Jornal 75 – LIBERDADE DE EXPRESSÃO PARA QUEM, CARA PÁLIDA?
12 de fevereiro de 2015
Este texto é uma contribuição individual e como tal não expressa necessariamente a posição do conjunto da organização, por isso se encontra assinado por seu autor.
Daniel M. Delfino
A LUTA DE CLASSES NA EUROPA E O RELANÇAMENTO DA “GUERRA AO TERROR”
Os atentados contra a revista Charlie Hebdo, no dia 7 de janeiro em Paris deram a oportunidade para que o conjunto das potências imperialistas relançassem a campanha da “guerra ao terror”. No caso da Europa, a “guerra ao terror” tem a particularidade de que os tradicionais “suspeitos” de terrorismo habitam o próprio coração do continente. Milhões de imigrantes africanos, asiáticos, latino americanos e do Oriente Médio e seus descendentes habitam praticamente todos os países europeus. Cerca de 1 milhão de novos imigrantes chegam todos os anos, pois são necessários para repor a população economicamente ativa decrescente devido à baixa taxa de natalidade dos europeus. Esses imigrantes ficam com os piores empregos, recebem os piores salários, moram nos piores bairros, sujeitos à precariedade dos serviços públicos e à violência do crime, e são os primeiros a serem demitidos nas crises.
Como se não bastasse essa situação, toda vez que sobrevém uma crise os trabalhadores imigrantes e seus descendentes são taxados como culpados por “roubar os empregos” dos nativos pelas forças da direita, e fisicamente atacados pela ultradireita fascista e neonazista. A xenofobia, a islamofobia e o racismo envenenam ideologicamente os trabalhadores europeus e os impedem de construir a necessária unidade contra os ataques da burguesia. A divisão da classe trabalhadora entre nativos e imigrantes é fundamental para que os capitalistas consigam desmontar o que resta do estado de bem estar social europeu.
A Europa nunca se recuperou plenamente da crise de 2008 e até hoje os patrões tentam retomar seus lucros com a ajuda dos governos, impondo as chamadas medidas de “austeridade”: demissões, corte de salários e direitos, sucateamento dos serviços públicos, aumento da idade de aposentadoria, aumento de impostos, etc. Os trabalhadores têm lutado contra essas medidas por meio de greves e manifestações, mas padecem da ausência de organização e programa consequentes, já que as burocracias sindicais estão completamente incorporadas à gestão do capitalismo e aliadas aos partidos governantes. E nem é preciso dizer, as burocracias sindicais e alguns partidos ditos “de esquerda” ou “trabalhistas” são completamente omissas em relação à disputa ideológica contra a direita, e em particular no que se refere à árdua tarefa da construção da unidade entre nacionais e estrangeiros.
A FARSA DA “MARCHA REPUBLICANA”
É nesse contexto que aconteceram os atentados em Paris e que os governantes do continente lançam a sua “guerra ao terror”, como pretexto para colocar imensos contingentes policiais e militares nas ruas. Se essas tropas vão ser úteis para caçar terroristas é algo duvidoso, mas com certeza vão servir para impedir as lutas dos trabalhadores. O lançamento dessa campanha de militarização e repressão se deu na “marcha republicana” que aconteceu em Paris, no dia 11 de janeiro, em repúdio aos atentados, liderada pelo presidente François Hollande e composta por chefes de estado e autoridades de dezenas de países. O aspecto mais marcante dessa marcha foi o extremo cinismo dos seus componentes, já que foi convocada em defesa da “liberdade de expressão”, mas tinha entre seus participantes alguns dos governantes mais autoritários e corruptos do mundo. Citemos alguns:
– Petro Poroshenko, presidente da Ucrânia, eleito ilegalmente após um golpe de Estado fascista e que está atualmente massacrando a população da região leste do país, a qual não aceita o golpe e nem a política que o acompanha, as medidas neoliberais de austeridade da União Europeia;
– Recep Tayyip Ergogan, primeiro ministro da Turquia, país que há décadas reprime a minoria curda, e que reprimiu os manifestantes que se levantaram em defesa da praça Taksim em Istambul em 2013 e contra a corrupção do governo em 2014;
– Benjamin Netanyahu, primeiro ministro de Israel, que em 2014 ordenou mais uma rodada do genocídio palestino com os bombardeios sobre Gaza, alvejando inclusive escolas e hospitais, matando milhares de pessoas, inclusive mulheres e crianças;
– O secretário de Estado John Kerry, que veio em lugar do presidente Obama. Os Estados Unidos financiaram o Talibã, a Al Qaeda e o Estado Islâmico, e agora querem novamente enviar tropas para o Oriente Médio sob o pretexto de combatê-los. Ao mesmo tempo, os Estados Unidos empreendem uma caçada mundial contra Julian Assange, criador do site Wikileaks, que publicou documentos da rede de embaixadas estadunidenses, expondo a brutal arrogância imperial com a qual tratam o restante do mundo; e contra Eduard Snowden, que revelou documentos secretos da CIA expondo a espionagem estadunidense.
Além desses facínoras compareceram à marcha outros menos cotados, como ditadores africanos ou monarcas do Oriente Médio, acostumados a afogar a oposição em sangue. Os maiores mentirosos do mundo, figuras que escondem informações, financiam o terrorismo, espionam outros países, empreendem massacres, reprimem a oposição, saqueiam as riquezas dos povos, etc. São esses os defensores da “liberdade de expressão”!
ENQUANTO HOUVER CAPITALISMO, NÃO HAVERÁ LIBERDADE DE EXPRESSÃO
Os exemplos dos atentados em Paris e da “marcha republicana” mostram que nenhuma palavra de ordem tem valor em si, mas dependem do contexto político e dos autores que as emitem. Os maiores exploradores e opressores falam em liberdade, democracia, justiça, etc. quando lhes convém, mas sua prática contradiz diariamente o discurso. Os aliados de François Hollande não têm compromisso algum com a liberdade de expressão, mas são oportunistas o suficiente para usar essa palavra de ordem quando a opinião pública se mostrou sensibilizada com a morte dos cartunistas de Charlie Hebdo.
Juntamente com essa categoria de oportunistas, surgiram outros tantos, não menos cínicos, que desfraldaram a bandeira da “liberdade de expressão” para defender o direito de difundir o racismo, o machismo, a LGBTfobia, disfarçados de humor. Assim como o medíocre Charlie Hebdo na França, temos também no Brasil, nos “stand ups” e “talk shows”, uma série de “artistas” e “humoristas” que não fazem mais do que reproduzir o preconceito contra as camadas mais oprimidas da população. Agora, respaldados pelo repúdio ao terrorismo, querem o álibi para continuar fazendo piadas com negros, mulheres, LGBTs, em nome da “liberdade de expressão”. Essas piadas aparentemente inocentes servem como legitimação para agressões físicas e psicológicas que as mulheres, negros e LGBTs sofrem cotidianamente.
Esse repertório de ideias racistas, machistas e LGBTfóbicas, juntamente com a defesa da pena de morte, da redução da maioridade penal, da volta da ditadura militar, contra os direitos humanos, etc., fazem parte do arsenal da classe dominante para momentos de crise. Tais ideias são úteis para manter a classe trabalhadora dividida pelo ódio e pelo preconceito entre seus diversos segmentos, para evitar que entrem em luta de forma unificada contra as misérias do capitalismo.
Essas ideias sempre terão liberdade, dentro do capitalismo. Aliás, sob o capitalismo, somente podem se expressar livremente as ideias compatíveis com os interesses da classe dominante. Os grandes veículos de comunicação, televisões, rádios, jornais, revistas, sites de internet somente publicam aquilo que é do interesse dos seus proprietários, aquilo que lhe traz lucro pela audiência, ou pela defesa dos interesses dos seus patrocinadores.
As únicas ideias verdadeiramente livres dos interesses do capital são aquelas que defendem a abolição do capital. E essas ideias são hoje praticamente clandestinas, banidas, censuradas. Precisamos de liberdade de expressão sim, mas para as ideias emancipatórias, que defendem a libertação da humanidade da escravidão ao capital, da exploração, da opressão e de todas as suas mentiras. Somente numa sociedade socialista teremos liberdade de expressão real para a manifestação de todas as formas de pensamento e de sensibilidade. E somente numa sociedade livre da exploração e da opressão não se farão mais piadas com o sofrimento e a humilhação dos explorados e oprimidos.