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Pânico nas catedrais do consumo: rolezinhos, racismo e perspectivas da juventude


24 de janeiro de 2014

f_227097Este texto é uma contribuição individual, não necessariamente expressa a opinião da organização e por este motivo se apresenta assinado por seu autor.

Daniel Delfino

Desde fins de 2013, um fantasma assombra os shopping centers, o fantasma dos rolezinhos. Além de mais um episódio de

discriminação contra os negros e pobres, esse fenômeno expõe várias nuances da estrutura ideológica da sociedade brasileira.

Negros e pobres “fora do seu lugar”

A cada fim de semana, em várias cidades do país (depois da onda inicial em São Paulo), milhares de jovens moradores da periferia, na maioria negros, a partir de convocações publicadas em redes sociais da internet, se reúnem em grande número para “zoar”, ou seja, brincar, correr, gritar, namorar, dançar e ouvir funk de ostentação. O público frequentador “normal” dos shopping centers protesta indignado contra a “invasão” dos visitantes  indesejados” e exige providências. A mídia chama os rolezinhos de “arrastões”, reproduzindo automaticamente o estereótipo de que todo jovem pobre e negro é criminoso. O debate se espalha pelas redes sociais entre defensores e detratores dos rolezinhos.

A resposta inicial dos shoppings foi a repressão, ou seja, chamar a polícia para disparar balas de borracha, bombas de gás, bater e prender os “rolezeiros” pelo crime de… Qual crime mesmo? Pelo crime de estarem lá, no “lugar errado”, onde não deveriam estar. Outros shoppings tentaram adotar o método de triagem do público na entrada, exigindo documentos. Ou, para evitar confusão, simplesmente fecham as portas, como o Shopping Rio Design, no bairro do Leblon, reduto da alta classe média carioca, que não abriu no domingo 19/01. Ou ainda, conseguem liminares na justiça proibindo a realização dos rolezinhos.

Essa primeira onda de rolezinhos e a resposta dos centros comerciais, das autoridades e da mídia a seu serviço serviu para expor de maneira escancarada a estrutura segregacionista da sociedade brasileira. Os jovens negros e pobres foram perseguidos pelo simples “crime” de estarem “fora do seu lugar”, ou seja, fora da favela, fora da sua condição de pobres, excluídos e conformados. Como se atrevem a querer desfrutar do que os “ricos” desfrutam e se expressar na sua própria linguagem? O shopping não é o lugar deles, é dos brancos e da classe média (que não precisam apresentar documentos nem passar  por triagem para entrar). Os jovens brancos podem marcar encontros dentro e fora dos shoppings, como “raves” e “flash mobs”, mas quando os jovens negros e pobres o fazem, são criminosos. Isso confirma mais uma vez o quanto a classe média, a polícia e a mídia sao racistas e preconceituosos contra os pobres. O fenômeno expõe o quanto essa democracia é uma farsa, que não permite que se ultrapasse até fisicamente o limite que separa exploradores e explorados. Querer impedir pela força os jovens negros e pobres de fazer seus rolezinhos é uma violência inaceitável, esse é o primeiro ponto a ser estabelecido.

A promessa de felicidade pelo consumo.

Houve muitas vozes a defender o direito dos shoppings de barrar a entrada dos rolezeiros, já que os estabelecimentos comerciais são propriedades privadas. A coisa se complica na hora de estabelecer os critérios para definir quem vai ser barrado, já que os shoppings teriam que assumir o racismo contra os negros e o preconceito contra os pobres. A complicação é tamanha que o assunto dos rolezinhos foi parar na pauta da presidente Dilma. O governo do PT, escaldado pelas manifestações de junho de 2013, quer evitar que uma nova explosão social exponha a insatisfação com seu governo, em ano de Copa do Mundo e eleições gerais.

Existe um setor particularmente insatisfeito com o fenômeno, a assim chamada “nova classe média” produzida nos mais de 10 anos de governo do PT, que não aceita os rolezinhos. Não é apenas a alta burguesia do bairro de Higienópolis (que não queria uma estação de metrô na região porque ela traria “gente diferenciada”, ou seja, pobre, para a vizinhança) que repudia os rolezinhos, é a própria classe trabalhadora que obteve acesso ao consumo via crédito fácil e se imagina socialmente superior, que não quer os pobres no “seu” shopping center.

Essa classe trabalhadora constitui a chamada “nova classe média” e não tolera os rolezinhos porque eles desmentem a ilusão da prosperidade a que ela própria imaginava ter chegado. Essa “nova classe média” embalada pela ideologia meritocrática e pela teologia da prosperidade das igrejas neopentecostais acredita que chegou ao “sucesso” pelos seus próprios esforços, por isso somente ela tem o “direito legítimo” de desfrutar dos shopping centers. Por isso, ela não pode aceitar que os “vagabundos” que não se esforçaram nem trabalharam duro “estraguem” os seus shoppings.

O mais grave é que tanto essa classe trabalhadora quanto os jovens rolezeiros que estão socialmente abaixo dela na hierarquia capitalista tenham como ideal de vida e de realização a ida aos shoppings e o consumo de mercadorias. O culto da mercadoria funciona como sublimação da pulsão sexual, fornecendo o eixo organizador da vida, mesmo que só pela via da

contemplação dos objetos, sem o ato efetivo da compra. Trabalhadores pobres e jovens ainda mais pobres disputam acirradamente pelo miserável prazer de contemplar as mercadorias nas catedrais do consumo do “próspero” país de Lula e Dilma.

O medo de uma nova onda de manifestações

 Nesse sentido, os rolezinhos não são um movimento de contestação da ordem capitalista, mas trazem no fundo da sua ideologia de culto do consumo uma reafirmação dessa mesma sociedade. É por isso que ideólogos mais refinados da burguesia, como a revista Veja, na sua edição de 2357, de 22/01 trataram de retificar a abordagem inicial dos rolezinhos. Veja adotou

como prioridade negar que os rolezinhos sejam um movimento político, tratando-os como uma simples expressão do desejo dos jovens da periferia de participar da festa do consumo. Afinal, o que mais alguém pode querer? Existe outro objetivo possível na vida além de consumir? Quanto mais consumistas e alienados os jovens da periferia, melhor para a Veja e a burguesia. Trata-se de uma abordagem preventiva para evitar que os movimentos sociais se associem aos jovens da periferia e transformem os rolezinhos numa nova onda de manifestações.

De certa forma, a revista tem razão, pois como dissemos, os jovens rolezeiros de fato querem apenas participar da festa do consumo. Não encaram o seu “movimento” como um gesto político, nem como continuação das jornadas de junho.

Definitivamente, os rolezeiros não estavam nas manifestações. Mas, ao mesmo tempo, a Veja não tem razão. Pois se não fossem as jornadas de junho de 2013, não teríamos rolezinhos na virada do ano. Os jovens da periferia foram sim influenciados pelos jovens trabalhadores e de classe média que foram para as ruas protestar a partir de junho de 2013. As jornadas de junho foram protagonizadas por jovens que já trabalham e estudam, uma faixa etária e uma condição social ligeiramente diferentes dos rolezeiros, ainda que uma boa parte more nos mesmos bairros. Mas os rolezeiros são os “irmãos mais novos” dos manifestantes e aprenderam com os exemplos dos mais velhos. Querem desafiar e desobedecer as proibições.

Ainda que não tenham consciência disso e que sua intenção explícita seja festejar o consumo de mercadorias, os rolezeiros estão sintonizados com os manifestantes, no sentido de que ambos protestam pelo direito de participar. Numa sociedade profundamente autoritária e antidemocrática, o direito de zoar no shopping center se transforma num gesto contestatório. Os rolezeiros querem consumir, mas a porta do consumo está fechada para eles. As promessas do capitalismo brasileiro sob gestão petista não poderão ser cumpridas. Não haverá lugar para todos na “festa do consumo”. Cedo ou tarde, esses jovens se darão conta de que, assim como para seus irmãos mais velhos, tudo o que essa sociedade tem a oferecer são subempregos, precarizados, mal pagos, faculdades privadas sem qualidade, endividamento, serviços públicos que não funcionam, etc.

A crise de alternativa socialista e as perspectivas para os jovens

O conteúdo dos rolezinhos (culto das mercadorias) é reacionário, mas a sua forma (movimento de massa autoorganizado) é libertária. Está em aberto a luta para determinar o que prevalece, o conteúdo ou a forma. Veja e outros veículos da imprensa burguesa já jogaram as suas cartas, procurando amenizar o tom, assimilar os rolezinhos, torná-los aceitáveis, fazer de conta que não houve uma repressão brutal de caráter racista e preconceituoso, tudo isso para isolar os movimentos sociais organizados e evitar que estes também abracem os rolezinhos. A esquerda organizada, por sua vez, foi surpreendida e ultrapassada pelas jornadas de junho de 2013, e está até hoje tentando entender e acompanhar a nova disposição de luta da juventude trabalhadora. Em relação à juventude do rolezinhos, o abismo que separa os movimentos sociais é ainda maior. Como as organizações de esquerda nunca tiveram e ainda não têm nada a dizer a esses jovens, eles ouvem o que a burguesia tem a dizer: ser rico é bom, e querem realizar isso. Querem ser ricos ou no mínimo, parecer ricos.

Os ídolos dos rolezeiros não são os militantes de esquerda, são os MCs do funk. A nova onda desse gênero de música é o chamado “funk de ostentação”, em que as letras celebram a posse de objetos de luxo, como carros esportivos, roupas de marca e mulheres (sim, as mulheres são aqui reduzidas a objetos sexuais). O sexo explícito e a apologia do crime característicos do estilo funk “proibidão” ficam em segundo plano, mas ainda estão lá. O funk de ostentação não está em contradição com o proibidão, já que para ostentar os objetos de luxo, o crime também é uma das vias possíveis. O estilo ostentação é mais uma espécie de continuação do proibidão, que já foi celebrado como”funk do bem”, por ser menos explícito na apologia do crime. A sua estética é copiada do gangsta rap estadunidense, gênero que explodiu comercialmente na década de 1990 e sucedeu o hip hop combativo e politizado da década de 1980. O funk de ostentação brasileiro é uma espécie de “gangsta pop”.

O tratamento das mulheres como objetos nas letras do funk não é uma questão secundária. O machismo e o sexismo das letras e das danças expressam a barbárie social que grassa nas periferias. Esse estilo musical surge nos mesmos bairros em que imperam a violência física e psicológica contra a mulher, os estupros, os abortos clandestinos com mortes e graves sequelas, a gravidez das adolescentes, a sexualização precoce das crianças, etc. Além do culto do consumo, a ideologia do funk ostentação celebra também a redução da mulher a objeto de consumo, razão pela qual é preciso ser muito crítico em relação a esse fenômeno.

Mas a crítica não pode ser a mesma dos centros comerciais, da polícia, judiciário, setores da mídia e da opinião da própria classe média, que querem negar aos rolezeiros o direito elementar de ir e vir, em flagrante contradição com as leis da democracia burguesa. A crítica deve entender e apontar uma alternativa para o fenômeno contextualizando-o na totalidade em que está inserido. Não cabe à esquerda censurar os jovens rolezeiros por terem criminosos e funkeiros como referência, já que ela própria não soube se apresentar como referência. Uma juventude que não teve apoio nenhum do Estado, não recebeu educação de qualidade, nem cultura nem lazer, só poderia ter como referência o funk.

É a hora de mostrar a esses jovens que existe outra via de realização, a via da luta. É a hora de construir um amplo movimento de apoio ao direito democrático de ir e vir e de se manifestar dos jovens. Esse movimento deve ter como ponto de partida denunciar o racismo da repressão e da mídia, o caráter farsesco da democracia burguesa que não é capaz de conceder o direito de ir e vir, as ilusões da prosperidade brasileira e porque a festa não será para todos. A partir desse caminho, é possível para abrir um canal de diálogo com essa juventude, para tentar recuperar algum terreno numa batalha ideológica que a burguesia está vencendo por larga margem. Seria utópico hoje dizer aos rolezeiros que o shopping não tem graça, o legal mesmo é fazer um rolezinho nas livrarias, nos museus, nos teatros.

Mas é justamente isso que se diz hoje do socialismo, que é “utópico”. Quando a juventude perceber que o prazer intelectual é muito superior ao prazer superficial da contemplação das mercadorias, a burguesia estará em apuros e o capitalismo estará com os dias contados.