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#MeToo: Os dois lados de um mesmo episódio


4 de fevereiro de 2018

No início do mês de janeiro ocorreu nos EUA a premiação do Globo de Ouro entregue todo ano, desde 1944, às e aos melhores do Cinema e da Televisão, segundo Hollywood.

Conquanto, nessa edição, o ato das atrizes em usar o “vestido preto em protesto” chamou-nos a atenção, já que expressava parte da mobilização que vinha ocorrendo nas redes sociais com a #MeToo ao denunciar casos de assédio sexual e estupro – também sofridos por várias atrizes – sem poupar famosos, diretores e produtores hollywoodianos.

Fato é que ao nos depararmos com uma situação como essa – em pleno governo Trump, em momento de avanço das ideias de extrema-direita, em meio ao chamado “glamour de Hollywood” com toda a sua história de Cinema – ficamos surpreendidos positivamente com o tipo de denúncia.

Esse tipo de violência contra a mulher tem sido silenciado, banalizado e desacreditado historicamente também nos EUA, país que registra cerca de 800 casos por dia, ou seja, 293 mil por ano (A ONG Rede Nacional Estupro, Abuso e Incesto – Rape, Abuse e Incesto Nacional Network – Rainn).

#MeToo e as denúncias de estupro e assédio

No entanto, é sempre difícil observarmos episódios como este de protesto e no universo de Hollywood sem considerarmos, ao menos, dois lados.

Por um lado, ressaltamos a importância dessas protagonistas do Cinema e da TV pelo fato de terem se fortalecido, rompido o silêncio, terem feito a denúncia e terem exposto os agressores (verdadeiro caso coletivo de escracho virtual), assumindo o papel das mulheres que no cotidiano carregam o peso do viver reprimido, incentivando assim a reação de outras. Certamente contarão ainda com represálias.

Ressaltamos também o forte discurso da apresentadora Oprah Winfrey que, além de fortalecer as atrizes vítimas de abuso, extrapolou Los Angeles, adentrou lares EUA à fora e contribuiu para ampliar a exposição do machismo muito crescente em momentos de retrocessos. Possibilitando, ainda, alcançar um número bem maior de pessoas, especialmente de mulheres e meninas abusadas sexualmente.

Ressaltamos ainda o papel antagonista da atriz francesa Catherine Deneuve ao construir com um grupo e publicar na imprensa francesa uma Carta de crítica ao “Movimento #MeToo”. Considerou-o como algo que favorece exatamente os extremistas religiosos, os inimigos da liberdade sexual e a repressão à livre expressão. E, ao mesmo tempo, insistiu no “direito dos homens de importunar” e na necessidade de as mulheres “deixarem os homens em paz”.

A Carta teve repercussão e favoreceu até mesmo o retorno do velho discurso machista da possibilidade de se “ter um orgasmo durante um estupro”.

As denúncias de estupro e de abuso por pessoas famosas, do Cinema e da TV, atingiram muito rapidamente o universo das pensadoras de universidades e já conta com uma avaliação como a da Historiadora Michelle Perrot que, em meio à polêmica entre os dois movimentos, critica a falta de solidariedade do “grupo da Carta” com o “Movimento #MeToo”.

E chamou a atenção de que este movimento é “um evento de escopo social, geográfico e geracional. Um evento de fala onde se diz sobre um sofrimento por muito tempo morto, reprimido, uma humilhação dissimulada.”

O papel do feminismo liberal

Após estas ressalvas, consideramos também como parte desse episódio a busca de fortalecimento e de crescimento do feminismo liberal.

São grandes atrizes denunciando assédio sexual e o estupro no local de trabalho, fazendo coro com várias outras artistas e também com uma grande quantidade de mulheres. E aqui, entendemos que são muito mais críticas em relação ao grupo francês, pois além de estabelecerem a linha divisória entre cantada e assédio sobrepõem ainda a questão de esse tipo de violência ocorrer em local de trabalho e cobram publicamente o “respeito” e o reconhecimento ao mérito profissional.

Coerentes com seu tipo de ativismo e diferentes do “grupo da Carta” – aproveitam-se da audiência da noite do Globo de Ouro, de sua premiação, dos premiados e do protesto polêmico – doam seus “vestidos pretos” de marcas famosas para um grande leilão organizado por empresas como Condé Nast (liderança na mídia de massa), Ebay (empresa de eletrônicos) e Vogue (moda).

Em parceria com empresárias de vários ramos, essas atrizes e artistas, coordenam ou fortalecem mobilizações como essas para o projeto Time´s Up, que arrecada dinheiro para ajudar vítimas de abuso, que não têm poder aquisitivo para se defender na Justiça, por todo os EUA a fim de aproveitar o “lado sedutor da moda para o ativismo” e arrecadar para o projeto.

Assim, se torna compreensível e podemos observar o caminho percorrido por esse movimento feminista que – ao acompanhar o aumento das denúncias de assédio sexual e estupro, inclusive, entre pessoas que são referenciais de comportamento e beleza hollywoodianos e ao buscar reagir ao avanço das ideias de extrema-direita – ultrapassa algumas fronteiras ao buscar questionar certos limites da arte, da criação, da suposta liberdade sexual, etc. e une ativismo, mundo da moda e grandes empresas.

Com isso, demonstra e tenta fortalecer a indignação, nesse caso contra o machismo, o que nem é feito minimamente pelo “grupo da Carta”. Este além de enaltecer diretores e produtores envolvidos nas denúncias, contribui para o questionamento e o enfraquecimento das denunciantes.

E em nenhum dos casos há um questionamento ou a busca de uma ruptura com a própria estrutura patriarcal capitalista – a mesma que permite milhares de mulheres continuarem sendo estupradas, mortas e exploradas por todo o país e por todo o mundo, vítimas dessa exploração e dessa opressão que as obrigam ainda a se defender na Justiça.

As ativistas do feminismo liberal insistem firmemente em humanizar esse sistema do capital, patriarcal, machista com projetos e ações como estas que não buscam, de fato, resolver o problema cabendo a cada mulher não querer e não aceitar o assédio.

Mulher como vítima e como responsável

Por outro lado, essa importante luta dos movimentos contra as opressões, que está sendo organizada pelo movimento feminista liberal por iniciativa de artistas e atrizes, necessita de fato de um enfrentamento sistemático e cotidiano e que envolva a totalidade das mulheres, especialmente, as mulheres da classe trabalhadora que são maioria na sociedade e a sofrer vítimas desses crimes.

No entanto, já é passado da hora do envolvimento de toda a classe trabalhadora. Os números das várias formas de violência contra a mulher há anos não são favoráveis.

O número de estupros e assassinatos não reduzem consideravelmente de um ano para o outro. Quem são esses estupradores e assassinos? Por que insistem em manter esse nível de violência? Por que o Estado não possibilita políticas públicas em todas as esferas e suficientes para estancar essa crueldade?

Perguntas sem respostas em que as consequências têm recaído sobre a mulher com todo o dever e toda a obrigação de se prevenir, de denunciar em órgãos incompetentes e irresponsáveis, de buscar emergência para saúde, de lutar pela prevenção à gravidez do estupro, de lutar pelo aborto legal, em seguir vivendo.

Os números recentes confirmam que 98% dos homens que cometem o crime do estupro não são presos. Isto indica que a maioria das mulheres arca sozinha com as consequências e os estragos disso em sua vida, com problemas físicos, psicológicos e ainda com a possibilidade, em alguns países, da permissão da paternidade.

Além disso, confirmam também que as mulheres que sofrem com esses crimes são 13 vezes mais propensas a abusar do álcool e 26 vezes mais propensas a abusar das drogas.

Podendo ainda considerar que para a mulher trabalhadora tudo isso ainda está acompanhado dos problemas financeiros, ou seja, uma grande diferença com as mulheres da burguesia, grandes atrizes e artistas famosas.

Portanto, a mulher não pode continuar sendo vítima de crimes tão cruéis e ainda arcando com todas essas consequências enquanto boa parcela dos homens segue o caminho machista, silencia e “limpa a barra” para os amigos criminosos.

O Brasil entre o avanço e o retrocesso

No Brasil, o assédio já é crime sexual e a Lei 10224 deveria proteger o local de trabalho desde 2001. Não se pode constranger, molestar, intimidar, tentar favorecimento sexual pela condição hierárquica, etc. E para as mulheres, a diferença entre assédio e paquera está no respeito ao “não”. No entanto, 15% das mulheres já sofreram assédio no trabalho em pesquisa recente (Pesquisa Datafolha Nov/2017).

Nesse momento, já foi aprovado na Comissão Especial a PEC 181/2015 que proíbe o aborto em qualquer circunstância, mesmo em caso previsto por lei como o estupro, que conta com cerca de 1400 casos por dia, ou seja, 527.000 por ano (IPEA 2015) – retrocedendo muito nessa importante conquista.

No entanto, ao observarmos os dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, divulgados em dez/2017, verificamos que apenas cerca de 17.500 homens estavam presos por estupro em 2016.

Portanto, há de se avançar no cumprimento das leis e também em todos os locais de trabalho. Há de se garantir condições para a denúncia (Delegacias da mulher, agilidade nos serviços e procedimentos necessários de emergência, prisão, casas-abrigo, segurança), segurança pública, Educação sexual, etc.

As lutas das mulheres e a conquista de direitos

As lutas dos movimentos feministas que garantiram à mulher a conquista de importantes direitos foram realizadas das mais diversas formas ao longo da história.

No entanto, não se pode esperar que o movimento feminista liberal se movimente no sentido de romper as correntes do sistema que explora e oprimi, seria contraditório. Essa luta é do movimento feminista revolucionário, da mulher trabalhadora e do homem trabalhador, enquanto classe social, porque requer a luta contra o machismo, o patriarcado, todas as formas de opressão e contra a exploração e o capitalismo. O cinema, a TV, a poesia, a música, e arte de modo geral podem contribuir para fortalecer essa luta.

Fortalecer a luta até chegar o momento em que todas as mulheres oprimidas, assediadas, violentadas e humilhadas se levantem para pôr abaixo essa sociedade do capital, que desumaniza e necessita de todas essas formas de opressão, essa é a nossa tarefa para que tudo isso não seja apenas parte de uma história do Cinema.

Como já dissemos, num momento em que há uma ofensiva contra os direitos da classe trabalhadora e a piora das condições de vida – com o aumento do desemprego, trabalho precarizado, cortes de programas assistenciais, aplicação de reformas e aumento da violência de gênero – é importante contarmos com as Marcha de Mulheres contra governos, Greve de Mulheres contra o Feminicídio, Greve Geral contra alteração na lei do aborto e de ações que incentivem a denúncia e o fim do silêncio contra o assédio sexual e o estupro. Sigamos em luta! Sigamos para a derrubada do patriarcado, do machismo e do capitalista!