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Jornal 95: A questão da organização revolucionária e o movimento anarquista


6 de novembro de 2016

Sérgio Lessa

As teorias acerca da organização necessária aos revolucionários sofrem sempre um forte impacto dos movimentos de massa, principalmente dos que têm potencial revolucionário, isto é, que ameaçam a propriedade privada ou, ao menos, os fundamentos das sociedades em que ocorrem.4

Lembremos, por exemplo, o impacto das Revoluções de 1848 ou, ainda, ao final do século 19, do movimento operário alemão (com a legalização dos sindicatos e dos partidos de base operária) nas formulações, tanto anarquistas quando de Marx e Engels, sobre as considerações acerca da transição.

Ao entrarmos no século 20, tanto a vitória dos bolcheviques na Rússia, principalmente depois da Guerra Civil de 1918 a 1921, quanto a derrota da revolução na Alemanha, produziram vários e importantes textos sobre a questão da organização revolucionária. Ficaram muito conhecidos e exercem influência até hoje as posições de Makhno, da Rosa Luxemburgo, de Lenin e de Trotsky.

Já a partir da década de 1930, com o fortalecimento das revoluções camponesas na Ásia (a Revolução Chinesa e a Revolução Vietnamita são as mais importantes, mas há movimentos significativos na Índia, no Paquistão, nas Filipinas, etc.) novas questões são trazidas pelas necessidades práticas que surgem para organizar o movimento camponês naquele continente. Nestas mesmas décadas, ainda maior impacto teve o amadurecimento do stalinismo e de sua concepção centralista de partido.

Com a derrocada da União Soviética e a cada vez maior integração da economia chinesa ao mercado mundial, as teses autonomistas, anarquistas e mesmo sociais-democratas voltam a ganhar força e, ao mesmo tempo, várias reavaliações e mesmos novas traduções dos textos de Lenin vêm à tona.

Para tornar as coisas ainda mais complicadas, as próprias correntes teóricas presentes nesse debate se transformaram, por vezes essencialmente, ao longo dos anos. Assim, por exemplo, o significado de ser um “leninista” para um dirigente do PC Chinês hoje é muito diferente do que era para um Lenin ou para um Trotsky dos anos de 1917-20, do que era para um Kropotkin na década de 1920 ou para um Stálin na década de 1940. Falar, assim, de um campo leninista na questão da organização tornou-se algo muito impreciso: de que “leninismo” se trata?

O mesmo ocorre com o anarquismo. Se descontarmos o stalinismo, o anarquismo é a corrente maior e mais importante do movimento operário do século 20. Teve papel importantíssimo na organização da classe operária em quase todo o mundo, dos Estados Unidos ao Brasil, da Bolívia à Europa. A Revolução Espanhola (1936-39), o último grande levante operário no cenário europeu, não pode ser contada sem se levar em conta a decisiva participação dos anarquistas. Não há país e não há luta operária importante, dos EUA à Argentina, da Rússia czarista ao Japão, que não conte com a participação de anarquistas, não raramente com influência notável.

Do mesmo modo, não é possível mencionar a luta contra o stalinismo sem considerar a participação significativa dos anarquistas, não apenas no mundo todo, mas também no interior da própria URSS. Desde o primeiro momento, os anarquistas estiveram entre os críticos frontais da crescente centralização e burocratização presentes no jovem Estado bolchevique – e o continuaram pelas décadas vindouras (voltaremos a isto logo abaixo).

Com o anarquismo temos um fenômeno semelhante ao que ocorre com o leninismo: suas concepções acerca da organização vão se alterando, não apenas com o tempo, não apenas com as experiências de luta, mas também com seus próprios debates internos. Se Kropotkin adere à contrarrevolução no ano de 1917, muitos anarquistas morreram heroicamente defendendo a revolução na Guerra Civil de 1918-21 na Rússia. Bakhunin nunca foi uma unanimidade no campo anarquista e sua importância, grande no século 19, tende a diminuir com o tempo. Quando os anarquistas se transformam em dirigentes de massas operárias importantes, criam formas de organização que incorporam, em medida muito significativa, a centralidade imprescindível a um movimento mais amplo. Hoje, mesmo a avaliação dos anarquistas acerca do seu próprio movimento possui divergências da maior importância.

Todas estas ressalvas são da maior importância porque não há nada mais desencaminhador da discussão política do que uma simplificação de um problema complexo: a relação dos anarquistas com a questão da organização nem é, nele próprio, um tema simples, nem a avaliação que, por exemplo, os “leninistas” fazem da mesma dá conta da seriedade da questão.

Somos, por isto, obrigados a uma forte restrição do tema para que o assunto possa ser tratado no espaço deste artigo. Nem trataremos da evolução dos anarquistas, de suas concepções de organização nem das críticas que receberam ao longo do século 20, a não ser muito pontualmente. Nosso objeto será, prioritariamente, as concepções ditas anarquistas, em geral informais, não sistematizadas, por vezes com simplificações deformadoras e esquemáticas, que tendem a circular entre nós neste momento em que as lutas de classe estão ainda sob controle quase integral da burguesia.

Em momentos em que a luta do proletariado não está em ascensão, as teorias tendem também a não se desenvolverem. É muito do que ocorre em nossos dias. Será a este universo teórico pouco elaborado que tentaremos nos dirigir neste artigo.

O moralismo na questão da organização

Marx, Engels, Rosa Luxemburgo e Trotsky, de um lado, e os anarquistas, de outro, na questão da organização se diferenciaram desde o primeiro momento. Os primeiros tratavam a questão da organização como uma questão prática: qual organização era requerida pelas tarefas políticas à mão. Os segundos, revivendo uma tradição que vinha dos socialistas utópicos, tomavam a organização como a criação, no interior da sociedade burguesa, de uma célula da nova sociedade. Para os primeiros, a organização era uma ferramenta política para destruir a velha sociedade de classes; para os anarquistas, era uma célula da sociedade futura. E, tal como todo embrião é o fundamento do que será o organismo quando maduro, essa célula deveria ser portadora das características essenciais da sociedade liberta da opressão.

Se a organização é um instrumento prático da luta imediata, tanto a evolução da luta deve conduzir às transformações na organização, quanto também a vitória dos revolucionários, ao conduzir ao fim da luta de classes, tornaria desnecessária a própria organização dos revolucionários. O partido “leninista” (entre aspas para lembrar da imprecisão que o termo adquiriu em nossos dias) deveria desaparecer junto com as classes sociais. Seria, portanto, uma forma de organização temporária, passageira, ainda que da maior importância para a transição.

Contudo, se a organização é o germe da futura sociedade liberta, então ela deverá ir se expandindo, suas relações libertas devem gradualmente ir superando e substituindo as relações de opressão. Desse modo, a organização não possui o caráter provisório, passageiro, voltado para o imediato (tal como queriam Lenin e Rosa Luxemburgo, por exemplo), mas é pensada como uma estrutura de longo prazo e portadora das novas e libertas características da sociedade futura.

Enquanto para Marx, Engels, Lenin, Rosa Luxemburgo e Trotsky a forma da organização, a seleção dos militantes, a relação com o movimento de massas etc. tinha por finalidade primeira acumular revolucionariamente forças nas lutas de classe em andamento, para os anarquistas tratava-se de expandir o germe da nova sociedade no interior da sociedade burguesa. Ou seja, para eles, organizar a luta era, imediatamente, também organizar a sociedade livre. A forma de se relacionar com o movimento de massas tinha por critério reproduzir as relações de liberdade entre os homens, a seleção dos membros tinha por critério, além do político, a qualidade pessoal, moral e de caráter, dos indivíduos que seriam chamados para compor a nova sociedade.

De um lado, uma ferramenta política, um instrumento para a luta de classe imediata, de outro lado, o germe prático e teórico, político e moral de uma nova sociedade liberta da opressão. Os pontos de partida não podiam ser mais divergentes e, claro, as diferenças teóricas e práticas se tornaram ainda mais intensas com o avançar dos anos.

Por exemplo: um belo agitador operário, capaz de organizar e mobilizar fábricas inteiras para a luta revolucionária, mas um machista empedernido em casa, deve fazer parte do partido revolucionário, ou não? Aos anarquistas, a clara resposta é negativa; para Marx, Engels, Lenin, Rosa Luxemburgo e Trotsky, a resposta é positiva: um belo agitador que se prova leal à luta, deveria mesmo subir na estrutura partidária até a direção mais geral – apesar de seu machismo empedernido.

Os casos práticos são muitos para serem sequer mencionados. Basta lembrar que Lenin, casado com Krupskaya, era apaixonado profundamente por Inessa Armand; Trotsky não vacilou em deixar suas filhas com sua esposa na Sibéria ao fugir do exílio para a Europa, para militar no movimento revolucionário, etc. Os exemplos de revolucionários importantes para a luta com sérias “deformações morais” (como diriam os anarquistas) é quase infinito. Sem eles, as revoluções não teriam sido as mesmas, foram eles os líderes nos quais as massas trabalhadoras depositaram sua confiança em momentos chaves da história e, contudo, não servem para compor a organização dos revolucionários, segundo os anarquistas, porque “moralmente imprestáveis” para a sociedade que se quer construir.

Pelos critérios ditos anarquistas de nossos dias, um Lenin e um Trotsky – para não mencionar a Marx – jamais deveriam, por uma deficiência moral, pertencer à organização revolucionária. As duas posições acerca da organização não poderiam ser mais opostas.

Política e moral

No fundo da questão acerca da função da organização revolucionária (é um instrumento da luta imediata ou é a célula da sociedade futura) está uma concepção liberal burguesa do que é a política.

Para Lenin, Trotsky e Rosa Luxemburgo, a política é a expressão, no Estado, do poder econômico da propriedade privada. Por isso, a luta contra a propriedade privada, contra a exploração do homem pelo homem, tem que ser a destruição prática desse poder: a destruição do Estado e tudo o que lhe é próprio (a burocracia, o Direito, os instrumentos de violência como a polícia, o exército etc.). E a luta prática contra a política tem que ser, necessariamente, uma luta política, porque a força se combate com força. A política revolucionária, por isso, não é a construção do comunismo, nem presta para isso. A política revolucionária tem apenas um único e exclusivo papel histórico, a destruição da sociedade de classes. Apenas serve para destruir o velho, não serve para construir a nova sociedade.

O mesmo vale para a organização política dos revolucionários: tem serventia para a tomada do poder, instituir a Ditadura do Proletariado e dar início à destruição do Estado e da propriedade privada, mas não serve para se construir a nova sociedade comunista.

Por isso, a luta política nem é conduzida por valores morais nem por valores éticos. Esses podem ter algum papel nas lutas de classe – e, com frequência, o têm – mas a direção da luta política brota exclusivamente das necessidades mais imediatas da luta: o que é necessário para se vencer o embate é o que deve ser feito na esfera da política.

A descoberta de que a política possui critérios próprios, que a política não se baseia na moral nem na ética, não é de Marx ou de Engels, mas de Maquiavel, o pensador do Renascimento Italiano. Marx e Engels (assim como Lenin, Rosa e Trotsky) apenas incorporaram em suas teorias essa essência da política: por brotar da propriedade privada, a política não é conduzida nem por valores morais nem por valores éticos. Em geral, os anarquistas não concordam com esta mera constatação.

Para os anarquistas em geral, a política ou tem um conteúdo moral revolucionário ou é contrarrevolucionária. Eles compartilham, nesse particular, com a concepção burguesa de que a política é a busca do bem comum pela organização da sociedade – e não a força que brota da riqueza da classe dominante e, por isso, a organização política dos revolucionários deveria ser o germe da organização política da sociedade liberta.

O equívoco anarquista está em projetar na política o que a política jamais pode ser – um instrumento para construir a nova sociedade liberta da opressão – e, como consequência, requerem da organização política o que ela jamais poderá ser, o depositário dos valores autenticamente humanos e libertos, formada por indivíduos que encarnam moralmente os valores libertários.

É também por esta razão que muitos dos projetos emancipatórios de base anarquistas propõem comunidades, associações, projetos educacionais etc. em que se pretende construir, no interior da sociedade burguesa, um novo homem e uma nova sociedade em escala meramente local. E é também por isso que algumas variações do anarquismo se aproximaram das teses de Henry David Thoreau, Tolstoy e de Gandhi. Em comum a todos eles, a concepção de que se liberta a humanidade criando entre nós pequenas comunidades em que as novas relações libertas serão construídas sem que, antes, seja preciso destruir o capital.

Teoria revolucionária e anarquismo

Uma das características do movimento anarquista é que sua prática é muito mais significativa para o movimento operário e revolucionário do que sua produção teórica. Se levarmos em consideração os clássicos anarquistas, como Bakunin, Makno, Kropotkin, Malatesta etc., o que primeiro chama a atenção é o ecletismo e a enorme confusão teórica.

Os principais autores anarquistas, em geral se apropriando de alguns pressupostos do senso comum da ideologia burguesa e em algumas descobertas da ciência de seu tempo, com enorme frequência pretendem desenvolver um sistema próprio que seja, ao mesmo tempo, a crítica do mundo burguês e os fundamentos do mundo liberto. As variações são tantas e as inconsistências são tamanhas, que não há espaço aqui sequer para um esboço mais geral do universo teórico dos anarquistas. O idealismo e o positivismo são traços muito frequentes.

O fato é que o movimento anarquista não conseguiu produzir nenhuma análise sistemática e profunda das relações de produção capitalistas e das alienações que delas brotam. Não há contribuição anarquista importante quando se trata da compreensão teórica do mundo em que viemos. Nada semelhante a um texto como Imperialismo, etapa superior do capitalismo de Lenin, ou A reprodução do capital, de Rosa Luxemburgo ou, ainda, de Para além do capital, de I. Mészáros – para não falar de um O Capital, de Marx.

A pobreza teórica anarquista faz com que sua pregação tenha, com enorme frequência, um caráter quase religioso: as verdades são repetidas como se fossem auto evidentes e a condenação da exploração do homem pelo homem, na falta de uma compreensão mais aprofundada do que se está criticando, adquire uma entonação moralista.

Com isto, a concepção de que a organização política revolucionária é a expressão da moral da nova sociedade liberta se encontra com a pobreza teórica: a condenação do presente tem um acento moralista que justifica e complementa a tese de que a organização revolucionária é também o germe moral da sociedade liberta.

Concepção moralista da organização revolucionária, ilusão com a possibilidade de a política servir para construir a sociedade liberta e, por fim, pobreza teórica que substitui a crítica científico-revolucionária, profunda, da sociedade contemporânea, por uma pregação quase moralista e religiosa são traços bastante comuns entre os anarquistas. Mas há que se ter cuidado com tais generalizações, pois o anarquismo abarca uma infinidade de variações, como já mencionamos, e não há um conjunto de sólidos fundamentos que possa ser tomado como típico.

A crítica anarquista ao stalinismo

Os anarquistas que ficaram ao lado da Revolução Russa (lembremos que Kropotkin foge da Rússia, apoiando Kerensky, ainda em 1917) possuem o enorme mérito de estarem entre os primeiros e mais contundentes críticos do que, alguns anos depois, viria a se consolidar como stalinismo.

Como vimos no Jornal Espaço Socialista do mês passado (nº 94), já a partir de novembro de 1917 várias medidas vão sendo tomadas pelos bolcheviques em relação ao controle operário dos meios de produção e em relação à organização geral da produção que, sob a pressão da Guerra Civil e, depois, da destruição econômica dela resultante, terminaram se convertendo na base a partir da qual se desenvolveria o stalinismo.

Longe de ser um processo linear, como vimos no número do Jornal acima mencionado, medidas emergenciais de curto prazo terminaram assumindo um caráter estratégico na medida em que a revolução ficava isolada na Rússia e, também, na medida em que a miséria e a extrema carência daqueles anos não permitiam a transição ao socialismo.

Nessa situação, não poucos teóricos marxistas terminaram no brutal equívoco teórico de converter necessidade em virtude. Preobrashensky, por exemplo, desenvolveu a teoria da acumulação primitiva socialista. A carência e a miséria russas seriam uma etapa de acumulação imprescindível para a transição ao socialismo. Portanto, as medidas tomadas pelo Estado para acumular nele o trabalho excedente eram apresentadas como preparatórias do socialismo e, não, como um recuo ante ao capital. A crise que era tão aguda que fez o dinheiro desaparecer em várias regiões da Rússia. As trocas, então, retornaram ao seu patamar mais primitivo, o das trocas naturais (isto é, produto troca-se por produto, sem a mediação do dinheiro). Alguns viram, nesse fato, uma prova de que o mercado estava sendo superado porque o dinheiro estava desaparecendo. Outros, como Bukharin, frente ao atraso tecnológico da Rússia, passaram a pregar que o desenvolvimento técnico era a chave para passagem ao socialismo, fazendo da técnica o motor da história.

Enfim, não foram poucos os que procuravam enxergar na miséria e na carência, na centralização ao redor do partido e do Estado, na repressão e na política secreta, etc. etapas necessárias para a construção do socialismo. A história provou o enorme equívoco de tais teorias e demonstrou, sem lugar a dúvidas que, independente da vontade de seus autores, tais teorias apenas justificaram e, desse modo, legitimaram, os recuos ante o capital. E, acima de tudo, que eram teorias que estavam anos-luz de distância da realidade.

Os anarquistas que ficaram ao lado da revolução jamais compartilharam dessas ilusões, nem iludiram os trabalhadores russos acerca do caráter repressor dessas e outras medidas. O que muitos descobririam apenas décadas depois – alguns não descobriram até hoje – de que do processo soviético não viria o socialismo nem o comunismo, os anarquistas já afirmavam em 1918 e 1919. Não há como não se reconhecer o enorme mérito, coragem e destemor com que enfrentaram a ditadura que, então, se estruturava no solo da revolução. Nem há como não se admirar da clareza e da visão teórica de longo prazo necessárias para se perceber que, naquelas circunstâncias, não se avançava rumo ao socialismo.

Méritos reconhecidos, há também que se reconhecer os seus limites. A alternativa proposta pelos anarquistas era polarizada por duas opções. A primeira, mais ingênua e primitiva, propunha que os trabalhadores ficassem proprietários das fábricas e dos seus locais de trabalho e estabelecem um sistema de trocas naturais (lembrem: sem o dinheiro) entre as unidades produtivas, de tal modo a produzir o necessário a todos. Seria como que uma economia em que as unidades produtivas seriam propriedades privadas dos que nelas trabalhassem, uma sociedade de infinitas pequenas “sociedades anônimas”. A inviabilidade desse sistema está em que substitui a concorrência entre indivíduos pela concorrência entre unidades produtivas e, desse modo, mantém-se o mercado e, portanto, o capital.

A segunda opção, com base em um conhecimento da economia mais avançado e profundo, se baseava na tradição anarquista do federalismo: cada localidade, com as unidades produtivas nela instaladas, constituiria uma comunidade e uma federação de comunidades cumpriria a função de organizar e coordenar as atividades econômicas. Novamente, a concorrência se instala entre as comunidades e, por essa via, o mercado e o capital são mantidos.

Nas duas opções, a pedra de toque era a autogestão: os trabalhadores se encarregariam de organizar e operar o processo produtivo e, portanto, o produto final seria propriedade da coletividade que o produziu. Se essa coletividade seria a unidade produtiva (na primeira opção) ou a federação de comunidades locais (na segunda opção), era algo sobre o qual não havia concordância entre eles.

A debilidade principal dessa concepção de autogestão é que deixa de lado um aspecto essencial da transição ao socialismo: sem a superação do trabalho proletário (o trabalho abstrato) pelo trabalho associado não há socialismo possível, e esse último apenas pode existir no reino da abundância (sobre isso, confira o Jornal Espaço Socialista nº 79 e 87). E essa transição apenas é possível se a totalidade do produzido pela totalidade da humanidade for propriedade da totalidade da humanidade: nem o federalismo, nem a propriedade pelos trabalhadores dos locais de trabalho, propostas pelos anarquistas, dão conta desse fato essencial.

Considerado no seu todo – e deixando de lado importantes exceções – os anarquistas possuem uma contribuição maior ao movimento revolucionário nas críticas à sociedade burguesa e nas críticas ao processo soviético do que no esclarecimento tanto da essência da sociedade burguesa quanto da transição ao socialismo. Seu conceito de sociedade liberta é muito confuso e com muitas variações, a autogestão é mais uma afirmação de um desejo do que uma proposta solidamente articulada de uma nova economia.

No que diz respeito às propostas de organização para a luta revolucionária, os anarquistas pecam, essencialmente, por conceber o partido revolucionário como o germe da sociedade liberta. Ao invés de um instrumento prático para a luta imediata, o partido deveria ser também o depositário moral das virtudes da nova humanidade que viria com a revolução. As organizações anarquistas, não raramente, se convertem com isso em pequenos grupos com rígidas regras morais que se sobrepõem aos critérios político-práticos. E a condução da luta política recebe acentos moralistas que são, sem exceção, desastres práticos, e, no plano dos valores, terminam considerando a política como instrumento moral para a construção da sociedade liberta. O que não passa de um grande equívoco teórico com sérias repercussões práticas, pois ilude os trabalhadores de que a política seria algo mais do que a força econômica da propriedade privada que se expressa no Estado e, ainda, ilude os trabalhadores de que o partido seria instrumento para a construção da sociedade livre.

Como assinalamos no início, uma avaliação do conjunto do anarquismo é muito difícil, pela extensão no tempo e no espaço do movimento e, também, pelas diferenças no seu interior. Contudo, esses são os aspectos da ideologia que, nos parece, têm de maior influência nas lutas ideológicas dos nossos dias.

Leituras recomendadas

Os clássicos anarquistas mais significativos são: de Bakunin, Estatismo e Anarquia; de Kropotkin, O princípio anarquista; de Malatesta, Escritos Revolucionários. Sobre a questão da organização, um texto imprescindível é o de Nestor Makhno, Nossa organização, criticado por Malatesta em Um projeto de organização anarquista.