preservação, reservas, margens de rios, encostas e morros, a grilagem de terras, a expulsão de trabalhadores sem-terra, indígenas, quilombolas, comunidades ribeirinhas, extrativistas, etc., em benefício do agronegócio (nome que se dá à associação do setor mais reacionário do latifúndio com o capital internacional). Não vimos nenhuma das entidades organizadoras encabeçar nada além de uma oposição protocolar ao código, muito menos uma ampla campanha nacional com ações massivas de luta que seriam necessárias para barrar sua aprovação.
Outro dado relevante para caracterizar a Cúpula é a lista de apoiadores institucionais, como Caixa Econômica Federal, Fundação Ford, Oxfam, e as Fundações Heinrich Böll e Friedrich Ebert. A participação daquelas entidades governistas e dessas empresas capitalistas leva à conclusão de que se trata de um evento que não vai se contrapor de fato à Rio+20 oficial. A Cúpula vai funcionar como uma oposição consentida e “bem-comportada” à Conferência da ONU, para centralizar setores e organizações sociais e políticas em torno de uma pseudo-alternativa ilusória. Essa pseudo-alternativa não fará nenhum enfrentamento real contra o projeto da “Economia Verde” e vai apenas confundir os setores da opinião pública que com razão desconfiam da Rio+20.
Esses setores críticos vão se deparar com o festival de pseudo-alternativas da Cúpula e estacionar no meio do caminho, sem avançar em direção às raízes do problema ambiental. A Cúpula e as organizações que a promovem funcionam assim como um anteparo ideológico para impedir que se realize um avanço na consciência crítica capaz de perceber que só com a superação do capitalismo por um modo de produção socialista serão possíveis a sobrevivência da humanidade e a preservação do ambiente planetário.
3. As bases programáticas da Cúpula
Para uma crítica mais profunda da concepção expressa na Cúpula não basta evidentemente apenas aquele breve olhar sobre a lista de organizadores, é preciso questionar seus fundamentos teórico-programáticos. Podemos encontrar esses fundamentos no documento intitulado “Outro Futuro é Possível!” (disponível em formato pdf em: http://rio20.net/wp-content/uploads/2012/02/Outro-Futuro.pdf), produzido pelos Grupos Temáticos do Fórum Social Temático preparatório da Cúpula dos Povos. Na sua apresentação, o documento se pretende anti-neoliberal, anti-capitalista, “de esquerda” e “progressista”, evoca princípios como ética, justiça social, sustentabilidade e apela para sujeitos como “os povos” e a “sociedade civil”, contra as corporações, os bancos e as finanças mundiais.
O texto de 32 páginas contém uma série de propostas de reformas organizadas em tópicos que tocam praticamente todos os temas abordados na Conferência, tais como educação, conhecimento científico, extrativismo e energia, agricultura e pesca, empregos climáticos, consumo responsável, economia solidária, recursos Comuns (sic), direito à água, saúde, migrantes, cidades, governança mundial, etc. Não faremos a crítica detalhada das propostas referentes a cada um desses tópicos, mesmo porque isso sobrecarregaria por demais este texto e o tornaria tão longo quanto o original que critica. Partiremos apenas de um dos conjuntos de medidas propostas para identificar a lógica a partir da qual estão estruturadas, lógica que preside todas as demais propostas temáticas. Identificada essa lógica, veremos então quais são as suas fragilidades políticas, a sua perspectiva de classe e as suas inconsistências filosóficas.
Vejamos portanto inicialmente o que o documento propõe a respeito de um dos temas particulares, o problema do acesso à água:
“- Reafirmamos nossa luta pelo direito à água e contra a sua privatização ou apropriação indevida em detrimento da livre circulação para a alimentação dos povos, de forma conjunta com a luta por um ambiente são e sustentável.
– Defendemos a adoção de políticas públicas integradas a nível local, nacional, regional e internacional, necessárias para garantir a equidade de acesso e distribuição, a partir de uma ética de preservação do recurso, do seu uso racional e de equidade social.
– O controle social sobre os Comuns (sic) que é a água, no sentido amplo, é um corolário dessas ditas políticas.
– Denunciamos os processos de dessalinização da água do mar, que não respeitam o princípio de precaução frente a tecnologias ambientalmente insustentáveis.” (capítulo 18)
Essas medidas em si mesmas não parecem erradas. De fato é preciso envidar medidas contra a privatização da água, contra a poluição, contra a escassez artificial, pelo acesso à água, etc. Da mesma forma prosseguem as propostas relativas a todos os demais eixos temáticos, como agricultura, energia, consumo, etc. Para todos eles se elencam medidas pontuais que em si parecem capazes de minorar ou reverter os processos destrutivos em curso.
Entretanto, quem vai garantir essas medidas? Quem vai aplicá-las em nível mundial? Quem vai ser o agente que vai combater a sanha destrutiva das corporações? Será o Estado capitalista ou serão os trabalhadores organizados, as comunidades indígenas e camponesas, os povos em luta? O documento cita a todo momento a necessidade de empoderar as comunidades locais e os povos do mundo inteiro contra o Estado e as corporações. Mas qual é o horizonte dessa luta? Até onde vai a sua oposição ao Estado e às corporações? É o que veremos no próximo ponto.
4. Fragilidades políticas
Aparentemente, o documento realiza uma dura denúncia do controle que as grandes corporações capitalistas exercem hoje sobre as riquezas do planeta, inclusive os seus recursos naturais. Acertadamente, o documento denuncia a escandalosa desigualdade social que vigora hoje no mundo:
“Em um mundo em que 50% da população pobre respondem por 1% das riquezas do planeta, nos quais as três pessoas mais ricas do mundo têm o mesmo rendimento que os 600 milhões mais pobres, não será possível erradicar a pobreza nem restabelecer a harmonia com a natureza.” (capítulo 8)
Indo além, o documento preparatório da Cúpula denuncia também a “Economia Verde” que está sendo proposta na Rio+20:
“Em consequência, a Economia Verde trata a natureza como capital – ‘capital natural’. A Economia Verde considera que é essencial atribuir um preço às plantas, aos animais e aos ecossistemas para mercantilizar a biodiversidade, a purificação da água, à proteção dos recifes de coral e ao equilíbrio climático. Para a Economia Verde é necessário identificar as funções específicas dos ecossistemas e da biodiversidade para avaliar sua situação atual, fixar um valor monetário e concretizar em termos econômicos o custo de sua conservação para desenvolver um mercado por cada serviço ambiental particular. Para os ideólogos da Economia Verde, os instrumentos de mercado seriam ferramentas para superar ‘a invisibilidade econômica da natureza’.(idem)
E conclui:
“A Economia Verde é uma manipulação cínica e oportunista das crises ecológica e social. Em lugar de tratar as verdadeiras causas das desigualdades e as injustiças, o capital se está servindo de um discurso ‘verde’ para lançar um novo ciclo de expansão. As empresas e o setor financeiro necessitam que os governos institucionalizem as novas regras da Economia Verde para assegurarem-se contra os riscos e criar um marco institucional para abarcar partes da natureza nas engrenagens financeiras.”(idem)
Entretanto, por trás dessa crítica aparentemente radical, se esconde o mais impotente reformismo. Qual é o agente, como perguntamos no ponto acima, que vai frear o avanço dessa privatização desenfreada da natureza, que está dando mais um salto na Rio+20? Vejamos como se encaminha a resposta:
“O desafio da Rio+20 está na definição dos processos decisórios para a sua implementação, dada a inoperância dos mecanismos multilaterais de gestão. Siglas como FMI, BM, OMC não estão à altura desta responsabilidade. A própria ONU, parceira indispensável das mudanças, encontra-se profundamente fragilizada.”(capítulo 20)
A ONU é definida como “parceira indispensável das mudanças”. Mas o que é a ONU senão um rascunho mal-acabado de Estado mundial que funciona como instrumento das maiores potências imperialistas? O problema da ONU não é o fato de que ela esteja “profundamente fragilizada”, mas se deve à sua própria natureza, à sua essência de instituição que preserva e reproduz as relações de poder vigentes a serviço do imperialismo mundial. A ONU tal como existe é irreformável. Em várias passagens, porém, o documento preparatório da Cúpula reproduz a crença na ONU como instituição capaz de ser empregada como instrumento dos povos, basta que seja reformada:
“É evidente que a governança das relações entre os Estados, regulada pelo sistema das Nações Unidas depois da Segunda Guerra Mundial e do período de descolonização posterior, já não responde aos desafios do presente. (…) As propostas de democratização dos organismos das Nações Unidas referidas às questões da sustentabilidade deverão ser definidas e implementadas também nas questões relativas à paz e à segurança internacional. Deve haver um reequilíbrio democrático do Conselho de Segurança, com abertura a novos atores, não somente a Estados que permanecem marginalizados, mas também aos atores e organizações sociais nos diversos territórios e regiões, assim como as redes e organizações em escala mundial.” (capítulo 23)
A ONU é encarada como uma espécie de parlamento mundial dos Estados nacionais. Quando a maioria dos Estados nacionais estiver a favor das mudanças propostas no programa da Cúpula, estes vão, por sua vez, transformar a ONU no instrumento que vai garantir a sua aplicação em escala mundial, que seria capaz de disciplinar os Estados recalcitrantes. Como se fosse possível impor algum tipo de medida, por exemplo, contra os componentes do Conselho de Segurança, que pudesse forçá-los a aceitar uma divisão democrática de poderes. São justamente os mais poderosos Estados imperialistas, como Estados Unidos, Japão e União Européia os que mais se beneficiam da ordem capitalista vigente e os que controlam todos os mecanismos da ONU. Em todas as questões decisivas a ONU é absolutamente incapaz de impor qualquer medida que contrarie os interesses da tríade imperialista. Basta lembrar as incontáveis resoluções contra o bloqueio estadunidense a Cuba ou contra o genocídio dos palestinos nas mãos de Israel, as quais viram letra morta, pois nenhuma resolução é capaz de se impor contra os poderes prevalecentes.
5. Perspectiva de classe
5.1. A crença no Estado
A crença na ONU é, por sua vez, um subproduto da crença no Estado como agente de mudanças que possam beneficiar os trabalhadores e os povos. Essa crença no Estado transparece a todo momento no documento preparatório da Cúpula, em trechos como o seguinte:
“Um Estado respeitoso dos direitos dos cidadãos é condição de institucionalidade democrática do poder. (…) Os sistemas de representação vigentes não correspondem às exigências de uma participação ativa. O prioritário é potenciar a participação implantando sistemas de informação transparentes e mecanismos de consulta abertos para que a tomada de decisões seja eficaz. Mas trata-se de ir mais fundo. É preciso radicalizar a democracia, tanto das instituições estatais como da sociedade em seu conjunto. Assim, progressivamente, se irá transformando o Estado e os sistemas de representação repensando novas instituições políticas.” (capítulo 23)
A chave da questão é a concepção de que se pode ir “transformando o Estado” em direção às mudanças necessárias. Ora, o Estado nacional, qualquer que seja ele, imperialista ou dominado, é a instituição das instituições, o pilar fundamental da ordem capitalista. Qualquer possibilidade de que os trabalhadores se apossem de porções do Estado para fazer valer seus interesses vai se deparar com a reação brutal das classes dominantes, como já aconteceu em outros momentos da história, com o fascismo e as ditaduras militares.
Não há outra solução a não ser “quebrar a máquina do Estado”, como já ensinou Lênin em “O Estado e a Revolução”. As “novas instituições políticas”, por sua vez, não podem ser outras que não as organizações surgidas do próprio processo de luta dos trabalhadores e dos povos. Os conselhos de trabalhadores da cidade e do campo devem ser os organismos que vão administrar coletivamente e racionalmente os recursos naturais, e não as instituições do velho Estado capitalista “reformadas”.
Chegamos assim ao limite que impede o documento preparatório da Cúpula de propor soluções reais para os problemas sociais e ambientais do planeta, a sua crença na capacidade de agir por dentro das instituições do Estado e de reformá-las para colocá-las a serviço das mudanças necessárias. A concepção que orienta o documento preparatório da Cúpula realiza um imenso exercício de contorcionismo teórico para evitar a menção do único processo que poderia viabilizar as mudanças, ou seja, quebrar a máquina do Estado e construir novas instituições: a revolução socialista.
5.2. A questão da democracia
Ao invés disso, o método em que se aposta é a “democracia”, compreendida como algo absolutamente abstrato:
“A democracia é guiada pelos princípios e valores éticos da liberdade, igualdade, diversidade, solidariedade e participação, todos juntos e ao mesmo tempo. O método democrático pode transformar tudo o que se afirmou anteriormente como fundamentos civilizatórios em uma utopia possível, potenciando o surgimento de uma nova arquitetura de poder, do local ao mundial.” (capítulo 3)
Essa democracia não tem qualquer caráter de classe. Ou seja, não está especificado se se trata da democracia burguesa tal como existe hoje ou da democracia operária que precisa ser posta em prática. Fala-se simplesmente em “democracia”, como se a democracia que existe hoje não tivesse um caráter de classe, ou seja, como se a democracia representativa e o Estado burguês não fossem essencialmente impermeáveis a qualquer mudança radical. Como se a burguesia não fosse capaz de abrir mão de métodos democráticos assim que lhe convier (lembramos acima os casos do fascismo e das ditaduras) para preservar seus interesses. Como se no próprio processo da crise econômica em andamento a burguesia não fosse capaz de impor os governantes que lhe interessam ao arrepio do processo democrático formal e das vontades dos eleitores, como acabamos de ver na Grécia e na Itália. Como se a democracia hoje em vigor não fosse capaz de empreender a mais dura repressão contra os trabalhadores em greve ou os movimentos sociais em luta, com tropas de choque, prisões, mandados judiciais, processos administrativos, perseguições, etc., todos desencadeados dentro da mais absoluta legalidade democrática.
5.3. A questão das classes
Essa crença no Estado burguês e na sua democracia decorre de uma debilidade programática ainda mais fundamental, a falta de uma perspectiva de classe claramente definida. O documento preparatório da Cúpula não especifica quem é o agente social das medidas necessárias para a reorganização social e ambiental, nem o processo político e o regime social necessários para obtê-los. Ao invés disso, passeia sem o menor rigor sobre uma paisagem pós-moderna repleta de “atores” e “múltiplos sujeitos”:
“Múltiplas dimensões do que pode e deve ser uma nova subjetividade vem sendo forjados nestas lutas anti-sistêmicas e devem ser tematizadas conscientemente, se quisermos apresentar uma alternativa dotada de credibilidade. Devem ser debatidas e sistematizadas como valores, formas de conhecimentos, visões de mundo e cultura contra-hegemônica.”(capítulo 2)
Ao falar em subjetividades que “estão sendo forjadas nas lutas anti-sistêmicas”, não se trata simplesmente de agregar novos sujeitos sociais aos processo de luta. Se trata de criar algo que não só pode como “deve ser uma nova subjetividade”. O documento está evidentemente rejeitando a subjetividade do movimento operário e da revolução socialista. Isso está expresso com todas as palavras num outro trecho:
“Não há solução para os dilemas societários fora das lutas sociais e das grandes disputas políticas. Mas esta visão, que orientou a quase totalidade das mobilizações progressistas da história, não é suficiente. (…) Emancipação, libertação, eliminação de todas as formas de exploração e opressão são objetivos que os movimentos progressistas se propõem alcançar, socialistas ou de esquerda com força cada vez maior ao longo dos últimos séculos. Mas retomar hoje esses objetivos requer muito mais do que reavivar os ideais de ‘liberdade, igualdade e fraternidade’ ou de eliminação da exploração do trabalho pelo capital. Requer questionar as bases sobre a qual se assentou a modernidade, o capitalismo e a dominação europeia do mundo, requer uma revolução mental que abale a infraestrutura intelectual compartilhada não só pelas elites capitalistas, mas também por boa parte dos movimentos que procuraram até hoje combatê-las.” (idem)
Ora, é perfeitamente legítimo que os proponentes do projeto político expresso no documento preparatório da Cúpula pretendam substituir a revolução socialista e a classe operária por um outro processo de transformação a ser realizado por um outro sujeito social (ou conjunto de sujeitos). Mas fazer essa substituição requer no mínimo um balanço consistente e circunstanciado dos motivos que levaram ao fracasso dos processos baseados no projeto socialista e no movimento operário, como por exemplo, a Revolução Russa. Se se trata de descartá-los, é preciso dizer porque não funcionaram e não servem mais. Não encontramos nem sinal desse balanço no documento preparatório da Cúpula. Não encontramos nenhuma tentativa de balanço que explique os motivos internos e externos da derrota da Revolução Russa, de seu isolamento e burocratização, sua posterior decomposição, etc. Não encontramos em conseqüência disso nenhuma explicação de porque as derrotas históricas de processos como a Revolução Russa servem como justificativa para descartar a revolução socialista como projeto e para substituir esse projeto e seu sujeito social por algum outro.
5.4 A diversidade da classe trabalhadora
Essas questões transcendentais são simplesmente ignoradas. A emergência dos “novos sujeitos” capazes de por em prática um outro projeto de transformação social é tratada como uma evidência definitiva e estabelecida, e como se fosse por si só suficiente para descartar a necessidade desse espinhoso debate sobre os lineamentos do projeto societário a ser construído. Como corolário, também fica ausente um outro debate: a emergência das “múltiplas dimensões” de uma “nova subjetividade” que “vem sendo forjados nestas lutas anti-sistêmicas” é necessariamente incompatível com o projeto socialista orientado a partir da classe operária?
Para dizer claramente e dar nome aos bois, a luta dos povos originários, dos camponeses, das comunidades ribeirinhas e extrativistas, dos remanescentes quilombolas, das minorias étnicas e religiosas marginalizadas e discriminadas em cada país, dos trabalhadores sem terra, sem teto, das mulheres, dos negros, dos homossexuais, da juventude, dos coletivos de artistas e mídia independente, etc., são necessariamente incompatíveis com o projeto socialista orientado a partir da classe operária? Ou ao contrário, todos esses movimentos não tem muito mais a ganhar ao se lhes acrescentar a dimensão programática da abolição da propriedade privada, da socialização dos meios de produção, do controle social e racional dos recursos naturais e tecnológicos, da abolição do Estado e implantação da democracia direta, etc.; dimensões que são patrimônio histórico do movimento operário e suas organizações de perfil socialista revolucionário? Isso não contribuiria para superar o atual isolamento desse diversos movimentos específicos e não possibilitaria lutas muito mais massivas e unitárias? Não tornaria todos esses movimentos mais próximos de atingir suas metas específicas?
Entendemos que sim, por isso discordamos da perspectiva expressa no documento preparatório da Cúpula. As reivindicações específicas desses movimentos não são apenas palavras de ordem táticas para engrossar o movimento socialista, são a expressão de necessidades vitais de setores da classe trabalhadora, que não podem ser colocadas sob a “subordinação” ou “em obediência” a outros setores. Essas reivindicações precisam ser incorporadas e desenvolvidas em toda sua radicalidade pelo movimento socialista e suas organizações, se se deseja realmente avançar para novas relações sociais efetivamente emancipadas. A questão é que as reivindicações gerais e específicas só podem ser atendidas por um movimento que supere a ordem capitalista (o que não significa que devem esperar pela revolução socialista para serem postas em pauta). É o próprio curso da luta que vai determinar qual o eixo de luta, se de natureza sindical ou social, vai ter maior poder de mobilização sobre a classe trabalhadora e vai fazê-la se chocar com a ordem estabelecida, colocando na ordem do dia a tomada do poder e a transformação social.
Mas é preciso ir além. Não basta apontar a ausência (na verdade rejeição) do projeto socialista e da classe operária na concepção expressa no documento preparatório da Cúpula, é preciso apontar as deficiências intrínsecas dessa concepção, o que faremos a seguir.
6. Inconsistências filosóficas
O trecho citado acima diz que o projeto de emancipação deve não apenas rejeitar ou superar o “velho” movimento operário e o “velho” projeto da revolução socialista, pois: “Requer questionar as bases sobre a qual se assentou a modernidade, o capitalismo e a dominação europeia do mundo, requer uma revolução mental que abale a infraestrutura intelectual compartilhada não só pelas elites capitalistas, mas também por boa parte dos movimentos que procuraram até hoje combatê-las.”
Ou seja, sob o pretexto de realizar uma crítica ainda mais profunda e radical do conjunto da civilização, o documento preparatório da Cúpula evita o debate concreto sobre qual civilização estamos falando (capitalista), quais os poderes que a governam (Estados imperialistas), quais os instrumentos de que se servem para sua dominação (democracia burguesa), quais as suas instituições fundamentais (propriedade privada), qual a sua situação atual (crise estrutural), qual a correlação de forças vigente (a crise capitalista coincide com crise a da alternativa socialista), quais os processos necessários para a superação dessa ordem (revolução socialista), qual o sujeito desse processo (a classe trabalhadora com todos os seus segmentos).
Ao invés desse debate complexo, empreende-se uma pretensiosamente audaciosa refundação filosófica do projeto emancipatório. Dentro dessa refundação, a própria “infraestrutura intelectual” dos movimentos que procuraram até hoje combater a ordem capitalista precisa ser reformulada, pois é preciso “questionar as bases sobre a qual se assentou a modernidade”, não apenas o capitalismo. Trata-se de questionar os valores que herdamos do Renascimento e do Iluminismo, mais do que apenas os valores impostos pelo capitalismo. O problema da humanidade não seria a apropriação privada da produção coletiva, realizada pelo capitalismo, mas o desrespeito à “Mãe Terra” por conta da pretensão cientificista e eurocêntrica de tudo conhecer para dominar e produzir além dos limites.
6.1 O deslocamento para a cultura
Eis como se anuncia essa refundação filosófica:
“O primeiro passo desta tarefa é profundamente filosófico: necessitamos renovar nossa visão da humanidade para situar as atividades humanas dentro do contexto mais amplo da Vida e da Mãe Terra. Como seres humanos, somos somente uma parte desta matriz interdependente que nos dá fonte de vida, nos integra e nos abre os horizontes de um destino comum planetário em relação indivisível, complementária e espiritual com os demais seres vivos. Cada ser, cada ecossistema, cada comunidade natural, espécie e outras entidades naturais, se definem por suas relações como parte integrante da Mãe Terra. Essa é a fonte de vida, alimento, ensinamento, de onde provém tudo o que necessitamos para um bem viver justo e equilibrado.” (capítulo 16)
Podemos concordar que é necessário repensar as atividades humanas numa escala planetária e histórica. Mas essa história é concreta e possui momentos determinados, como a sociedade de classes e o capitalismo. Vejamos como é compreendido o capitalismo dentro desse novo projeto filosófico:
“O capitalismo é mais que um modo de produção. É uma lógica social e política que se irradia por todo o corpo social. Sua lógica não só estrutura instituições e concentra poder, mas também está internalizado em nós. Atravessa os nossos corpos. Coloniza as nossas mentes. Ocupa a nossa terra. Emancipar-se dessa colonização e eliminar todas as formas de dominação é o objetivo a ser alcançado pelos movimentos progressistas. Isso requer questionar as bases sobre a qual se assentou a modernidade. Requer uma revolução mental que abale a infraestrutura intelectual vigente. Também temos que modificar a nós mesmos, já que as instituições e as lógicas mercantis se reproduzem nos indivíduos e são eles que mantêm essas estruturas funcionando.”(capítulo 2)
Todas essas afirmações são aparentemente irretocáveis. Mas, ainda que o capitalismo seja “mais que um modo de produção” ele continua sendo um modo de produção, que precisa ser combatido enquanto tal, ou seja, por meio de uma revolução política e econômica. Para evitar o problema da revolução política e econômica (expropriação da burguesia, destruição do Estado, ditadura do proletariado etc., ), o problema é deslocado do âmbito das relações de produção em que vige o capitalismo para o das esferas culturais. O inimigo da humanidade seria um certo viés cultural, o “eurocentrismo”, que desrespeita as culturas locais, coloniza os continentes, escraviza os negros, extermina os povos originários, submete as mulheres ao patriarcado, destrói a “Mãe Terra”, etc. Não se percebe que esse “eurocentrismo” não é a fonte dos males, mas a sua forma ideológica, a expressão de determinadas relações de produção muito precisas, as relações capitalistas. São essas relações que, para se desenvolver, exigem a opressão das culturas locais, dos negros, dos povos originários, das mulheres, etc., bem como a destruição do meio ambiente.
Mais grave do que isso, não só o problema é deslocado para a esfera das relações culturais, como a “solução cultural” que se dá para a colonização mental capitalista está radicalmente equivocada. Não negamos que a superação do capitalismo por relações emancipadas exigirá uma profunda reformulação cultural, muito pelo contrário. Será preciso sim repensar as relações políticas e econômicas, mas também as relações sociais em geral, relações entre os povos, entre as gerações, entre os gêneros, o direito, os costumes e comportamentos, a moral, a sexualidade, as concepções de ciência, arte, etc. Sem reformular todas essas esferas não se supera a alienação capitalista.
6.2 A questão da ciência
A questão é que a “revolução mental” proposta não avança na direção de realizar essa necessária desalienação e descolonização dos corpos e mentes, mas ao contrário. Ao invés de partir dos elementos críticos da cultura existente e de seu potencial de negação da sociedade capitalista, rejeita-se essa cultura como um todo, os elementos críticos inclusive. A herança cultural da sociedade em que surge o capitalismo, a sociedade européia, traz consigo, além dos valores liberais do individualismo burguês, os valores do humanismo e do iluminismo. Em certos momentos o documento parece oscilar entre uma condenação total desses valores e um resgate parcial deles. Vejamos o que diz sobre a ciência:
“A ciência é um padrão de conhecimento eurocêntrico que se alicerça no pressuposto de que se deve conhecer para se transformar e submeter, um padrão de conhecimento indelevelmente antropocêntrico e patriarcal, avesso à democracia e tecnocrático, porque fundado na separação entre os que conhecem e os que não conhecem? Ou a ciência é portadora de valores cognitivos úteis para compreendermos a Terra e sua dinâmica, valores que ainda carregam um potencial emancipatório e são importantes para o estabelecimento de uma sociedade sustentável?” (capítulo 5).
Aqui existe uma flagrante confusão entre a ciência como método cognitivo e a ciência como conjunto de atividades vinculadas ao processo produtivo capitalista. A ciência não está fundada numa separação entre os que conhecem e os que não conhecem. É a apropriação privada da ciência pelo capitalismo que impede que os conhecimentos científicos sejam apropriados coletivamente por todos. É a propriedade privada capitalista que cria a separação entre os que conhecem e os que não conhecem. Quanto ao método científico em si, é absolutamente contingente que um determinado cientista realize uma descoberta e naquele momento imediato “saiba mais que os outros”. Não está na natureza desse conhecimento que ele exclua todos os demais segmentos sociais. Isso está na natureza das relações sociais que vigoram na sociedade em que o cientista trabalha.
São essas relações que tem que ser rompidas para que o conjunto da sociedade se aproprie daquele conhecimento particular. Para que a própria ciência como método cognitivo se desenvolva, seria fundamental que todos os cientistas pudessem trabalhar em cooperação, partilhando livremente suas descobertas parciais, em direção a conhecimentos mais totalizantes. A cooperação é muito mais produtiva do que a competição capitalista hoje em vigor, com os cientistas assalariados pelas corporações e suas descobertas patenteadas e escondidas da sociedade. A ciência é uma das forças produtivas cujo desenvolvimento está bloqueado pelas relações capitalistas. Não se trata pois de rejeitar a ciência, mas de libertá-la das relações capitalistas.
6.3 Os “direitos da Mãe Terra”
Entretanto, o documento preparatório da Cúpula não oscila por muito tempo entre a condenação e o resgate da ciência, ele foge desse falso dilema realizando a negação dos valores em que o método científico está fundado. Nega-se o humanismo, ou seja, a capacidade do homem de conhecer o mundo e determinar seu destino sem depender de nenhuma outra força. O humanismo é rejeitado com o nome de “antropocentrismo”. O homem deve ser deslocado do centro do projeto emancipatório em favor do reconhecimento de direitos a uma outra entidade superior, a “Mãe Terra”. Os direitos humanos, na verdade, são incompatíveis com os direitos da “Mãe Terra”:
“Não se pode seguir falando em termos genéricos sobre os direitos humanos como se fossem um conjunto de conquistas plenamente compatíveis entre si, e cuja extensão/ampliação/defesa significassem necessariamente um avanço no caminho para a emancipação humana. Uma lógica de permanente expansão dos direitos humanos não é compatível com os direitos da Mãe Terra (se for efetivamente uma janela para outro padrão civilizatório, e não só uma consigna), é absolutamente necessário repensar de forma radical toda a tradição dos direitos humanos que, além do seu núcleo liberal, é profundamente antropocêntrica.” (capítulo 15)
Ora, a tradição dos direitos humanos possui um núcleo liberal, a idéia da emancipação como emancipação meramente política, no âmbito do reconhecimento da cidadania, que confere direitos iguais aos indivíduos entendidos como abstrações descoladas de relações de produção determinadas. Como se o comprador e o vendedor de força de trabalho fossem iguais apenas porque a lei os reconhece como iguais. A superação desse núcleo liberal consiste em ir além da emancipação política e lutar pela emancipação humana, não apenas no campo dos direitos dos cidadãos, mas no campo das relações materiais efetivas em que os homens reproduzem a sua existência. Exige portanto aprofundar o humanismo e não negar o “antropocentrismo”.
Contraditoriamente, a concepção expressa no documento preparatório da Cúpula quer exatamente reconhecer a “Mãe Terra” como sujeito de direito e reconhecer-lhe a cidadania política como mais uma personalidade abstrata, no mesmo plano da concepção liberal que aparentemente critica. Ao invés de tratar concretamente da relação produtiva do homem com a natureza, uma relação que deve ser reequilibrada (corrigindo os danos causados pela produção destrutiva capitalista), trata-se abstratamente da “Mãe Terra” como sujeito de direito dotado de uma personalidade própria.
“É por isso que expomos aos povos do mundo a revalorização dos conhecimentos, sabedorias e práticas ancestrais dos povos indígenas, afirmados na vivência de um bem estar enraizado no conceito de ‘Bem Viver’. Da mesma forma, as economias devem estabelecer medidas de precaução e restrição para prevenir que as atividades humanas conduzam à extinção de espécies, à destruição de ecossistemas ou alteração dos ciclos ecológicos. Como corolário deve garantir que os danos causados por violações humanas dos direitos inerentes a Mãe Terra sejam expostos e que os responsáveis prestem contas para restaurar a integridade e a saúde da Mãe Terra.” (capítulo 16)
6.4 O humanismo em questão
De acordo com a concepção acima, é em respeito à “Mãe Terra” e sua saúde que se deve parar com a destruição do meio ambiente. Pede-se que o homem seja comedido em sua relação com a natureza, em nome de uma ética abstrata entre dois sujeitos de direito igualmente abstratos, o homem e a natureza. Mas o homem não é uma abstração, é um homem concreto, que vive numa situação histórica concreta, sob o império de relações de produção determinadas, as relações capitalistas, que não respeitam qualquer limite em sua expansão. Sem falar em termos concretos, tudo que se pode fazer é uma predicação moral para que o homem “respeite a natureza”. Mas qual é a medida desse respeito? Quantos milhões de toneladas de aço se pode extrair respeitosamente da “Mãe Terra” e quantos representam um desrespeito? Como fixar essa medida, em relação a qualquer recurso natural? Se fosse possível calcular essa medida, como fazer qualquer país respeitá-la? Como estabilizar uma medida aceitável de consumo de recursos naturais num planeta em que as condições de vida variam da miséria ao extremo luxo?
Só é possível responder às questões acima tendo como referência as necessidades do homem, e não da natureza. A relação responsável e equilibrada com a natureza é uma necessidade humana, mas que não pode ser satisfeita sob as atuais relações de produção. É o homem que deve ser o centro das reflexões e das propostas. O humanismo (que tem origem no Renascimento, avança no Iluminismo e desde o século XIX sobrevive no projeto socialista) reafirma a prerrogativa do homem de dispor da natureza para aumentar seu bem estar material. Nesse sentido, o humanismo é uma conquista histórica em relação a todos os modos de pensar religiosos, obscurantistas, supersticiosos, reacionários, que prescreviam limitações a essa prerrogativa humana. Uma conquista histórica à qual não podemos jamais renunciar! O que se trata de determinar é se o uso que se faz da natureza pode ser prolongado indefinidamente ou não. Não está implícito no humanismo que o uso da natureza seja feito de forma destrutiva. Isso é uma característica da produção capitalista.
Dentro das relações de produção capitalistas os produtos do trabalho humano têm a forma de mercadorias, com um duplo caráter de valor de uso e valor de troca. A condição das mercadorias de portadoras de um valor de uso está subordinada à sua função de realizar o valor de troca nelas contido, concretizando a reprodução ampliada do capital. Isso significa que o valor de troca tende a se impor sobre o valor de uso até sua quase completa anulação. As mercadorias deixam de ter relação com necessidades reais e passam a visar apenas a realização do lucro. Daí a fabricação constante de novas necessidades artificiais, bem como a obsolescência programada das mercadorias (produtos com tempo de vida útil cada vez mais curto, que precisam ser substituídos por novos produtos, e assim sucessivamente). O capital só pode existir em expansão permanente, daí sua necessidade de produzir e vender sempre cada vez mais mercadorias, mesmo que o valor de uso real de tais mercadorias seja reduzido ao mínimo. Durante um certo período histórico, o impulso do capitalismo para produzir sempre mais foi um avanço. Desde o século XIX, quando surge o projeto socialista, com
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