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Jornal 70: Dos aos dourados à humilhação histórica: breve consideração sobre nosso esporte mais popular


22 de julho de 2014

Ronaldo Gaspar

 

Embora o futebol não tenha sido, em suas origens, um esporte popular, tornou-se, em várias partes do mundo, o esporte das massas, não apenas pela paixão que desperta, mas, também, pelas inúmeras histórias de ascensão social que caracteriza a maioria dos craques da bola. No Brasil, de Leônidas – o altivo Diamante Negro – a Neymar, passando por Zizinho, Didi, Garrincha, Pelé e tantos outros, o futebol redimiu indivíduos/famílias de origem popular e, coletivamente, após a Copa de 58, simbolizou, a partir dos feitos deles, uma espécie de força redentora da nação – historicamente, pária do capitalismo e do mundo ocidental.

Durante algumas décadas, caracterizadas pelo amadorismo e, depois, pela transição à profissionalização, nossos jogadores e técnicos dotaram a ginga e a malandragem de capacidade competitiva e, com isso, o futebol brasileiro protagonizou os mais belos feitos dos gramados mundo afora. Nessas condições e com tais características, seu último grande fruto foi a geração de Zico, Sócrates e Cia., que, tragicamente, sucumbiu no Estádio Sarriá na Copa de 1982 – para alguns, um dos acontecimentos mais decisivos nos campos para o fortalecimento das tendências técnicas, táticas e corporais iniciadas pelo carrossel holandês em 74. No mundo, sua última expressão foi, provavelmente, a vitória da Argentina sob a regência do genial Maradona na Copa de 1986.

 

Futebol e capitalismo: sobre a técnica

De lá para cá, mudanças no capitalismo global tornaram o futebol um grande negócio – times tornaram-se empresas e, jogadores, milionários. O violento crescimento da mais-valia relativa incorporou os esportes em geral e, em particular, o futebol à maquinaria da reprodução do capital. Com isso, a ginga, a malandragem e o improviso deram lugar, cada vez mais, à força física e a organizações táticas que a fizessem prevalecer. Em termos táticos, a audácia da busca pelo gol foi substituída pela precaução em não tomá-lo: a defesa substituiu o ataque como coração dos times de futebol – no meio campo, isso significa, por exemplo, que Zico e Sócrates deram lugar a Zinho e Mauro Silva ou, na Copa atual, a Oscar e Paulinho –, os pulmões e os músculos tomaram o lugar da criatividade cerebral. Na lateral do campo, os Muricis, Tites e Scolaris substituíram Feola e Telê Santana. Não que os craques tenham desaparecido. Nada disso. Eles continuaram e continuam em alguns gramados – poucos, é verdade, mas continuam –, basta nos lembrarmos dos dribles, gols ou passes de Romário, Zidane, Ronaldo, Ronaldinho, Xavi, Iniesta, Messi e Neymar. No entanto, em times/seleções que não efetuaram as mudanças táticas/técnicas adequadas aos novos tempos, eles não conseguem grandes feitos, não conseguem brilhar – vejam, por exemplo, a diferença entre o Messi do Barcelona – que, durante vários anos, atuou, com regularidade, em alto nível – e o da seleção argentina, que vive de lampejos. Decerto que, por enquanto, as mudanças administrativas e mercadológicas não tornaram o capital capaz de produzir craques – por isso, importa-os das mais diversas partes do mundo –, mas, nas escolinhas dos times-empresas espalhados pela Europa, já produz equipes bastante competitivas.

Um fato, porém, é que, nos últimos anos, em consonância com grandes mudanças na administração do futebol profissional, houve um avanço significativo na organização tática e na preparação dos jogadores formados/incorporados pelos times-empresas da Europa e suas ligas profissionais. Isto é bastante visível no futebol espanhol, alemão, holandês e, apesar do fracasso em Copas, inglês. Em muito menor escala, isso também tem ocorrido em países que, sem grande tradição nesse esporte – e, portanto, cujo futebol começa a se desenvolver agora –, não têm poderosos interesses cristalizados em ricas federações e sua cartolagem com ramificações no aparato estatal e, também, nem uma “escola” ou “tradição futebolística” a defender. Nesse caso, em razão das possibilidades do desenvolvimento desigual e combinado, acabam colhendo os “benefícios” do atraso, pois, neles, sem grande resistência, a importação e/ou nacionalização de jogadores e técnicos e a incorporação de modernas organizações táticas têm permitido considerável avanço na competitividade de seus clubes/seleções, mesmo sem a capacidade de manter grandes jogadores – que, quando surgem, vão atuar nas principais ligar europeias ou, então, em algumas secundárias – ou seja, em ligas mais consolidadas do que as de seus países de origem. Nesta Copa, temos os exemplos da disciplina tática das seleções de Costa Rica e Argélia.

Superexploração do trabalho e pensamento mágico: as agruras do atraso

Em países como Brasil, no entanto, o futebol não é algo relativamente recente e de pouca tradição. Ao contrário. A seleção brasileira é a maior ganhadora de títulos mundiais e, o país, o maior exportador de “pé-de-obra” do mundo. Por aqui, muitos se locupletam com dinheiro e status oriundos da exploração de meninos e jovens que surgem com aptidão para o esporte. Assim, em todas as instâncias, poderosos interesses foram consolidados ao longo de muitas décadas de bola rolando. São cartolas, empresários e políticos que, incrustrados em clubes, federações, empresas de marketing, publicidade e artigos esportivos, bem como no aparato estatal, fazem, direta ou indiretamente, do futebol seu “meio de vida” – ou melhor, de exploração ou aproveitamento de vidas alheias. Por conseguinte, ao longo de quase um século, todas as misérias sociais e políticas do país se infiltraram e se reproduziram no esporte – nas instituições e mentalidades de dirigentes, técnicos e jogadores. De acordo com dados da CBF, “dos 30.784 jogadores registrados no país, atualmente, 82% recebem até dois salários mínimos — no grupo, estão inclusos os atletas que jogam até de graça. Na outra ponta, um número bastante modesto de ‘sortudos’ (2%) embolsa acima de R$ 12,4 mil, 20 salários mínimos. Neymar, por exemplo, ganha 241 vezes esse valor” (Extra, 23/09/12). Em outras palavras, nossas imensas desigualdades apresentam-se, nesse esporte, como desigualdade entre clubes, jogadores, regiões etc. E, além delas, a corrupção e a autocracia no trato dos negócios futebolísticos invadem o campo e, na atual quadra histórica, em razão de sua capitalização tortuosa (há times profissionais em que os jogadores recebem menos do que um salário mínimo) e subalterna (exportação de jovens talentos para os países centrais), afetam o rendimento dos jogadores e seus times – por conseguinte, também o rendimento da seleção brasileira.

Não bastasse isso, em meio a tantos problemas seculares que grassam pelo país, os quais se tornaram ainda mais explícitos com a preparação para a Copa do Mundo, as expectativas redentoras depositadas por muitos e muitos nas costas de um grupo de jovens jogadores pesou imensamente sobre seu desempenho (exemplar, nesse sentido, foi o choro de David Luiz que, ao seu modo simples, disse estar triste por não poder dar um pouco de alegria ao seu povo sofrido). Para os imediatistas e superficiais – de modo geral, mas não só, representantes ideológicos dos (ou os próprios) frequentadores de “arenas” da Copa – que alimentaram essa pressão, os “heróis da nação” se tornaram, de repente, objetos de escárnio e repúdio públicos. A “família Scolari” se esfumou e, com ela, os moralistas de plantão se deram conta de que, ao invés do amor idílico, o vigor para o trabalho e o planejamento em longo prazo, seus esteios eram o narcisismo dos novos-ricos, a corrupção institucional e a indisciplina.

 

Política e futebol: mediações necessárias

Essas considerações não implicam em qualquer responsabilização direta e imediata das condições socioeconômicas – e, é claro, nem do governo atual (embora, é claro, ele também tenha inequívocas e muitas responsabilidades em relação às nossas misérias sociais) – pela derrota de um time num jogo de futebol. Tratam-se apenas de observações sobre problemas seculares e estruturais da sociedade brasileira e seu esporte mais popular, que, neste momento, explodiram num confronto esportivo numa trágica tarde de terça-feira. No entanto, importa-nos assinalar que, com todas as mediações que devem ser feitas, a humilhação que os alemães impuseram aos brasileiros em campo foi uma expressão da superioridade de sua modernização capitalista do futebol, que, ao seu modo, exprime a própria superioridade de seu desenvolvimento socioeconômico e político – e, por extensão, da Europa sobre a América latina (aos poucos, de 1974 para cá, as seleções europeias têm predominado na conquista de títulos. Lembremos aqui que, por sua organização tática, a seleção brasileira de 1994 foi europeia, enquanto a de 2002 contava com uma inusitada constelação de craques: Rivaldo, Ronaldo, Ronaldinho). Por conseguinte, como a técnica e a organização tática não pairam no ar, mas são produtos de condições histórico-sociais específicas, não é casual que o maior vexame da história da seleção brasileira tenha ocorrido num contexto em que, para o bem ou para o mal, em razão de sua capitalização e pragmatismo, o futebol já não pode mais ser jogado e nem administrado de modo tradicional – por meio de malandragens e composições de interesses alheios ao aprimoramento técnico e tático. Isso porque, em tempos de times-empresas e seleções de craques globalizados, aquelas equipes cujas comissões técnicas se sustentam mais em amuletos, superstições, livretos de auto-ajuda e fé do que em conhecimentos técnico-científicos abrangentes (desde os fundamentos – chute, passe, drible – à organização em campo) terão seus lugares cativos, no máximo, nas notas de rodapé da história do esporte. Nesse sentido, sem temer pecar pelo exagero, a morte de trabalhadores na construção de estádios e o desmoronamento de viadutos estão, por invisíveis e complexos laços, vinculados à ruína em campo da seleção brasileira.

Por fim, somente o tempo dirá se o futebol brasileiro será definitivamente rebaixado à segunda divisão do futebol mundial ou, então, será capaz de se adequar às novas condições – que, como tem sido usual entre nós, pode implicar em mudanças que, sem alterações profundas, darão sobrevida à competitividade de nosso esporte mais popular. Embora, a bem da verdade, uma resolução efetiva para os problemas que assolam o futebol brasileiro (e, de certo modo, a maioria dos esportes) demanda profundas transformações anticapitalistas na sociedade como um todo; transformações que, de fato, o tornem, não apenas pela origem de seus jogadores, mas por sua difusão, acesso e controle, um esporte verdadeiramente popular – de todos, para todos e por todos.