Revolução Russa: dos Dias de Abril ao mês de Julho
1 de junho de 2017
No jornal Espaço Socialista anterior, seguimos os acontecimentos desde a Insurreição de Fevereiro até os impasses gerados pela nova situação política e social em março. Um Governo Provisório que fazia o que podia para frear o movimento espontâneo das massas, as organizações de esquerda em geral agrupadas ao redor da tese do “apoio crítico” ao Governo Provisório. E as massas operárias, os soldados e camponeses tomando as medidas imprescindíveis para que o avanço revolucionário prosseguisse.
Nos meses de abril, maio e junho, a situação revolucionária avançaria com rapidez e é disso que trataremos nesse número do Jornal Espaço Socialista. No número seguinte, abordaremos o avanço e a derrota da contrarrevolução nos meses de julho e agosto.
Lênin, as Teses de Abril e a luta interna aos bolcheviques
Em abril, profundas mudanças afetam o processo revolucionário russo.
Com a chegada de Lênin, Zinoviev e outros revolucionários russos do exterior se inicia no Partido Bolchevique a luta contra as concepções até então dominantes no interior do partido, principalmente contra aquela que afirmava que a Revolução Russa tinha um conteúdo essencialmente burguês e que, por isso, o papel das forças revolucionárias seria o de auxiliar a burguesia a se consolidar no poder contra a reação monarquista. Stálin e Kamenev estavam propondo a união dos bolcheviques com os mencheviques na defesa da revolução de fevereiro. 1
Chegando à Rússia, Lênin redige as Teses de Abril: a república nascida da Revolução de Fevereiro era uma república burguesa — e que, portanto, não cabia aos operários lutarem por ela. A tarefa dos bolcheviques era derrubar o governo imperialista burguês de Kerensky e fundar a República Soviética dos trabalhadores. A principal tarefa momentânea dos bolcheviques era explicar “pacientemente” às massas quem os mencheviques e os sociais-revolucionários defendiam — a burguesia — e não temer ficar, momentaneamente, em minoria. Pelo contrário, estando em minoria era possível, naquele momento histórico particular, explicar às massas exaustivamente todas as traições que os mencheviques, sociais-revolucionários e o Governo Provisório estavam realizando e, dessa forma, conseguir o apoio das massas operárias e camponesas.
A luta no interior do Partido Bolchevique foi renhida. Os estratos superiores do partido receberam com animosidade e desconfiança as opiniões de Lênin e, quando foram publicadas no Pravda (órgão bolchevique), receberam uma introdução esclarecendo que os editores do jornal (entre eles Stálin) consideravam as teses inaceitáveis, pois partiam do pressuposto (falso, para eles) que estava na hora de se lutar por um governo operário na Rússia.
No entanto, os setores do partido mais próximo à classe operária, principalmente os comitês dos distritos operários, passaram a fazer agitação das teses entre as massas, principalmente em Moscou e Petrogrado. Na conferência do Partido, em abril, as Teses de Lênin acabaram sendo vitoriosas. Para isso em muito contribuiu o clima político que vivia a Rússia depois dos “Dias de Abril”, como veremos a seguir.
Enquanto isso, o Governo Provisório tentava consolidar seu poder político para a formação de um regime burguês. Para tanto, era fundamental conquistar a confiança e o apoio dos Aliados (França, Inglaterra e Estados Unidos) e obter financiamentos desses países para conseguir controlar a crise econômica.
A contrarrevolução, encabeçada agora pelo partido que formava a direita do Governo Provisório, o Partido Cadete, estava, por sua vez, preparando a primeira tentativa para voltar ao poder político. Seus principais instrumentos seriam o ministro dos Negócios Estrangeiros, Milyukov e o general Kornilov.
No dia 18 de abril, o Governo Provisório promoveu uma gigantesca manifestação de cunho patriótico, comemorando o dia Internacional do Trabalhador (na Rússia, até o calendário estava atrasado 13 dias em relação ao calendário ocidental).
Tomaram parte da manifestação desde os ministros burgueses até os distritos operários. Todos expressando sua determinação de lutar pela democracia até o fim. O tema da guerra e da paz foi habilmente escondido pelo Governo Provisório. Claro que cada classe social interpretava de forma diferente a palavra democracia, mas isso não impediu o Governo Provisório de proclamar aquela manifestação como prova de unidade do povo russo ao redor da “democracia” que eles apregoavam.
Nesses mesmos dias, Milyukov havia articulado secretamente, juntamente com o Estado Maior do Exército que pululava de generais monarquistas, uma operação militar para ocupar os estreitos de Bósforo e Dardanelos, passagem obrigatória para os navios Russos que se dirigiam ao Mediterrâneo. O objetivo de Milyukov era forçar os mencheviques e os sociais-revolucionários a aceitarem uma política exterior imperialista, voltada à expansão do império russo e à manutenção da guerra, através de um fato consumado. E, ainda, os EUA que entraram na guerra no início de 1917, haviam prometido um crédito suplementar de 75 milhões de dólares ao Governo Provisório caso ele realizasse uma nova ofensiva sobre o exército alemão.
Os planos da contrarrevolução esbarraram na resistência das massas. Os soldados que deveriam tomar os estreitos de Bósforo e Dardanelos se negaram a cumprir as ordens emanadas do Estado Maior do Exército.
No dia 19, o dia seguinte à manifestação, os operários em Petrogrado e Moscou tomaram conhecimento da nota enviada por Milyukov aos aliados da Rússia na guerra, afirmando que era objetivo do Governo Provisório continuar com a guerra até a vitória final, honrando todos os compromissos que o governo czarista havia assumido. No mesmo dia, chegam as notícias da tentativa frustrada de ocupar os estreitos. Tudo evidenciava aos trabalhadores que o Governo Provisório tinha todo o interesse em continuar com a guerra, as corrupções e roubalheiras que propiciavam à burguesia. Nunca se venderam tantas joias na Rússia como naquela época, enquanto aumentava a miséria e a fome dos trabalhadores.
Além disso, os camponeses, que eram a maioria dos soldados, desejavam voltar para suas casas e aproveitar o final da primavera para o plantio de seus campos. Este sentimento era agravado pelas incessantes notícias de casa, que davam conta de que os kulaks e os latifundiários estavam retomando suas terras e controlavam os sovietes e os comitês sobre a terra. Os camponeses no exército estavam percebendo que as vitórias conseguidas em fevereiro e em março estavam esvaindo por seus dedos.
O mesmo sentimento atingia os operários. Os comitês de fábricas encontravam cada vez maiores dificuldades em impor suas decisões nos locais de trabalho. Os patrões estavam articulando um blackout, com o apoio disfarçado do Governo Provisório, para forçar a extinção das organizações dos operários nas indústrias. O Governo Kerensky, embora houvesse prometido, ainda não havia promulgado a lei estabelecendo a jornada de trabalho de oito horas nem tomara medidas para melhorar a vida dos trabalhadores mediante a diminuição dos lucros dos capitalistas.
Todas as reivindicações econômicas e políticas encaminhadas pelas massas trabalhadoras da cidade e do campo encontravam a mesma resposta do governo burguês: estas medidas só poderiam ser adotadas pela Assembleia Constituinte — que, no entanto, não tinha data estabelecida para ser convocada.
Os “Dias de Abril”
Foi neste estado de espírito que as massas operárias e camponesas receberam a notícia da nota de Milyukov e da fracassada ofensiva sobre os estreitos de Bósforo e Dardanelos. A reação foi imediata. No dia 19 de abril, o dia seguinte à manifestação de “apoio” ao Governo Provisório, um professor sem partido, do qual apenas sabemos que era “matemático e filósofo”, se dirigiu ao regimento finlandês e propôs que ele se dirigisse em manifestação à sede do Governo Provisório. A proposta foi aceita e às três da tarde o regimento finlandês ocupava as ruas da Capital. Logo outros regimentos aderiram, os operários paralisaram as fábricas e se juntaram aos soldados. O slogan que dominava a manifestação era — pela primeira vez — “Abaixo o Governo Provisório”.
No entanto, as massas tinham ainda confiança em Kerensky e nos mencheviques. Com tal manifestação e com a palavra de ordem “Abaixo o Governo Provisório”, queriam “ajudar” os mencheviques e sociais-revolucionários a se livrarem de Milyukov e cia. Por isso, os sociais-revolucionários e os mencheviques não tiveram muita dificuldade em controlar e dispersar a manifestação, não antes, porém, que houvesse ocorrido uma troca de tiros com uma outra manifestação promovida pelos cadetes em apoio a Milyukov e o governo provisório.
Esses acontecimentos fizeram com que as Teses de Abril caíssem em terreno fértil e servissem para esclarecer as massas revolucionárias. O espaço que Lênin ganhava no interior do partido era um reflexo de como suas opiniões penetravam na classe trabalhadora, principalmente em Petrogrado.
Milyukov e Kornilov se aproveitaram desse clima de insatisfação das massas trabalhadoras em relação ao Governo Provisório para precipitar um confronto das massas revolucionárias com a contrarrevolução, num momento em que, dado o baixo nível de consciência e organização dos primeiros, o confronto poderia se adverso para a revolução. O objetivo de Kornilov e Milyukov era trazer as massas desorganizadas para a rua e, num encontro sangrento, derrota-las e derrubar o governo de Kerensky. Para isso Kornilov transferiu batalhões “leais e confiáveis” para perto de Petrogrado e conclamou os cadetes para saírem às ruas e provocarem os trabalhadores.
No entanto, mais uma vez, o plano contrarrevolucionário falhou, como falharia mais tarde, por um poderoso fator: a organização das massas trabalhadoras nos seus locais de trabalho, em comitês de fábricas e sovietes locais, e dos soldados nas unidades militares, em comitês de soldados. Quando percebeu o golpe contrarrevolucionário, o Comitê Executivo do Soviete de Petrogrado enviou uma ordem aos comitês das unidades militares avisando-as a não saírem dos quartéis a não ser com ordens expressas dos Sovietes. Quase nenhuma tropa seguiu Milyukov e Kornilov.
A derrota da tentativa contrarrevolucionária e a pressão das massas que se seguiu forçou a saída dos cadetes do governo, e a formação de um novo governo, agora mais à esquerda, com participação dos mencheviques e dos sociais revolucionários. Kerensky assumiu o posto de Ministro da Guerra e da Marinha. Junto às massas, a participação de mencheviques e sociais-revolucionários, alguns dos quais haviam cumprido penas nas prisões czaristas, dava certa credibilidade ao novo governo. Mas, por pouco tempo, como veremos.
Junho
Uma semana após ter tomado posse do cargo de Ministro da Guerra a Marinha, Kerensky iniciou uma gigantesca campanha pelo fronte a favor de uma ofensiva contra os alemães, atendendo às pressões lizados pelos países aliados da Rússia na Guerra. Para os soldados, afirmava que os alemães estavam completamente esgotados com a entrada dos EUA na guerra e que a ofensiva que ele propunha era o caninho mais rápido para a paz. Apelava para o espírito patriótico — em defesa da “nossa revolução” — para que avançassem sobre os alemães. Para a imprensa social–revolucionária, cadete e menchevique dava enorme eco à declaração do recém empossado ministro.
Com maioria cadete, menchevique e social–revolucionária o Congresso dos Sovietes de toda a Rússia, que se iniciou a 3 de junho, aprovou a necessidade da nova ofensiva, com a oposição dos mencheviques, dos anarquistas e alguns internacionalistas.
Durante este período os bolcheviques explicavam “pacientemente” às massas quem era o Governo Provisório, e o que este pretendia. Os bolcheviques realizaram um intenso esforço de propaganda afirmando que a nova ofensiva se transformaria numa gigantesca derrota, que o exército não tinha condições materiais de se lançar numa nova ofensiva — e mais — que essa ofensiva tinha como objetivo atender às exigências dos governos da França e Inglaterra, ao enorme preço de piorar ainda mais a crise econômica por que passava o país.
De meados de maio em diante, começa a se fazer sentir uma crescente inclinação dos trabalhadores em direção aos bolcheviques. Muitas vezes, os sovietes faziam violentas críticas aos bolcheviques, mas apoiavam as teses que este partido levantava. Outras vezes, delegados que se afirmavam mencheviques ou social-revolucionários, criticavam violentamente o governo provisório. A 17 de maio o Soviete de Kronstadt se declara o único governo na localidade e não reconhece mais o governo provisório.
Em inúmeros sovietes locais e comitês de fábrica os bolcheviques se transformaram em maioria, ou então, aumentaram em muito o número de seus delegados. Um número cada vez maior de bolcheviques é enviado ao front como delegados dos comitês dos soldados aos sovietes. No campo, os bolcheviques começam a conquistar os primeiros sovietes.
No dia 6 de junho começou a ofensiva militar contra os alemães, que se transforma num gigantesco fiasco. A incapacidade política do novo governo em preparar a ofensiva faz com que os Exércitos russos atacassem de forma desordenada e em datas muito diferentes umas das outras. Em poucos dias o exército russo está totalmente batido e inicia uma desastrada retirada. Os alemães avançam. Os soldados percebem que foram enganados por Kerensky e pelo novo governo: a ofensiva não levaria à derrota da Alemanha e à paz. A autoridade de Kerensky e seus partidários frente às massas sofre um enorme declínio, as massas aceleram seu deslocamento para a esquerda, dentro do espectro político russo.
Essa insatisfação dos soldados é acentuada com a aprovação pelo Comitê Executivo do Sovietes de uma “Declaração dos Direitos do Soldados”, um verdadeiro passo atrás em relação à Ordem nº 1. — fundamentalmente ela restringia a liberdade de organização dos soldados em suas unidades militares.
O Comitê militar Bolchevique de Petrogrado convocou uma manifestação para denunciar e protestar contra esses acontecimentos. Mas frente à pressão do Soviete do I Congresso de Sovietes de Toda a Rússia, recua da manifestação. Esse recuo do partido recebe violentas críticas de alguns comitês de fábricas, e alguns membros do partido, em protesto, rasgam suas carteirinhas. A tensão entre as massas estava se tornando explosiva.
Os mencheviques e sociais-revolucionários tomam então a iniciativa de convocar eles mesmos uma manifestação para mostrar que os trabalhadores apoiavam a eles e não aos leninistas. A manifestação convocada pelo Governo Provisório teria os seguintes slogans: “Paz Universal”, “Convocação Imediata da Assembleia Constituinte”, “República Democrática” etc. Significativamente eram deixadas de lado qualquer palavra de ordem de apoio direto ao Governo Provisório.
Os bolcheviques decidem participar desta manifestação e transformá-la no oposto do que desejavam os mencheviques e sociais-revolucionários. Sob as palavras de ordem “Todo o poder aos Sovietes”, “Abaixo os Dez Ministros Capitalista” e “Abaixo a Ofensiva”, a manifestação deveria se transformar num repúdio das massas trabalhadoras de Petrogrado à política seguida pelo governo de Kerensky.
Quatrocentos mil pessoas participaram da marcha que se transformou em uma enorme manifestação bolchevique. Pela primeira vez as forças que apoiavam o governo burguês, e o próprio governo burguês, haviam sofrido uma derrota com as armas e o campo escolhido por eles. Não era uma derrota que decidisse a sorte da revolução, é verdade. Mas era a primeira derrota.
Imediatamente, as forças da contrarrevolução, encontrando o apoio da direita menchevique e da direita social-revolucionária, levantaram a palavra de ordem de desarmar os bolcheviques e as massas revolucionárias. Estava se aproximando o momento, clássico em toda a Revolução Burguesa, no qual os donos do capital tentam desarmar os trabalhadores. Medidas começam a ser tomadas para transferir os regimentos mais revolucionários para o fronte, desarmar aquelas unidades militares que se negassem a obedecer às ordens governamentais e proibir a imprensa bolchevique. Uma campanha sem precedentes tem início para as massas acreditarem que os bolcheviques são espiões alemães — pois Lênin, seu chefe máximo, não veio à Rússia num trem cedido pelo governo alemão? Todos os fracassos do Governo Provisório são lançados sobre as costas do Partido Bolchevique.
Ao mesmo tempo, as forças abertamente contrarrevolucionárias (que se aglutinavam no Partido Cadete) percebem que o Governo Provisório não era uma proteção suficiente contra as massas, e começam a conspirar para substituir o governo de Kerensky por uma ditadura militar férrea, que sufocasse a revolta dos trabalhadores.
O final de junho passa em comoção contínua. Comitês de Fábricas e Sovietes Locais aprovam resoluções contra o Governo Provisório, contra a ofensiva e a favor do poder dos sovietes. O slogan “todo poder aos sovietes” começa a penetrar cada vez mais nas massas. No campo, ainda que lentamente, também se observa uma transformação das opiniões dos camponeses semelhante à evolução que ocorre nas cidades: cada vez mais à esquerda.
No início de julho chegam notícias do front dando conta da enorme derrota em que se transformara a ofensiva. A desorganização do Exército na frente de batalha e a deserção do exército pelos camponeses que, em grupos, retomavam para as suas terras, deixavam as portas da Rússia abertas para um posterior avanço alemão. Kornilov começa a tramar com o Estado Maior alemão para que ele invadisse Petrogrado e esmagasse a revolução.
Ao mesmo tempo, as condições econômicas da Rússia se deterioravam rapidamente. “Em 1915 a guerra custou à Rússia 10 bilhões de rublos, em 1916, 19 bilhões; durante a primeira metade de 1917, 10,5 bilhões; no começo de 1918 a dívida externa teria igualado toda a riqueza da nação! O Comitê Executivo Central (dos Sovietes) estava esperando um apelo por um empréstimo de guerra, sob o nome açucarado de “Empréstimo da Liberdade”, enquanto o governo ia chegando à conclusão não muito complicada de que sem um enorme empréstimo estrangeiro, ele não somente não poderia pagar seus credores estrangeiros, como também não poderia sustentar suas obrigações domésticas.” Os capitalistas, desanimados com uma produção que lhes rendia mais dores de cabeça que lucros, estavam deliberadamente fechando suas fábricas até melhores dias. “O ministro do trabalho, Kobolev estava pregando aos trabalhadores, em grandes manifestos, a inconselhabilidade da interferência destes na administração das fábricas”. Mais da metade das locomotivas estavam necessitando de grandes reparos e a maior parte do material das estradas de ferro não funcionavam por falta de combustível. Tseretelli, um líder menchevique que entrara para o governo com grande prestígio entre as massas, tal como Kerensky, estava se tornando uma figura odiada para maioria dos soldados e trabalhadores de Petrogrado. Com a violenta inflação, a luta por melhores salários estava enervando os trabalhadores. “Um relatório do sindicato dos condutores de trens ao ministro da Comunicação afirmava: ”Pela última vez nós anunciamos: paciência tem seus limites, nós simplesmente não podemos viver essas condições…”.
Em geral os soldados estavam mais impacientes que os trabalhadores tanto porque eles estavam ameaçados de uma transferência para o fronte, como porque era mais difícil para eles que para os operários entenderem considerações de estratégia política. No dia 21 de junho um apelo de Lênin aos trabalhadores apareceu no Pravda, alertando–os de que “um ataque imediato seria inviável”.
Na praça de Yakomy, em Kronstadt, os anarquistas estavam aprovando um ultimatum após o outro. O clima estava se tornando explosivo. “Em todos os lugares” relembra Sukanov “(…) se falava sobre algum tipo de manifestação, se não hoje, amanhã…” Ninguém sabia ao certo quem iria manifestar o que, mas a cidade se sentia próxima a algum tipo de explosão.
A contrarrevolução, procurando aproveitar a insatisfação e desestabilizar o Governo Provisório com o objetivo de lhe tomar o lugar, retirou os ministros cadetes da coalizão governamental.
Em Petrogrado, um anarquista, Bleichman, estava ganhando para seus pontos de vista camadas cada vez maiores de soldados: “É necessário sairmos de armas nas mãos. Organização? A rua nos organizará. A tarefa? Derrubar o Governo Provisório do mesmo modo como derrubamos o czar sem que nenhum partido estivesse liderando”. “Os trabalhadores progressistas lembravam que em fevereiro seus líderes estiveram prontos a se retirarem da luta justamente na véspera da vitória; que, em março, a jornada de 8 horas havia sido ganha por uma ação de baixo; que, em abril, Milyukov foi derrubado por regimentos que foram para a rua pela própria iniciativa. A lembrança desses fatos aumentava o espírito tenso e impaciente das massas”.
Estas, sentindo que os sovietes estavam ficando para trás, começaram a construir novos laços organizativos por fora dos já existentes. “No lugar dos velhos comitês de regimentos eles tinham eleito um comitê revolucionário provisório consistindo de dois membros para cada companhia sob a presidência de Ensing Semashko”. Delegados haviam sido enviados para Kronstadt e outros regimentos pedindo apoio e esclarecendo que a manifestação seria armada.
“Um trabalhador da fábrica Renaud conta: ‘Depois do jantar alguns soldados do regimento de metralhadoras requisitaram que nós que fornecêssemos a eles alguns caminhões. Apesar do protesto do nosso grupo (os bolcheviques) nós tivemos que dar os caminhões… Eles rapidamente os lotaram com metralhadoras e se dirigiram ao longo do Nevski. Nesse momento nós não podíamos mais segurar nossos trabalhadores… Todos eles, como estavam, em macacões, saíram da bancada direto para a rua…”. Nas ruas, os guardas vermelhos carregavam de munições suas armas e seus cinturões, os trabalhadores que não haviam conseguido armas ajudavam outros que as haviam conseguido a se prepararem.
Os bolcheviques não poderiam mais segurar a manifestação. Ela seria armada e contaria com a participação da imensa maioria dos trabalhadores e soldados de Petrogrado. Somente restava ao Partido Bolchevique seguir a manifestação e impedir que ela se transformasse numa tomada prematura do poder pelos sovietes. Tomar o poder naquele momento significava ficar isolado das massas camponesas e dos setores mais atrasados dos operários que trabalhavam em outras cidades menores, facilitando o trabalho da contrarrevolução. Devemos esperar as reservas que ainda contam neutralizadas, explicava Lênin.
O Governo Provisório, sentindo o perigo que pairava sobre seu pescoço, imediatamente apelou para o Estado Maior do Exército (berço da contrarrevolução, como sabemos) para que mandasse tropas leais para Petrogrado com o objetivo de proteger o Governo Provisório da manifestação dos trabalhadores. O Comitê Executivo dos Sovietes proclamou a manifestação contrarrevolucionária e apoiou o pedido de tropas feita pelo governo Kerensky. Apesar disso, nenhum regimento apareceu para defendê-los.
O primeiro dia da manifestação terminou em discursos e marchas, por parte dos manifestantes; e resoluções e proclamações por parte do Governo Provisório e do Comitê Executivo dos Soviete afirmando o caráter contrarrevolucionário da manifestação. Para o segundo dia, os bolcheviques decidiram tomar a frente da manifestação. Uma proclamação dos bolcheviques convocou os trabalhadores e soldados para “…através de uma manifestação organizada e pacífica levar seus desejos à atenção do Comitê Executivo, agora reunido”.
No segundo dia a manifestação contou com a participação de operários em cujos comitês os mencheviques e sociais-revolucionários ainda contavam com maioria. Tropas de todas as localidades próximas a Petrogrado vieram à manifestação. Para a defesa do Quartel General do Exército, o Governo contava somente com alguns cossacos.
Um choque armado e violento ocorreu entre um destacamento cossaco e a retaguarda da manifestação, o destacamento foi disperso pela multidão.
Os manifestantes sitiaram o Palácio Tauride, sede do Governo Provisório. Um grupo entrou no palácio e trouxe Chernov, um ministro social-revolucionário, com eles. Não fosse a intervenção de Trotsky, a massa teria aprisionado o ministro.
Numa reunião com o Comitê Executivo naquela noite, os oradores dos manifestantes se exprimiam assim: “Vocês vêm o que está escrito em nossas bandeiras. Tais são as decisões adotadas pelos trabalhadores. Nós exigimos a renúncia dos dez ministros capitalistas. Nós confiamos no Soviete, mas não naqueles em que o Soviete confia… Nós exigimos que a terra seja tomada imediatamente, que o controle da indústria seja estabelecido imediatamente. Nós exigimos luta contra a fome que nos ameaça…”. Outro orador afirmou: “Esta não é uma reunião, mas uma manifestação inteiramente organizada. Nós exigimos a transferência da terra aos camponeses. Nós exigimos a anulação das leis contra o exército revolucionário… Nós exigimos que o poder passe aos sovietes”. Enquanto transcorria a reunião, uma enorme massa de operários da fábrica Putilov exigia a presença de Tseretelli para falar com eles. Tseretelli se recusava a sair com medo e Zinoviev, o líder bolchevique, foi de encontro aos operários, que saudaram o temor do líder menchevique com uma estrondosa gargalhada.
A estrondosa gargalhada mostrava a mudança de qualidade na relação das massas que estavam nas ruas para com o Governo Provisório. Uma gargalhada estrondosa: o Governo Provisório já era tratado, ainda que não fosse assim nominado, como uma grande piada.
Todavia, quem tomaria a iniciativa seria a contrarrevolução. As forças revolucionárias colocaram tudo o que tinham em campo nos dois dias de manifestação em julho. O Governo Provisório resistiu e a contrarrevolução se aproveitará dessa vitória para tentar sufocar a revolução. Uma “quase” insurreição é a derrota da insurreição: os contrarrevolucionários percebem ter chegado sua hora e sua vez…
O que teve lugar, nessas semanas decisivas de julho ao início de setembro é, contudo, assunto para o próximo mês!
Até lá, viva a Revolução Russa! Abaixo o stalinismo!
1 Tal como no artigo anterior, todas as citações são de A história da Revolução Russa, de Trotsky, as exceções serão assinaladas.