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A paciência das massas trabalhadoras (Kronstadt, março de 1921)


13 de dezembro de 2017

Vimos, nos últimos dois números do Jornal Espaço Socialista, como a vitória dos bolcheviques na Guerra Civil que se iniciara em meados de 1918, aliada à aproximação da derrota final da Revolução na Alemanha, que ocorreria em 1922, deu origem a uma situação histórica nunca antes contemplada pela teoria revolucionária: a manutenção de um partido revolucionário no poder em um país atrasado, no qual não era possível a transição ao socialismo.
Vimos que essa situação levou a uma crescente burocratização do partido bolchevique e aumentou as tensões com as massas. Os camponeses estavam insatisfeitos com a política de requisição de sua produção, e os operários e soldados, com seu crescente afastamento do poder de decisão. E a crise econômica não deixava de se intensificar.
Nesse contexto surgiu a Oposição Operária no interior do próprio partido bolchevique e o Congresso do PC(b)R, convocado para março de 1921, decidiria a questão. Em meio aos trabalhos, contudo, eclodiu a Rebelião de Kronstadt a qual teve tal impacto sobre o Congresso que trataremos dela antes do Congresso enquanto tal, que será objeto do artigo do mês que vem.
A insatisfação e o afastamento das massas populares em relação ao partido bolchevique, resultantes tanto da crise quanto das medidas adotadas pelos bolcheviques para organizarem a economia causaram, no final do ano 1920 e começo de 1921, uma onda de revoltas camponesas que obrigaram o governo soviético a suspender a política de requisição dos produtos agrícolas em treze províncias ainda no início de 1921. Esse afastamento dos camponeses do poder soviético criava uma situação de perigosa instabilidade política, constituindo um campo fértil para alastrar uma revolta de grandes proporções contra o governo soviético. Agora não haviam mais exércitos brancos no interior da Rússia para justificar a centralização política-administrativa nem para justificar medidas econômicas que prejudicavam os camponeses, como a proibição do comércio de alimentos e a requisição dos produtos. As revoltas camponesas do inverno de 1920/21 somente não se alastraram por outras províncias e não ganharam maior expressão devido à falta de uma liderança capaz de organizá-las, de dar-lhes uma expressão política definida.
O descontentamento com o poder bolchevique também estava presente nos grandes centros industriais. A fome e o frio trazidos pelo inverno agravaram as condições de vida dos trabalhadores urbanos que, enquanto isso, assistiam a uma discussão no interior do partido dirigente se as medidas de coerção sobre os trabalhadores adotadas a partir de novembro de 1917 deveriam ser intensificadas ou não. O reino de liberdade para os trabalhadores que deveria surgir da revolução de Outubro, como haviam prometido os bolcheviques, estava cada vez mais distante. O domínio crescente da pequena burguesia, e mesmo de setores da burguesia no interior do aparelho de estado, no interior do partido e do Exército Vermelho parecia insuportável às massas. No interior da fábrica, o operário que ainda conseguia emprego se via forçado a acatar uma disciplina de trabalho semelhante à que vigorava durante o czarismo – e a introdução do salário por produção lhe parecia mais uma forma de exploração capitalista que uma medida destinada a facilitar a transição para o socialismo.
Em janeiro/fevereiro de 1921, uma série de greves operárias ocorreram nos diversos centros industriais, principalmente Moscou e Petrogrado. Os grevistas protestavam com frequência contra o poder dos comissários, e contra a falta de canais que viabilizassem a participação operária no poder, embora com maior frequência ainda protestassem contra a falta de alimentos e de combustíveis.
Essa onda de greves ocorreu de maneira espontânea, de forma desorganizada e sem qualquer coordenação. Não conseguiam se expressar numa plataforma política clara que fosse alternativa de poder. Por isso essas greves terminam isoladas pelo poder bolchevique, cuja imprensa e máquina de propaganda estatal os apresentavam como inspiradas pela contrarrevolução. Embora elas não significassem nenhum perigo imediato para o poder bolchevique, eram um sintoma alarmante: elas ocorriam por fora e contra o aparelho partidário e o aparelho sindical. Essa insatisfação poderia gerar uma outra organização das massas que colocasse em xeque o poder dos bolcheviques, como 1917 criou toda uma rede de organizações populares por fora do aparelho estatal existente. Esse era o grande perigo.
Neste contexto, a luta interna do partido continuava, e Lênin publica eu folheto “A Crise no Partido” onde afirma: devemos combater a discrepância ideológica e aos doentios elementos da oposição que chegam até a negar toda “militarização da economia”, e não só o “método das designações”, quer dizer, negam em última instância, o papel dirigente do partido em relação às massas sem partido. Devemos combater os desvios sindicalistas, que matarão o partido. Um pouco antes, nesse mesmo folheto, Lênin escrevera: “Para que ter um partido se quem deverá dirigir a indústria serão designados (…) pelos sindicatos, as 9/10 partes de cujos membros são operários sem partido?”
A primeira vez que essa revolta das massas operárias e camponesas recebeu um tratamento teórico que lembrava uma plataforma política foi com a publicação do texto da Oposição Operária. No entanto, esta possuía uma séria limitação: se propunha a lutar exclusivamente no interior do partido. Mesmo assim, a Oposição Operária foi alvo de uma violenta campanha por parte dos escalões dirigentes do partido e pareceu a eles algo intolerável.
A primeira vez que as massas descontentes possuíam a possibilidade, não só de contar com uma plataforma política, mas também com armas nas mãos ocorreu com a Revolta de Kronstadt. Se a Oposição Operária era intolerável ao poder bolchevique, o que não dizer de uma Revolta armada contra o mesmo, que possuía uma plataforma política definida e métodos de ação que lembravam a Revolução de 1917?

O PROGRAMA DOS REVOLTOSOS DE KRONSTADT

No dia 3 de março de 1921, o primeiro número do jornal dos revoltosos, “Izvestia de Kronstadt”, vem à luz. Nele é publicado o programa de 15 pontos com as principais reivindicações dos kronstatianos. Como esta plataforma é pouco conhecida entre nós, e como muito já se falou e escreveu de que essa revolta não teria passado de uma rebelião chefiada pelos guardas brancos, segue na íntegra o programa, com breves comentários:
“1) Considerando que os sovietes não exprimem mais a vontade dos operários e camponeses, é necessário proceder imediatamente à sua reeleição com escrutínio secreto. Uma livre campanha eleitoral deverá ocorrer antes, para que se possa honestamente informar as massas operárias e camponesas”. O que fica explícito neste ponto é que os revoltosos de Kronstadt não querem nem o fim do regime soviético nem a volta do regime czarista. Eles queriam a reeleição dos sovietes, depois de uma campanha eleitoral “livre” e através do voto secreto.
“2) A liberdade de expressão e de imprensa para os trabalhadores e camponeses, anarquistas e socialistas de esquerda.” Este ponto esclarece o anterior no que diz respeito às eleições livres: liberdade para todos aqueles partidos que houvessem apoiado a insurreição de outubro de 1917; os socialistas de esquerda, os anarquistas e os bolcheviques.
A respeito dos anarquistas russos é necessário dizer algumas palavras. Em primeiro lugar eles não formavam um bloco unitário e homogêneo como nós costumamos pensar. Eles se dividem em várias tendências, desde a direita, cujo líder era o principal e mais conhecido anarquista russo, Kropotkin, que apoiou os cadetes durante a Revolução de 1917, até a sua ala mais radical que negava todo papel de qualquer tipo de organização na luta da classe operária. Entre esses dois extremos existiam várias correntes, algumas das quais tiveram um papel importante na formação dos comitês de fábrica durante 1917, e na luta que estes comitês travaram para não serem engolidos pelo crescente aparelho administrativo e burocrático soviético. Durante a Guerra Civil, os anarquistas se comportaram também de forma diferenciada. Alguns se aliaram ao poder bolchevique, e mesmo em algumas batalhas os anarquistas realizavam avanços considerados impossíveis pelos estrategistas militares que, muitas vezes, aceleravam a vitória do exército vermelho. Outros, depois de terem se aliado aos bolcheviques e derrotado os exércitos brancos, não aceitaram as restrições à sua autonomia que o poder soviético deseja impor e foram derrotados militarmente pelo Exército Vermelho. Outros ainda, apoiavam os bolcheviques, embora criticando as medidas tomadas na reorganização da economia nacional, por julgarem-nas centralizadoras ao extremo e prejudiciais à participação e controle da classe operária sobre o Estado soviético.
Na Revolta de Kronstadt os anarquistas tiveram novamente comportamento diferenciado. Alguns, como Victor Serge, percebendo que o conflito era inevitável e que toda mediação era infrutífera, apoiaram os bolcheviques por entenderem que somente esses tinham condições de manter o poder na Rússia. A derrota dos bolcheviques, para Victor Serge, significava entregar o poder à contrarrevolução. Outros, por fim, apoiaram Kronstadt por entenderem que era uma revolta legítima dos trabalhadores contra a opressão do Estado soviético. Estes desenvolveram a teoria da Terceira Revolução: depois da de fevereiro, que derrubou o czarismo, e da de outubro que derrubou o governo Kerenski, uma terceira revolução se fazia necessária para derrubar o novo Estado construído pelos bolcheviques e instalar um regime igualitário.
Por isso, a exigência de liberdade para os anarquistas feitas pelos kronstatianos não é de estranhar. Em não poucos episódios da vida política russa dos últimos anos, estes estiveram presentes, lado a lado, com o proletariado no combate à contrarrevolução.
A exigência de participação dos socialistas de esquerda é mais fácil de se entender. Estes continuavam com forte influência sobre as massas camponesas, e tal qual esta última, apoiaram de maneira vacilante o Exército Vermelho na guerra civil. Os socialistas de esquerda não eram, aos olhos da massa, contrarrevolucionários e, em muitas das reivindicações que faziam, como o fim da política de requisição dos produtos agrícolas e levantamento da proibição do comércio de grãos, coincidiam com o desejo de amplos setores das massas trabalhadoras que viam nestas medidas causas da crise por que passava o país. Tanto esse sentimento da massa era forte, e correto, que ainda no X Congresso Lênin proporá o fim das requisições e a liberdade de comércio dos grãos como forma de auxiliar a Rússia a sair da crise.
“3) Liberdade de reunião para os sindicatos operários e organizações camponesas”.
“4) Convocação, antes de 10 de março de 1921, de uma Assembleia Geral dos operários, soldados vermelhos, marinheiros de Kronstadt e Petrogrado”. O objetivo dessa reivindicação era de colocar novamente em contato as massas trabalhadoras de Petrogrado com os marinheiros de Kronstadt, contato esse interrompido desde o mês de janeiro, quando estalaram as primeiras greves naquela cidade. Notícias de que o Exército Vermelho havia reprimido severamente algumas fábricas corriam pela região, ao mesmo tempo que as autoridades bolcheviques espalhavam com insistência notícia dando conta de que Kronstadt estaria sendo liderada por generais brancos. O que os kronstatianos queriam era obter e fornecer informações corretas aos operários e soldados de Kronstadt, bem como discutir com eles seus problemas comuns.
“5) Colocar em liberdade todos os socialistas prisioneiros políticos bem como todos os operários e camponeses, soldados vermelhos e marinheiros presos, após os diversos movimentos populares”. Ou seja, liberdade para os que divergiam politicamente dos bolcheviques mas que colocavam no campo da revolução, bem como de toda a liderança das últimas greves e levantes camponeses.
“6) Eleição de uma comissão encarregada de examinar os casos dos prisioneiros e dos internos em campos de concentração”, Desde o 2º semestre de 1919 que a Checa tinha autonomia para prender e executar pessoas sem ter que recorrer aos tribunais criados pela revolução. Esta liberdade concedida à Checa estava fazendo com que ela cometesse diversas arbitrariedades contra operários e camponeses que estavam sendo denunciadas, não só por Kronstadt , mas também por muitos membros do partido. Como resultado dessas reclamações, mais, tarde o CC criará uma Comissão para investigar a Checa. No entanto, o que os kronstatianos exigiam era a eleição de uma comissão pelos trabalhadores, colocando na comissão elementos de confiança dos últimos, e não da confiança dos altos escalões do partido ou do Estado.
“7) Supressão de todos os departamentos políticos (…)”. Isto é, da polícia política e órgãos de investigações, fichamento e julgamento da Checa.
“(…) Além disso, nenhum partido deve ter o privilégio da propaganda ideológica, nem receber por aquela propaganda a menor subvenção governamental. Em seu lugar, nós propomos que sejam eleitas em cada vila comissões de cultura e de Educação financiadas pelo Estado”.
“8) Supressão imediata de todas as barreiras militares”. Criadas durante a Guerra Civil, as barreiras militares permaneceram mesmo depois da guerra para ajudar no controle dos operários que eram convocados para o trabalho obrigatório e se recusavam a aceitar a nova disciplina de trabalho. Logo depois do início das revoltas camponesas e das greves operárias as barreiras foram reforçadas para evitar que estas se alastrassem.
“9) Distribuição de uma igual ração alimentar para todos aqueles que trabalham, salvo aqueles que exerçam empregos particularmente penosos”. Esta reivindicação vai contra os crescentes privilégios dos altos funcionários públicos, do partido e dos oficiais do Exército Vermelho.
“10) Supressão dos destacamentos comunistas de choque em todas as seções militares, o mesmo para a guarda comunista nas usinas e nas minas. Se são necessários destacamentos, que eles sejam designados pelos soldados das seções militares, que sejam nomeados, pelos próprios trabalhadores”. Novamente uma reivindicação concreta contra o não acatamento das regras da democracia proletária pelo poder soviético.
“11) No que concerne aos camponeses, direito absoluto de ação sobre suas próprias terras, direito de criar o gado, na condição de que eles mesmo façam o trabalho, quer dizer, sem recorrer aos trabalhadores assalariados”. Esta reivindicação os bolcheviques trataram como uma contrarrevolução pequeno-burguesa que atestaria a coloração branca na revolta de Kronstadt. Não obstante, alguns dias depois de terminada a revolta, ainda durante o X Congresso, Lênin propõe exatamente o que os revoltosos exigiam: liberdade de produção para os camponeses. A diferença é que enquanto os marinheiros concediam esta liberdade aos camponeses com a condição de que eles não explorassem outro trabalhador, os bolcheviques não só permitirão a exploração do trabalho assalariado no campo, como promulgarão uma lei defendendo os interesses dos camponeses médios contra a reivindicação de divisão igualitária da terra, feita pelos camponeses pobres.
“12) Nós apelamos para todas as seções militares, bem como aos camaradas das escolas de cadetes, que se solidarizem conosco”.
“13) Nós exigimos que essa resolução seja amplamente difundida na imprensa”.
“14) Nós designamos uma comissão itinerante para acompanhar esta divulgação”.
“15) Nós exigimos que seja autorizado o trabalho livre a domicílio para os trabalhadores independentes”. Este foi outro ponto da plataforma de Kronstadt utilizado pelos bolcheviques para provar o parentesco dos revoltosos com os guardas brancos. No entanto, combinado às medidas concedendo maior liberdade para os camponeses, o X Congresso decretou leis que permitiam não só ao trabalhador independente trabalhar a domicílio, como ainda explorar mão-de-obra nessa produção. O objetivo dessas medidas era melhorar as condições de vida das massas desempregadas, e ao mesmo tempo, reavivar o comércio.
O partido bolchevique recebeu a insurreição como uma tentativa contrarrevolucionária, abriu uma violenta campanha de propaganda afirmando que são generais brancos que comandam a revolta, não aceitam a proposta de negociação com os revoltosos feita pelos mesmos antes da abertura das hostilidades pelo Exército Vermelho e impede qualquer contato dos marinheiros com os soldados e operários de Petrogrado. Depois de 17 dias de ataque à fortaleza, a revolta foi derrotada.
A 12 de março, o Isveztia de Kronstadt publica a relação dos “generais brancos” que lideram a revolta. São eles membros do Comitê Revolucionário Provisório de Kronstadt. Na lista de 15 nomes encontramos 9 operários metalúrgicos ou carpinteiros, 2 timoneiros, um escrivão, uma telefonista, uma empregada da 3ª. Escola Técnica, um primeiro ajudante médico. Com certeza uma porcentagem muito maior de operários que em qualquer órgão dirigente do partido bolchevique bem como do Estado soviético naquele período.
Como Lênin reconhece no X Congresso, uma enorme simpatia pela revolta tomou conta dos trabalhadores dos principais centros industriais. A esses operários, o partido explica a violenta repressão exercida sobre a revolta, afirmando — mesmo não conseguindo apresentar nenhuma prova concreta disso – que a insurreição de Kronstadt era a ponta de lança da contrarrevolução. Sem poder obter nenhum contato direto com os marinheiros revoltosos, os operários não tiveram meios de aferir por eles próprios se o que o partido bolchevique afirmava era verdadeiro ou não.
Em suas memórias, Victor Serge, falando desse período (ele estava em Petrogrado), conta como nas ruas desoladas da cidade, no final de um inverno em que o frio e a fome tinham sido os companheiros mais constantes da população, os operários se perguntavam como os marinheiros de Kronstadt, que durante a revolução e a guerra civil não poucas vezes vieram com suas vidas defender os interesses dos trabalhadores, podiam ter passado para a contrarrevolução e estarem aceitando a chefia de um general branco.
A verdadeira razão que levou os bolcheviques a tratarem tão violentamente os revoltosos é que eles constituíram a primeira formalização de uma plataforma política e econômica, elaborada pelos trabalhadores e soldados, a ser apresentada ao governo soviético. E o mais sério ainda era que essa plataforma era apresentada por quem possuía armas nas mãos, numa conjuntura onde o descontentamento das massas trabalhadoras em relação ao governo bolchevique era maior do que jamais fora.
No próximo mês, no Jornal Espaço Socialista, veremos o impacto desses acontecimentos na retomada de trabalho do X Congresso do PC(b)R e, com isso, encerraremos essa séria de matérias sobre a Revolução Russa.
Até lá, viva a Revolução de 17!
Abaixo o stalinismo!