Carnaval Carioca de 2018: novamente, a velha manipulação das Organizações Globo
5 de março de 2018
Alex Brasil*
Reescrever a história recente do país tem sido uma das constantes ações dos grandes meios de comunicações no Brasil. Além dos lamentáveis “Guias Politicamente Incorretos” editados pela Revista Veja (que teve até Lobão – argh! – como um dos autores), essa prática tem juntado também outros “barões” da comunicação como os Frias da Folha de São Paulo e os Marinho das Organizações Globo, para citar alguns.
No caso da Folha de São Paulo, ficou marcante o absurdo editorial escrito em 2009, dizendo que no Brasil tinha existido uma “ditabranda”, registre-se que a Folha de São Paulo cedeu seus veículos para ações dos agentes da repressão visando o extermínio da luta armada, que enfrentava a ditadura militar.
Já, no caso das organizações Marinho, no mesmo ano de 2009, a Globovídeos coproduziu o documentário “Wilson Simonal, ninguém sabe o duro que dei”, em que procura desfazer a imagem do cantor como dedo-duro a serviço da ditadura e procura colocar a tortura que o cantor encomendou ao seu contador Raphael Viviani como um ato impensado, mas não como um ato colaboracionista do artista com o regime militar.
Em outras palavras quis afirmar que: Simonal sofreu “patrulha ideológica” da esquerda, personificada no jornal alternativo “O Pasquim” e nos cartunistas Jaguar, Ziraldo e, principalmente, Henfil. Muitos que são leigos nessa história compram o barulho do documentário e vão além: Simonal também sofreu racismo por ser negro e também por ser o artista mais popular no Brasil, no final dos anos 60 e início dos anos 70.
Não quis se lembrar o documentário (coproduzido pelo casseta Claudio Manoel, então empregado muito bem pago pela emissora global) de que Wilson Simonal, antes da denúncia do Pasquim, tinha gravado “Brasil, Eu Fico” de Jorge Ben, música de qualidade duvidosa e que se alinhou ao lado da ditadura no desafio aos guerrilheiros, feito no slogan “Brasil, ame ou deixe-o”.
Já no caso do episódio de tortura, o policial do DOPS, amigo do cantor contatado para dar a surra no contador, Mário Braga, foi um dos responsáveis pela morte do guerrilheiro Stuart Angel, do MR-8, dias antes.
Por que a tortura de um contador, envolvendo o DOPS? Simonal era sócio de João Carlos Magaldi, que também tinha outra sociedade com Carlito Maia, irmão da guerrilheira da VPR, Dulce Maia. Ao falir, o cantor desconfiou que o contador estava desviando dinheiro para Carlito Maia para este financiar a luta armada, da qual a irmã, mesmo presa e posteriormente exilada, participava.
Por fim, o próprio Simonal se declarou como informante do DOPS, em 1971, conforme relatou o jornalista Mário Magalhães, biógrafo de Carlos Marighela. Detalhe perniciosamente esquecido pelo documentário, crivado de depoimentos favoráveis de funcionários das Organizações Globo ao Simonal, como de Nélson Motta e Chico Anysio. Aliás, este último por sinal ironicamente tinha escrito antes com Arnaud Rodrigues “Vô batê pá tú”, grande sucesso de 1975 (quando Simonal já estava preso pela surra no contador). Essa letra mencionava “lavando as mãos” e a situação do cantor “Deduração um cara louco/Que dançou com tudo/ Entregação com dedo de veludo/ Com quem não tenho grandes ligações”.
Agora, no carnaval de 2018, dentro da mesma ótica de manipulação, as Organizações Globo voltaram com força total na transmissão e edição de desfiles das escolas de samba do grupo principal do Rio de Janeiro e o alvo dessa vez foi a pequena Paraíso Tuiuti de São Cristóvão.
Um breve histórico, entre o novo com a Tuiuti e o velho com a Beija-Flor
Em um desfile sem efeitos especiais estudado nos EUA no estilo Paulo Barros, a Tuiuti levantou a avenida; deu voz aos antigos, atuais e futuros escravos; também denunciou toda a manipulação feita, principalmente, pela Rede Globo; paneleiros vestidos com camisas da CBF, patos-marionetes da FIESP; o vampiro vestido de presidente e até um tucano engaiolado (imagem que a Globo não mostrou), ou seja, tudo aquilo que beneficiou, recentemente, toda a burguesia brasileira.
Não satisfeita com a edição do desfile, em seguida, o G-1-Globo.com induziu à vitória a escola Beija-Flor de Nilópolis, com um enredo “parecido” com o da pequena escola de São Cristóvão, mas que não ousou fazer as denúncias que a Tuiuti fez. Aliás, a escola de samba da Baixada Fluminense, se observarmos bem, se limitou a denunciar a corrupção, a guerra e a desigualdade social, o mercado da fé, isto é, coisas que podem estar no discurso dos partidários da Operação Lava-Jato. E nem poderia ir além: está no DNA da Beija-Flor e assim se transformou de pequena na maior potência do carnaval carioca.
Não é em demasia relembrar que a Beija-Flor subiu em 1973 para o desfile principal com um samba exaltando à Educação oficial do regime militar. Não custa recordar que dois anos antes havia sido imposta a Reforma Educacional e implantadas as odiosas disciplinas de OSPB e Educação Moral e Cívica para adestrar a juventude, celeiro de quadros para as manifestações estudantis dos anos 60 e para a luta armada.
Para a ditadura, tanta bajulação não passou desapercebida, com o regime militar enviando o professor Marco Antônio, chefe do gabinete civil do STF, para assessorar a escola (conforme expressa a música popular brasileira sob censura “Sinal Fechado”, de Alberto Moby).
No ano seguinte, enquanto Martinho da Vila tinha seu samba “Aruanã Açu” preterido na Vila Isabel – por denunciar a matança dos índios, que pode ter chegado a três mil indígenas com o crime ambiental nas obras faraônicas da ditadura (Transamazônica) – a Beija-Flor desfilava no grupo principal exaltando justamente essas obras faraônicas fundamentais para a propaganda militar do “Brasil grande” em “Brasil no ano 2000” (“É estrada cortando/a mata em pleno sertão…”).
Já em 1975, a Beija-Flor exaltaria os dez primeiros anos do Golpe Militar, cantando o PIS, o PASEP e o FUNRURAL.
Foi com a contratação do carnavalesco Joãosinho Trinta e do diretor de harmonia Laíla, que a Beija-Flor teve a sua recompensa como escola “chapa branca”: ganhou o carnaval de 1976, exaltando a contravenção. O caminho tinha sido pavimentado antes pela ditadura.
Em 1977, “Anísio” passou o carnaval preso junto com Carlinhos Maracanã, por contravenção. Em declaração ao jornal Última Hora disse que sua prisão “não passou de mais um ato subversivo comandado por comunistas”. No entanto, a Beija-Flor não foi prejudicada e ganhou o bi. E o patrono da escola procurava se mostrar cada vez mais alinhado com seus padrinhos em Brasília.
Em 1978, no tricampeonato, em que a estética de samba no chão da Estação Primeira de Mangueira foi derrotada pelo carnaval espetáculo de Nilópolis, o carnavalesco da Beija-Flor se voltou contra o histórico compositor portelense Antônio Candeia Filho.
Candeia tinha rompido com a Portela para a fundação da escola alternativa Quilombo, propondo o “samba dentro da realidade brasileira”. Joãosinho Trinta disparou: “Pobre gosta de luxo. Quem gosta de miséria é intelectual”. E o grande líder sambista, claramente influenciado no final da vida por comunistas, rebateu à altura: “Como pode pobre gostar de algo que não conhece?”. A agremiação de Joãosinho Trinta passou a ser conhecida como “Unidos da Arena”.
Após um breve hiato nas relações entre Globo e Beija-Flor, em 1979 – segundo consta, “Anísio” não cedeu a sua mansão em Nilópolis para as locações da novela “Pai Herói” – a Globo, em represália, buscou prejudicar a transmissão do desfile da escola.
A insistência em detonar o novo
Tudo voltou a normalidade nos anos 80 entre a emissora e a agremiação da Baixada. A Beija-Flor ganhou dividido o desfile em 1980. Introduziu temas internacionais nos enredos das escolas e em 1981, com as sete maravilhas do mundo (a antessala da “globalização” dos desfiles), ficou como vice. Ganhou, em 1983, de forma bastante suspeita, com o jurado Messias Neiva dando notas baixas para todas as escolas, por exemplo, com seis para a Portela e somente um dez para a Beija-Flor. A Portela ficou somente três pontos atrás, claramente prejudicada por Messias.
Nesse período, o parceiro histórico de Joãosinho, Laíla, tentou um voo solitário na Unidos da Tijuca, com o enredo “O que dá pra rir dá pra chorar” a luta do herói Mitavai (o povo brasileiro) contra o monstro Macobeba (as multinacionais), em 1981. O SNI infestou agentes no desfile e a Globo tentou retardar a exibição do desfile. Depois de outros enredos sociais que a escola do Morro do Borel costumava fazer antes de Paulo Barros, Laíla preferiu mares mais calmos, voltou para o Salgueiro e depois foi para o carnaval paraense até retornar para a Beija-Flor.
Em 1986, a Beija-Flor, responsável pelo carnaval hollywoodiano, introduziu o merchandising no desfile com o símbolo da Adidas em uma alegoria. Mas, os tempos no samba dos anos 80 refletiam o fim da ditadura e o crescimento das lutas sociais. Surgia o samba-enredo político que se consagrou com a vitória do Império Serrano, em 1982, com “Bum Bum Paticumbum Prugurundum” (denunciando as “Super Escolas de Samba S/A” tipo Beija-Flor); com a conquista da Vila Isabel, em 1988, com “Kizomba, a Festa da Raça” disputando “cabeça a cabeça” com a Estação Primeira de Mangueira que vinha com o também histórico “Cem anos: liberdade, realidade ou ilusão?”. Ambos os enredos desmitificavam a farsa do centenário da abolição.
Com a volta de Laíla, a Beija-Flor, em 1989, tentou pegar uma carona no samba-enredo social com “Ratos e Urubus, larguem a minha fantasia!”. Bateu de frente com a Igreja católica, mas, foi derrotada ironicamente pelo modelo de desfile que ajudara a criar o do carnaval suntuoso da também “chapa branca” Imperatriz Leopoldinense com “Liberdade, Liberdade, Abre as Asas Sobre Nós”. Mesmo assim, “Ratos e Urubus” não deixou de ser uma resposta reacionária e um deboche de Joãosinho Trinta e Laíla à vitória de “Kizomba”: ora, se a Vila ganhou com fantasia de palha o carnaval de 1988, por que não ganhar o carnaval com mendigos?
Após novamente ter chegado tão perto ao título, a escola da Baixada que já amargava seis anos sem títulos, ficaria mais nove anos sem um carnaval. Com o avanço do neoliberalismo nos anos 90, a Beija-Flor foi reconquistando o seu lugar. Já sem João Jorge Trinta, Laíla foi para a Grande Rio, mas retornou tendo Milton Cunha como carnavalesco (o comentarista global tão econômico e monossilábico em relação ao desfile da Paraíso do Tuiuti).
Em 1998, a escola de Nilópolis voltou a ganhar um título dividido com a Mangueira, de forma bastante questionável. Nos últimos ´vinte e um anos, venceu exageradamente sete dos desfiles sendo um, inclusive, pouco antes da prisão de “Anísio” em 2007 (solto, com facilidade, em 1977, 1993 e depois em 2012). Outra conquista da Beija-Flor exaltou um ícone global (Roberto Carlos, em 2010). Tentou repetir a dose com o enredo exaltando outro ícone, Boni, em 2014, mas fracassou. Deu a volta por cima no ano seguinte e ganhou o carnaval com o enredo vendido para a ditadura de Guiné Equatorial, miserável país africano que financiou o desfile da azul e branco de Nilópolis.
Após a vitória de 2015 e a polêmica gerada, a Beija-Flor, mais uma vez se reinventou. Sem Joãosinho Trinta, Laíla, o maior quadro desse carnaval inaugurado nos anos 70, com grande competência oportunista, retomou o caminho tentado em 1989, com “Ratos e Urubus”. Mas, como naquele ano, sem nunca dar nomes aos bois como fez esse ano a Tuiuti. Afinal, para a Beija-Flor é necessário estar de bem com “os podres poderes” como os governantes, a FIESP, os meios de comunicação como a Globo, etc. Foi assim que se transformou numa potência, ainda que a retórica possa enganar e a faz ganhar novamente o carnaval.
Tanto são harmoniosas as relações da Beija-Flor com os grandes meios de comunicação, que, após o desfile das campeãs (quando a Paraíso do Tuiuti foi pressionada a tirar a faixa presidencial do vampiro neoliberal) o jornalista de O Globo, Artur Xexéo, escreveu uma crônica buscando aliviar as relações passadas da Beija-Flor com a ditadura militar (dizendo que outras escolas também fizeram enredos em homenagem ao “Brasil Grande”). Também defendeu a transmissão da Rede Globo no desfile da Paraíso Tuiuti. Além disso, Xexéo desmereceu o desfile da pequena escola de São Cristóvão, que repercutiu internacionalmente e a levou a um injusto segundo lugar, alegando que a Tuiuti apostou em um “Fla X Flu” eleitoral.
Mais uma vez, as Organizações Globo tentam reescrever a história: antes com Wilson Simonal, agora com a Beija-Flor. Uma maneira de fazer prevalecer o velho (mesmo lhe dando uma nova roupagem) e uma forma de detonar o novo.
*Militante do Movimento de Organização Socialista