Jornal 80: Maioridade para quem?
18 de julho de 2015
Contexto
Desde março desse ano a questão da redução da maioridade penal, de 18 para 16 anos, se tornou central. Foi nesse mês que a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados desengavetou a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 171/1993 sobre o assunto.
Ao discutir-se o tema é necessário observar a atual composição do Congresso Nacional, considerado o mais conservador desde a redemocratização. A frente dessa proposta estão parlamentares evangélicos e ruralistas, chamados de “Bancada da Bala, Boi e Bíblia”, que não tiveram dificuldades para conseguir o apoio de vários partidos.
Soma-se a esse setor a influência midiática que, comandada direta ou indiretamente por parlamentares, expressa em programas de TV e rádio o posicionamento favorável à redução da maioridade, facilmente identificado em seus discursos de ódio, criminalização da pobreza, julgamentos antecipados, incitação à violência e ênfase a uma suposta “periculosidade juvenil”. Além disso, há a clara influência religiosa, pois o texto da Proposta de Emenda Constitucional possui passagens bíblicas com sustentação no Velho Testamento, no qual o profeta Ezequiel dá a perfeita dimensão do que seja a responsabilidade pessoal e não cogita nem sequer a idade: “A lei surge a implicação; pode também receber a admoestação proporcional ao delito – o castigo”.
Para esse setor a prisão é a coação para uma Educação total, com o objetivo de aplicar uma disciplina que transforme o indivíduo “pervertido” através de suas técnicas de poder, como o “isolamento” e o “trabalho forçado”. Assim, os castigos não objetivam suprimir as infrações, mas são uma tática para sujeitar o indivíduo, visando a dominação. Para Foucault, o maior objetivo da prisão foi ter fabricado a delinquência, consequentemente, criando seres “coléricos”.
Desse modo, pretendemos aprofundar a discussão acerca da maioridade penal e problematizar as consequências que a PEC 171/1993 exercerá na sociedade brasileira, caso aprovada.
História da Maioridade
Ao longo da História brasileira o tema já provocou inúmeros debates e alterações textuais na Constituição. Aqui, traça-se um breve histórico acerca da maioridade penal. Na República Velha, a imputabilidade penal era de 9 anos, sendo que, dos 9 aos 14, se condicionava à presença de discernimento, caso o apresentasse, recolhimento a um estabelecimento disciplinar industrial; dos 14 aos 17 anos, havia o abrandamento da pena e entre os 17 e 21 eram julgados, mas com reduções penais.
A Lei nº 4.242, de 1921, traz um novo tratamento na questão na punição, eleva a idade de mínima para 14 anos e elimina o critério de discernimento. Em 1927, os jovens entre 14 e 18 anos recebem tratamento específico com a promulgação do Código de Menores, “encerrando” a confusão no julgamento entre jovens e adultos. Posteriormente, promulga-se o Código Penal de 1940, que define o limite etário nos 18 anos.
Em 1979, durante o período ditatorial, ocorre a aplicação de uma “doutrina da situação irregular”, sujeitando a juventude as mais variadas formas de abuso e opressão, pois qualquer infrator ficava sujeito à disposição legislativa podendo sofrer punição, além de caracterizá-los como abandonados e/ou delinquentes.
Apenas na redemocratização que se materializaram os dispositivos de proteção à infância e juventude na Constituição e na criação do Estatuto do Jovem e Adolescente (ECA), em 1990. Ambos responsáveis pela concepção de uma “doutrina da proteção integral”, tratando a criança e o adolescente como sujeitos, garantindo seus direitos fundamentais e uma responsabilidade diferenciada. Deste modo, a Constituição prevê a responsabilidade penal aos 18 anos e aos jovens abaixo dessa idade submetem-se ao ECA, sendo até 12 anos incompletos reputado como criança e, na prática de ato infracional sujeita-se a medidas de proteção.
A PEC 171/1993 e o ECA
A atual legislação recebe diversas críticas dos favoráveis a redução da maioridade penal justificada na ausência de punição criminal e consequentemente na “proteção” recebida por tais adolescentes. Porém, apesar de não estarem sujeitos às punições previstas pelo Código Penal recebem sanções previstas pelo ECA, como: advertência, obrigação de reparar o dano causado, prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida, semiliberdade e internação (até três anos). As medidas socioeducativas são aplicadas de acordo com a gravidade da infração praticada e a idade do jovem e, além da punição, o infrator deve receber apoio psicológico e reinserção social.
No alvo destas justificativas, a PEC 171/1993 prevê a redução da maioridade de 18 para 16 anos para os casos de crime hediondo, lesão corporal grave e roubo qualificado (sequestro ou participação de dois ou mais envolvidos), retirando do Ministério Público a possibilidade de avaliar caso a caso e impedindo o jovem de se pautar no ECA. Simultaneamente verificam-se diversos projetos de lei que se atrelam a PEC 171/1993, por exemplo, Projeto de Lei 5454/2013, que prevê alteração no ECA aumentado a pena de reclusão de 3 para 8 anos no caso de crime hediondo (aguarda abertura de análise da proposta); Projeto de Lei do Senado 219/2013, aumenta em três vezes as penas para adultos que usem menores em crimes (parado na CCJ, aguardando um relator) e Projeto de Lei do Senado 333/2015, aumenta o tempo de internação de jovens de 3 para 10 anos (aguardando avaliação).
Por que não reduzir?
Com a redução da maioridade penal, os adolescentes de 16 e 17 anos não estarão mais resguardados pelo ECA. Desse modo, não serão mais crimes produzir, publicar ou vender pornografia (artigos 240 a 241-E do ECA), sujeitar à prostituição (artigos 218-B do Código Penal e 244-A do ECA), vender bebida alcoólica ou cigarro (artigo 243) aos jovens. Além do impedimento da punição a quem submeter adolescentes a vexame ou constrangimento (artigo 232), promover seu envio ao exterior para obter lucro (artigo 239), fornecer-lhe armas ou fogos de artifício (artigos 242 e 244) ou hospedar em motel (artigo 250).
Com as mudanças na lei, os adolescentes com mais de 16 anos receberão tratamento jurídico criminal de adultos.
Os jovens serão aprisionados juntamente com os demais detentos que vivenciam as diversas deficiências estruturais no cárcere, além do baixo nível de recuperação (índice de reincidência é de 70%).
Em relação às deficiências estruturais, observa-se o “inchaço” nas cadeias brasileiras (3ª maior população carcerária do mundo) e o não cumprimento da função social de reinserção e reeducação, mas como “escola do crime”.
Observa-se ainda que ao invés de proteger as crianças e adolescentes do crime, serão expostos a mecanismos e a comportamentos reprodutores da violência e iniciação precoce na criminalidade, pois não há relação direta na adoção de soluções punitivas em oposição à diminuição dos índices de violência.
Os atos infracionais cometidos por adolescentes que vivenciam a privação da liberdade não envolvem crimes com alto grau de violência, o índice é menor que 10% do total de delitos cometidos em todo o país. A partir da pesquisa do Conselho Nacional de Justiça, em 2012, delitos cometidos por adolescentes são predominantemente de violação do patrimônio público (quase 80%), roubo, furto, tráfico (neste caso, a Lei sobre Drogas de 2006, não delimita a quantidade que diferencia o uso do tráfico e abre precedentes para uma atuação discriminatória e racista dos agentes da lei).
Os adolescentes são as maiores vítimas de violência, no último estudo de Homicídios na Adolescência (IHA), realizado em 2012, estimou-se que mais de 42 mil adolescentes poderão ser vítimas de homicídios até 2019, sendo os adolescentes negros ou pardos com probabilidade três vezes maior de serem assassinados do que adolescentes brancos. Vale ressaltar que a vitimização dos jovens negros aumentou de 71,7%, em 2002, para 154%, em 2010.
A tentativa de implementar mudanças legislativas chegam ao absurdo de se fundamentar na exceção: até julho de 2011, cerca de 30 mil adolescentes cometeram atos infracionais e cumpriram medidas socioeducativas, o que corresponde a 0,5% da população jovem do Brasil (21 milhões de meninos e meninas entre 12 e 18 anos).
A lei desconsidera, como causa da violência, a desigualdade social, priorizando a ampliação da culpabilização e punição da sociedade, ao invés de implementar ações na Educação.
Reduzir a maioridade é transferir o problema, pois, na Constituição brasileira, os artigos 5º e 6º asseguram os direitos fundamentais como Educação, saúde, moradia etc. Com esses direitos negados, a probabilidade do envolvimento com o crime aumenta. Desse modo, a marginalidade é uma prática condicionada pelo contexto social e histórico em que se vivencia. Para o Estado é mais fácil prender do que educar, adquirindo um aspecto de Estado Penal que administra a “panela de pressão” de uma sociedade tão desigual.