Resoluções sobre situação política internacional – 2011
22 de outubro de 2012
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“O DÓLAR ESTÁ NU”
1) Preâmbulo – O debate teórico e político sobre a crise
1.1) A crise e a ideologia burguesa
O debate sobre a crise econômica é uma das mais importantes questões teóricas e políticas a opor os representantes ideológicos da burguesia aos dos trabalhadores e também as diversas correntes políticas no interior do movimento operário.
Os ideólogos da burguesia, naturalmente, tendem a subestimar ou mesmo negar a ocorrência da crise econômica, e até a sua própria possibilidade, justamente porque que precisam evitar que a classe trabalhadora se defenda contra ela. Entrou para o folclore da história do pensamento econômico a teoria da chamada “nova economia” da década de 1990 nos Estados Unidos, quando a especulação com ações de empresas de internet (empresas “ponto.com”), que nem sequer geravam lucro, mas eram artificialmente cotadas em valores estratosféricos que inflavam os índices das bolsas, alimentou a propaganda de uma suposta “nova fase do capitalismo”. Na “nova economia” dos ideólogos burgueses, “não haveria mais crises” e o crescimento seria permanente. A “nova economia” desmoronou em 2000 com a quebra da bolsa virtual Nasdaq, quando se revelou que se tratava de nada mais do que mais uma face da boa e velha especulação capitalista.
De qualquer forma, é parte do trabalho político permanente da burguesia para gerir o capitalismo e se equilibrar entre as suas contradições o esforço ideológico de negar a existência das crises, ou negar a sua gravidade, ou diminuir a sua importância, ou ainda, dizer que “foram superadas” antes que de fato tenham sido. Esse esforço é fundamental para impedir que se levantem questionamentos à continuidade do capitalismo e se postulem alternativas.
Nos momentos de crise aberta, por outro lado, os ideólogos burgueses tratam de mistificá-la como uma espécie de “fenômeno da natureza”, imprevisível e incontrolável, que afeta a todos indistintamente e que exige a “colaboração de todos” para que possa ser superada. Esse apelo hipócrita à solidariedade coletiva, que jamais é invocado quando se trata de dividir os ganhos da fase de crescimento, na verdade expressa a necessidade da burguesia de impor sobre os trabalhadores as conseqüências da crise e evitar que se revoltem.
Ou seja, depois de negar enquanto pode a ocorrência, gravidade ou a persistência das crises, a burguesia precisa, quando a crise é evidente, criar pânico e confusão para forçar os trabalhadores a aceitar as medidas que permitirão a ela, como classe dominante, sair da crise, jogando o prejuízo sobre os trabalhadores. A ideologia burguesa circula assim de uma teoria a outra alternadamente, negando-se reiteradamente a si mesma, por conta de sua impossibilidade de admitir as contradições do capitalismo.
1.2) A teoria marxista da crise
No interior do movimento operário, por sua vez, as crises econômicas são acompanhadas com especial atenção, pois a teoria da transição ao socialismo pressupõe a crise como um dos passos necessários de tal transição. Desde o estabelecimento de uma economia política dos trabalhadores por Marx e Engels no século XIX, o estudo científico das contradições do modo de produção capitalista aponta para a ocorrência das crises como uma decorrência lógica do agravamento de tais contradições. As crises não são um evento extraordinário e anormal do modo de produção capitalista, mas a própria expressão da sua disfuncionalidade constitutiva. Marx distingue duas dimensões da crise do capital, a estrutural e a cíclica. A crise estrutural do capital, correspondente ao seu esgotamento histórico como modo de produção, tem como fundamento a lei tendencial da queda da taxa de lucro.
A lei mais importante da economia política, segundo Marx, é a da queda tendencial da taxa de lucro. A taxa média de lucro tende historicamente a cair na medida em que aumenta a participação do capital constante (máquinas e meios de produção) em relação ao capital variável (força de trabalho humano assalariada, fonte de mais-valia) na composição do valor de cada produto. Esse aumento da proporção do capital constante em relação ao variável acontece inevitavelmente na medida em que cada capitalista individualmente, forçado pela concorrência, investe em mais tecnologia (meios de produção) para produzir mais mercadorias com o emprego de menos força de trabalho humano, de modo que possa vender essas mercadorias abaixo do preço médio do mercado e realizar um lucro maior do que os seus concorrentes. A difusão gradual das novas tecnologias e técnicas produtivas num determinado ramo de atividade e posteriormente no conjunto da economia, por força da concorrência, e o conseqüente aumento gradual da capacidade produtiva social geral, fazem com que eventualmente aumente a massa de lucro, mas diminua a taxa de lucro no conjunto da economia capitalista, já que, gradualmente, o emprego da força de trabalho humana diminui proporcionalmente em relação ao emprego de tecnologia.
A taxa de lucro, no limite, tende a cair a zero, situação em que o capital teria negado a si mesmo, o que historicamente será levado a fazer, por força de suas próprias determinações. A concorrência entre os diversos capitalistas individuais por fatias maiores de lucro individual reduz a taxa geral de lucro, trabalhando contra o capital tomado como um conjunto. Essa lei tendencial da queda da taxa de lucro opera historicamente mediada por uma série de contra-tendências, tais como: o aumento da exploração do trabalho, a diminuição dos salários abaixo do seu valor (custo de subsistência do trabalhador), o barateamento dos componentes do capital constante, a superpopulação relativa (incorporação de novas fontes de força de trabalho humano à economia capitalista) e a expansão do comércio mundial, fatores estes já descritos por Marx, e que se complexificaram nos séculos XX e XXI.
As crises periódicas correspondem aos momentos em que os capitais menos produtivos, que não conseguem realizar a mais-valia dentro da taxa média de lucro, estando portando batidos na concorrência, precisam ser destruídos enquanto capital. Por destruição de capital entende-se a sua desativação e desvalorização, a desintegração de massas de valor adicionadas a mercadorias tornadas invendáveis, condenadas a permanecer paralisadas nos estoques, bem como o fechamento de fábricas, instalações, etc. Dentro da lógica do capital, essas forças produtivas só podem ser postas em movimento enquanto capital, ou seja, enquanto valor que se auto-valoriza, que se auto-adiciona um mais-valor no processo de realização e acumulação. Caso contrário, caso não se realizem enquanto capital e produzam lucro, devem ser destruídas.
As empresas capitalistas, frações individuais do capital total, só podem continuar existindo nessa lógica se puderem realizar com lucro o investimento nelas contido, caso contrário devem falir, fechar, sendo compradas por empresas maiores, de modo que fatias do capital que as compunha devem tornar-se inativas, sendo descartadas, entregues à decomposição física. Fábricas, instalações, matérias-primas, estoques de mercadoria, devem ficar paralisados, deixados à corrosão, ferrugem, putrefação, a despeito das necessidades humanas que poderiam ser atendidas pelo seu emprego. Tal é a lei férrea e irracional da propriedade privada capitalista dos meios de produção. Em casos extremos, a destruição de capital também pode tomar a forma de destruição física, como acontece nas guerras mundiais, que “limpam” o caminho para uma retomada da acumulação capitalista. Realizada a destruição, o capital pode retomar o processo de acumulação devidamente “saneado”, mantendo apenas as frações do capital capazes de operar nas novas condições.
Para que se tenha uma idéia do que significam essas novas condições de competição, a taxa de lucro das 500 maiores corporações do mundo listadas pela revista Fortune caiu de 7,15% entre 1960 e 1969 para 5,3% entre 1980 e 1990, para 2,29% entre 1990 e 1999 e para apenas 1,32% entre 2000 e 2002, na penúltima crise periódica. Essa queda da taxa de lucro poupa apenas as maiores empresas, que têm condições de investir devido ao volume do capital que controlam. Com isso aumenta a concentração de capital, com a formação de grandes conglomerados, grandes monopólios, com poderes e interesses globais. Essas mega-empresas, cada vez menores em número e maiores em poder, exercem um controle cada vez maior sobre os Estados nacionais, precipitando as guerras imperialistas como veículo para destruir concorrentes, ocupar territórios periféricos e manter sua expansão. Tal é a lógica do capitalismo em sua época imperialista.
A mundialização do capital adicionou ainda mais complexidade a esse cenário, pois a interligação dos interesses capitalistas ao mesmo tempo exige e impede a solução das suas rivalidades por meio da guerra aberta entre as potências, que hoje estão armadas de arsenais nucleares, com capacidade de destruição mútua assegurada. Não se trata de que a guerra entre grandes Estados e potências imperialistas esteja totalmente descartada, mas a sua possibilidade se torna mais remota. Em lugar disso, tornam-se mais freqüentes as guerras imperialistas contra países dominados e periféricos, guerras civis, etc. A “solução” mais comum aplicada pela burguesia tem sido a guerra de classes, a guerra contra a classe trabalhadora, disfarçada de guerras contra o “eixo do mal”, “guerra ao terror”, “guerra às drogas”, intervenções “humanitárias”, missões “de paz”, golpes de Estado, bem como, no interior de cada país, rico ou pobre, a xenofobia e perseguição aos imigrantes, o racismo, o anti-islamismo, a criminalização da pobreza, a criminalização dos movimentos sociais, o recrudescimento da repressão, o neofascismo, etc.
1.3) Crises periódicas e crise estrutural do capital
Na superfície dos fenômenos, as crises periódicas aparecem para os capitalistas como um excesso de mercadorias que não encontram comprador. Surge por parte dos ideólogos burgueses e do senso comum a suposição de que a crise teria solução por meio de incentivos ao consumo, como o crédito, o consumo de Estado (desde os gastos sociais, obras de infra-estrutura, até gastos improdutivos, como armamento, guerras, etc.) ou mesmo o aumento de salários. Sobre essa ilusão se edificou toda uma escola de teoria econômica vulgar, que vai desde Sismondi no início do XIX até Keynes no século XX (e seus epígonos no XXI), apregoando a possibilidade da regulação da economia capitalista como panacéia capaz de deter as crises (até mesmo alguns “marxistas” adotaram essa teoria). As tentativas de administração das crises periódicas por meio da regulação estatal não fazem mais do que retardar o seu impacto, cuja manifestação aberta seria a destruição pura e simples de capital, a qual, em determinadas circunstâncias históricas e políticas, pode mostrar-se impraticável.
A sucessão das crises periódicas e de suas tentativas de regulação/administração não se opõe ao processo histórico de aprofundamento da crise estrutural do capital. São antes a sua configuração e manifestação concreta. A queda da taxa de lucro, como determinação abstrata geral da lógica inerentemente defeituosa do modo de produção capitalista e de sua crise estrutural, se materializa concretamente sob a forma de crises periódicas cada vez mais agudas. Em outras palavras, cada crise periódica revela de forma mais nítida a manifestação da crise estrutural.
A crise estrutural como determinação geral de uma dada situação histórica se concretiza no fato de que as contra-tendências capazes de impedir a queda da taxa de lucro deixam de funcionar adequadamente, de modo que o capital passa a requerer suportes cada vez mais artificiais e precários para sustentar o processo de acumulação. Essa mudança de qualidade se localiza em um momento histórico preciso, o início da década de 1970, quando uma série de eventos assinalaram a passagem para um novo padrão de acumulação capitalista, mais instável e conflitivo do que o das três décadas precedentes, as últimas em que o capitalismo pôde apresentar um crescimento significativo da economia mundial como um todo.
Entre os eventos que assinalaram a passagem para o período histórico de crise estrutural do capital e determinaram as feições do novo padrão de acumulação estão a quebra do padrão ouro, a crise do petróleo, a revolução tecnológica, o desemprego estrutural, a degradação ambiental, a desregulamentação financeira, a explosão da especulação e do endividamento em níveis sem precedentes, a desagregação da ordem geopolítica dos pós-guerra, a queda dos Estados burocráticos (URSS e leste europeu), a mundialização do capital, a instabilidade política e a guerra, o neoliberalismo e a ofensiva política e ideológica contra as conquistas dos trabalhadores e a alternativa socialista. A cada crise periódica desde o início dos anos 1970 (crise do petróleo e da “estagflação” de 1973 a 1975, alta dos juros e crise da dívida em 1980-82, quebra da bolsa de NY em 1987, crise imobiliária no Japão em 1990 e das poupanças nos Estados Unidos em 1991, crise asiática de 1997-98, quebra da Nasdaq e atentados de 11/09/01), todos esses fenômenos se tornam mais transparentes e mais incontroláveis.
1.4) As controvérsias no movimento operário
A interpretação do significado da crise estrutural e de suas manifestações periódicas, como dissemos, é objeto de um debate também no interior do movimento operário. Uma das interpretações equivocadas, que na verdade é a mais comum, marcada pelo objetivismo, raciocina como se a simples explosão da crise fosse por si só suficiente para colocar a classe trabalhadora no limiar da derrubada revolucionária do capitalismo. Essa interpretação ignora grosseiramente a ausência e a debilidade do fator subjetivo, ou seja, de uma intenção consciente e organizada de derrubar o capitalismo por parte dos trabalhadores, previamente à crise, que pudesse se materializar sob a forma de uma ofensiva pela tomada do poder no momento da crise.
Na ausência desse sujeito coletivo revolucionário, que só pode ser a classe trabalhadora organizada, muitas organizações que reproduzem tal interpretação objetivista antepõem o seu próprio discurso “revolucionário” como substituto fictício da força social inexistente, imaginando que esse discurso lançado ao vento será por si só capaz de fazer despertar no interior da classe, da noite para o dia, a consciência da situação objetiva de crise e da necessidade e possibilidade de derrubar o capitalismo. Substitui-se o trabalho de base, de organização e de preparação para a disputa do poder e para a construção de uma alternativa socialista por uma retórica “revolucionária” completamente descolada da experiência real da classe. Mascara-se ainda a própria impotência em realizar esse trabalho preparatório com acusações de “centrismo” e “capitulação” às outras correntes.
Outra interpretação consiste em negar a própria realidade da crise, afirmando que, com crise ou sem crise o capitalismo sempre se reconstitui e reconfigura sua dominação. A expectativa da crise por parte de setores do movimento revolucionário não passaria de “milenarismo” ou “messianismo”, ocultando a incapacidade dos “arautos do apocalipse” de lançar um chamado à revolução com a esperança de que a revolução “caia do céu” na forma de uma crise. As afirmações de que “há uma grave crise econômica em andamento”, de que a crise é estrutural e de que “ a burguesia não pode resolver a crise, apenas jogá-la para frente”, são tomadas como simples misticismo, como “desculpa esfarrapada” para a incapacidade de dizer concretamente quando a crise se tornará insuportavelmente destrutiva e colocará na ordem do dia a derrubada do sistema. Assim, o movimento revolucionário não deveria se preocupar com as crises, ou nem sequer falar nelas ou se dar ao trabalho de estudá-las, pois bastaria chamar o trabalhadores para tomar o poder, em qualquer momento.
Ambas as interpretações são evidentemente unilaterais. A recorrência das crises não oferece por si só a garantia de que o capitalismo vai ser derrubado. A burguesia sempre pode encontrar formas de administrar a crise, mesmo que isso signifique aprofundar características destrutivas do sistema, como as guerras, a degradação ambiental, o desemprego, a miséria, a violência, o fascismo, etc. A rigor, não há um limite além do qual “a crise se tornará insuportavelmente destrutiva”, pois a burguesia pode sempre bancar a imposição de uma barbárie cada vez mais violenta sobre os trabalhadores, e o fará, desde que não seja desafiada por um projeto social alternativo, a ser construído pela ação organizada e consciente da classe trabalhadora.
Aos marxistas revolucionários, por outro lado, empenhados em construir esse projeto junto à classe, cabe a tarefa de entender cientificamente os processos de crise, as idas e vindas dos ciclos periódicos, o momento específico da crise estrutural em que nos encontramos, os recursos políticos de que a burguesia se utiliza para administrar a crise em cada momento, e as correspondentes respostas políticas que a classe precisa desenvolver para enfrentar a ofensiva do capital. Faz muita diferença portanto identificar se estamos na fase de crise aguda, ou de ataques aos trabalhadores para iniciar a recuperação, ou de crescimento da economia rumo ao auge de um novo ciclo, pois disso depende o tipo de política que se deve levar ao movimento.
1.5) Sobre crise estrutural e crise cíclica
Um último aspecto que é importante ressaltar é a diferença entre crise estrutural e crise final do capitalismo. A crise estrutural, na definição de Mészarós, corresponde a todo um período histórico, dentro do qual se sucedem oscilações de crescimento e queda, mas no qual prevalece a tendência geral de queda. A importância do conceito está em sinalizar a mudança de qualidade que ocorre nesse período histórico, quando o capitalismo precisa recorrer a mecanismos cada vez mais artificiais para superar suas crises cíclicas, tais como a financeirização e o endividamento. Além disso, no período histórico de crise estrutural, as crises cíclicas são cada vez mais violentas, mais profundas e mais globais, e a recuperação é cada vez mais lenta e de menor alcance.
A vigência da crise estrutural não elimina portanto a periodicidade das crises, mas apenas as situa num contexto em que a tendência geral de queda prevalece sobre a tendência de crescimento. Dentro dessa tendência geral de queda, continuam acontecendo momentos de crescimento limitados no tempo e no espaço, ou seja, por períodos curtos e circunscritos a alguns países, que destoam significativamente da média mundial. Além disso, os mecanismos aos quais se recorre para disparar num novo momento de crescimento são cada vez mais artificiais (como os já citados da financeirização e o endividamento) e precários (como a guerra), e provocam efeitos cumulativos que serão as causas das crises futuras.
A crise estrutural, portanto, não anula a vigência dos ciclos periódicos, mas assinala a tendência geral dentro da qual os ciclos se localizam. Também é um processo que não se confunde com a crise final do capitalismo, pois se trata de um fenômeno de longo alcance, que se estende por todo um longo período histórico, que pode até ser atravessado por convulsões muito violentas, mas que se caracteriza por uma lenta marcha em direção ao declínio. Quanto mais se acentua esse declínio, maior é o acirramento da luta de classes, com a burguesia lançando mão de métodos cada vez mais agressivos para administrar o sistema, o que por sua vez força a classe trabalhadora a se colocar em luta. Essa luta terá que ser cada vez mais radical, ou seja, apontar para uma alternativa social global, pois do contrário, a burguesia seguirá afundando o mundo em direção à barbárie.
2) Conseqüências da crise de 2008
2.1) A amplitude da crise societal
A crise na esfera da economia detonada a partir de 2008 foi uma das mais violentas já experimentadas pelo capitalismo, pelo seu caráter mais plenamente mundializado, pelo tamanho do seu impacto, pelas dificuldades em administrá-la e pela forma como a sua explosão demonstrou o grau de artificialidade e fraudulência embutido nos procedimentos especulativos que vinham sendo o motor do crescimento capitalista das últimas décadas. E essa crise na esfera da economia foi também uma espécie de epicentro para uma série de outros fenômenos cuja convergência assinalou a vigência de uma verdadeira crise societal.
Essa crise econômica expôs a falência de um sistema que acabava de demonstrar a sua inviabilidade numa série de outras esferas. Um painel da ONU reconheceu a relação entre a ação destrutiva das atuais formas de produção e a degradação das condições ambientais do planeta; os preços do petróleo atingiram picos históricos, anunciando a aproximação dos limites temporais da matriz energética baseada em combustíveis fósseis; os preços dos alimentos subiram a ponto de provocar uma “epidemia” de fome nos países mais pobres, num tal grau que explodiram revoltas populares em cerca de 30 países; processos esses que se somaram ao impasse das invasões imperialistas no Oriente Médio, incapazes de impor o projeto de dominação nos moldes do que havia sido originalmente planejado.
A convergência de todos esses fenômenos no intervalo de alguns meses nos autoriza a caracterizar o processo como uma crise societal, com o significado de uma crise que nos obriga a repensar uma alternativa social não apenas no plano da economia, mas que terá de levar em conta a necessidade da reconstituição das condições ambientais, da mudança da matriz energética, da reformulação dos padrões de consumo, além de várias outras questões sociais, ideológicas, humanas. O câncer capitalista em fase de metástase contamina todos os organismos da vida planetária, e requer um tratamento muito mais completo e abrangente para ser extirpado. As alternativas a serem apresentadas precisam conter uma dimensão mais totalizante, que coordene e dê sentido para a reconstrução das relações sociais de alto a baixo.
Enquanto a classe trabalhadora não apresenta sua alternativa, a burguesia segue administrando a crise ao seu modo. Nenhum dos sintomas da crise societal foi resolvido. Nenhuma medida prática com qualquer efeito palpável foi tomada para lidar com a coleção de problemas dos quais a humanidade se tornou mundialmente mais consciente nestes últimos anos. Mesmo porque, nenhum desses problemas pode ser enfrentado sem contestar a lógica do lucro capitalista. E foram justamente a tentativa de recuperar os lucros da burguesia e preservar a sua dominação de classe as únicas medidas de peso adotadas em face da crise.
2.2) O processo de saída das crises
As crises econômicas são uma realidade constante, ou, como disse Marx, “não existe crise permanente, existem crises periódicas em permanência”. Mas isso não significa que todas as crises sejam iguais. Cada crise periódica específica tem como causa precisamente os instrumentos que foram usados pela burguesia para contornar a crise anterior. A administração das crises não é um processo que se desenrola na esfera da economia pura, mesmo porque não existe economia pura e sim economia política, que aliás era o nome dessa disciplina no século XIX, antes que ela deixasse de ser científica e se tornasse puramente apologética como é hoje. Esse processo de administração das crises depende da correlação de forças da luta de classes, ou seja, da capacidade da burguesia de impor sobre os trabalhadores os custos da crise, da destruição de capital, necessária para que se reinicie a acumulação. Toda crise deixa para trás um rastro de desemprego, aumento da exploração, queda dos salários, benefícios e direitos, degradação das condições de vida, aumento da miséria em todas as suas manifestações, convulsões sociais e políticas, guerras, etc.
É sempre preciso esmagar a resistência dos trabalhadores em determinado país ou conjunto de países, por meio de algum instrumento político-estatal, que no limite podem ser guerras, guerras civis, contra-revoluções, golpes de Estado, (contra)reformas anti-trabalhistas, anti-sindicais, anti-populares, fascistização social, etc. Exemplos da crescente belicosidade do capital se multiplicam no período recente: massacre das FARC na Colômbia, massacre dos Tigres do Tamil no Sri Lanka, massacre dos manifestantes da oposição na Tailândia, golpe em Honduras, tentativa de golpe no Equador, brutal repressão aos protestos anti-G20 no Canadá, etc. Outros sintomas da crescente agressividade da burguesia são a reorganização da ultra-direita (o movimento do “Tea Party” nos Estados Unidos), a aplicação de políticas abertamente xenófobas (expulsão de ciganos romenos pelo governo francês por ordem direta de Sarkozy) e o surgimento de expressões ideológicas de caráter fascista em altos círculos do Estados (o livro de Thilo Sarrazin, alto funcionário do Banco Central alemão e membro do SPD, que pregou abertamente a expulsão de imigrantes).
É nesses momentos de agudização da luta de classes, quando a burguesia realiza uma ofensiva política contra os trabalhadores, que se mostra com maior urgência a necessidade de uma alternativa política proletária socialista revolucionária capaz de passar da resistência aos ataques para uma ofensiva pela tomada do poder e pela construção do socialismo. O caso da Argentina, maior vítima da crise de 2001, quando o povo mobilizado foi capaz de derrubar os dirigentes do Estado burguês, mas não construiu uma alternativa de poder que rumasse para a transição ao socialismo, ilustra dramaticamente a necessidade premente da construção política e ideológica dessa alternativa.
Sem um projeto socialista a ser impulsionado pela classe trabalhadora, a ordem capitalista se reconstitui, por mais dramática que seja a crise. A Argentina voltou à “normalidade”, com sua economia voltando a crescer, mas com grandes parcelas da sua população vivendo na miséria absoluta, na pobreza, no desemprego e na superexploração. Quanto maior e mais intensa uma crise, maior a possibilidade de que novas “Argentinas” se multipliquem pelo mundo. A crise de 2008-2009 está passando da fase “econômica” para a “política”, o momento em que os prejuízos estão sendo socializados. A burguesia realiza neste momento a complicada operação política de fazer os trabalhadores aceitarem a “inevitabilidade” das conseqüências da crise.
2.3) As respostas do Estado
Desde os primeiros soluços da crise, em meados de 2008, a dimensão dos pacotes de ajuda do Estado para salvar os negócios da burguesia só fez crescer. 100, 200, 500, 700 bilhões de dólares, as quantias foram se tornando cada vez mais astronômicas. Um dinheiro que ninguém desconfiava que existia, de repente se materializou para salvar o capital da falência. Bancos, seguradoras, financeiras foram semi-estatizados, mantidos vivos como “zumbis”, com montanhas de títulos podres nos seus cofres. O resultado dessa operações é que vários Estados capitalistas se tornaram eles próprios “zumbis”, prisioneiros de orçamentos explosivamente deficitários. O total do rombo que isso deixou no orçamento dos principais Estados capitalistas foi calculado pelo FMI em US$ 9,2 trilhões, mais US$ 1,6 trilhão dos países periféricos. Entretanto, esses mais de US$ 10 trilhões estão longe de ser suficientes. Os pacotes de ajuda atuaram na superfície do problema, no âmbito da chamada “liquidez”, ou seja, disponibilidade de dinheiro para o crédito e a continuidade dos negócios. Na verdade, o verdadeiro problema está na insolvência, ou seja, na impossibilidade de pagamento dos créditos em circulação, uma vez que correspondem a expectativas virtuais de uma riqueza que jamais será gerada.
Os créditos impagáveis conhecidos como “ativos tóxicos” continuam tão corrosivos como antes, com a diferença de que foram transferidos para a conta do Estado. E nem sequer o problema de liquidez foi resolvido, pois os bancos e instituições financeiras não usaram o dinheiro do governo para voltar a emprestar, mas para pagar suas próprias dívidas e distribuir bônus milionários para seus executivos. O crédito não voltou a circular como antes e a economia mundial continuou em marcha lenta. O Estado capitalista despejou trilhões de dólares nas corporações financeiras, evitando assim a destruição total e desorganizada do capital fictício em seu poder. Foi esse socorro providencial do Estado que impediu a implosão do sistema no primeiro momento. Entretanto, repetimos, isto está longe de ser suficiente, pois a quantidade de capital fictício a ser “digerido” excede qualquer parâmetro racional de cálculo. As próprias instituições da burguesia, como o BIS (Bank of International Settlements, ou “Banco Central dos Bancos Centrais”) e o FMI divergem sobre a medida do volume de títulos em negociação nos mercados financeiros.
As últimas décadas assistiram a uma multiplicação explosiva da quantidade e variedade de instrumentos financeiros “sofisticados”, por meio dos quais um papel que equivale a uma promessa de pagamento (hipoteca, direitos sobre créditos ao consumidor, empréstimos automobilísticos, crédito estudantil, cartões de crédito, etc.) passa a ser vendido por valores muito maiores do que o crédito que lhes deu origem. Tudo o que os compradores de tais papéis precisam fazer é encontrar outros compradores que repassem esses papéis para frente. Ninguém questiona a confiabilidade dos créditos na origem dos títulos, pois para isso existem as agências de classificação de risco, como Moody’s, Fitch, Standard & Poor’s, que atribuem a esses papéis o certificado de AAA, equivalente ao dos títulos do tesouro estadunindense; ou ainda, as seguradoras, como a AIG, que vendem proteção contra o risco de inadimplência. Os papéis são vendidos e revendidos, e a própria continuidade indefinida desse movimento alimenta a certeza da continuidade dos lucros dos seus operadores, o que por sua vez aumenta o valor nominal dos papéis, e assim sucessivamente. Até que, em algum rincão do interior dos Estados Unidos, alguns trabalhadores não consigam mais pagar suas hipotecas…
Revela-se então toda a fragilidade do castelo de cartas especulativo. Os títulos e papéis especulativos em circulação no mercado financeiro globalizado têm um valor nominal estimado em algo por volta de US$ 600 trilhões, o equivalente a 10 vezes o PIB mundial. A economia capitalista está funcionando com base em um cheque sem fundo 10 vezes maior do que o saldo da conta, o que significa que esse cheque não pode ser descontado, tem que ser trocado por um outro papel, e assim sucessivamente, pois a sua liquidação teria o poder de destruir a economia capitalista tanto quanto os arsenais nucleares são suficientes destruir a vida no planeta várias vezes. O valor do socorro estatal ao mercado financeiro, estimado em cerca de US$ 10 trilhões, corresponde a uma fração ínfima desse capital fictício em circulação, de modo que deu apenas um fôlego para que os papéis fossem rolados no curto e médio prazo.
Com um grau de desfaçatez que beira o deboche, os especuladores do mercado financeiro voltaram a inflar os índices das bolsas de valores com operações fraudulentas lastreadas em papéis de valor ainda mais duvidoso do que aqueles que provocaram a crise. Esse fenômeno, a alta dos índices das bolsas, a partir de meados de 2009 e ao longo de 2010, foi trombeteado aos quatro ventos como a “recuperação da economia”. E para adicionar um toque de ultraje ao deboche, os dirigentes das instituições financeiras que capitanearam a criminalidade generalizada na gestação da crise foram recompensados com bônus milionários. Os lucros auferidos pela burguesia já voltaram aos níveis pré-crise, conforme atestam as estatísticas em vários países. Ao mesmo tempo, milhões de trabalhadores do mundo inteiro foram arremessados no desemprego e na miséria na esteira da crise, que agora se diz que foi “superada”.
Entre 2008 e 2009 a taxa de desemprego média nos países da OCDE saltou de 5,6% para 8,3%. Estatísticas da ONU calculam em 250 milhões o número de desempregados, 1 bilhão de pessoas enfrentando a fome aberta, e mais 2 bilhões de subnutridos e mal-nutridos, ou seja, extremamente pobres. O fato de que a implosão do sistema tenha sido evitada num primeiro momento e as bolsas tenham voltado a subir permitiu que a burguesia pudesse comemorar a suposta “superação da crise” e anunciar a “recuperação da economia”, discurso adotado unanimemente pela imprensa burguesa mundial, desconsiderando completamente a deterioração das condições de vida da maioria da população.
Entretanto, restou ao Estado, comitê gestor dos negócios conjuntos da burguesia, a tarefa de gerir o rombo deixado por mais esse cheque sem fundo emitido para reativar a economia mundial. Para que os negócios conjuntos da burguesia continuem funcionando, o Estado não pode ser tão irresponsável quanto seus patrões, pois precisa se preocupar com questões concretas, como a preservação do valor da moeda em que tais negócios são feitos, e como manter o controle sobre a classe trabalhadora, cujo sangue tais negócios extraem diariamente. Assim, depois que o incêndio financeiro foi controlado com uma enxurrada de dólares, o Estado precisará arrecadar esses dólares para reencher o tanque, mas sem precipitar a revolta popular.
Governos do mundo inteiro lançam as chamadas medidas de “austeridade”, ou seja, cortes de gastos e aumento de impostos para recuperar o orçamento público ameaçado por dívidas crescentes (a não ser em países que passam por eleições, como o Brasil, pois tais medidas em nada ajudam o candidato da situação). Numa das maiores operações de mistificação já vistas na história, subitamente “descobre-se” que o orçamento público apresenta rombos gigantescos (a dívida pública dos Estados Unidos passou de 40% para 100% do PIB; a da Espanha de 30% para 80%; a do Japão está em 250%, e a da Inglaterra em 420%), como se isso não tivesse nenhuma relação com os trilhões gastos para salvar os bancos. O vilão da dívida pública, dizem os políticos, ministros da fazenda, presidentes de bancos centrais e demais autoridades, devidamente respaldados na mídia por “respeitáveis” acadêmicos e analistas, são os trabalhadores. Os gastos com as aposentadorias, os benefícios sociais, o seguro-desemprego, a saúde pública, a educação, etc., e em especial os salários dos servidores, são declarados culpados pela dívida pública. Legitima-se assim a ofensiva mundial dos Estados capitalistas para aumentar impostos, aumentar o tempo para as aposentadorias, cortar benefícios, retirar direitos e rebaixar salários dos servidores, sucatear a saúde e a educação públicas, etc.
2.4) A gestação de uma ofensiva mundial contra os trabalhadores
Enquanto os paliativos do Estado surtem efeito no curto e médio prazo no sentido de reativar a economia, a burguesia desencadeia um processo de reestruturação de longo alcance visando recuperar a taxa de lucro, por meio da diminuição dos gastos com a força de trabalho, ou seja, salários e benefícios. Esse processo de equalização das taxas diferenciais de exploração tem como limite o nivelamento das condições de vida da classe trabalhadora mundial pelo patamar mais baixo. Os trabalhadores da China, que estão entre os mais mal pagos do mundo, recebem em média por hora de trabalho um valor quatro vezes menor que os do Brasil, e trinta vezes menor que os dos Estados Unidos.
Isso significa que, no limite, os trabalhadores dos Estados Unidos, e também os da Europa e Japão, serão forçados a aceitar salários e condições de vida cada vez mais próximas àquelas hoje vigentes nos países dominados. Até que se chegue ao “nível chinês de exploração”, ainda há muita “gordura para queimar” em termos de conquistas sociais dos trabalhadores a serem destruídas pela burguesia. Dada essa situação, a equação decisiva da situação mundial consiste em determinar se a burguesia conseguirá realizar essa gigantesca operação de nivelamento, e mais precisamente, em qual velocidade. O ritmo dos ataques é importante, pois o Estado precisa lidar com as conseqüências objetivas do endividamento.
Além da montanha da dívida pública, composta de títulos que se acumulam “ad infinitum”, existe o déficit público, medido pela (in)capacidade de determinado Estado de saldar suas dívidas com vencimento dentro de determinado exercício fiscal, ou seja, dentro do período de um ano e de uma previsão de orçamento a ser aprovada no parlamento. Se um determinado Estado não tem condições de pagar seus compromissos que estão vencendo num momento imediato, precisa tomar mais empréstimos, cujos juros são tão mais elevados quanto mais o mercado desconfia da possibilidade da insolvência. Para pagar a dívida de hoje, faz-se empréstimos com juros mais altos que criam uma dívida ainda maior para amanhã. É assim que determinados países “se enforcam” em dívidas cada vez maiores e déficits orçamentários cada vez mais apertados. Quanto maior o déficit, maior a escala dos ataques a serem feitos aos trabalhadores, o que traz à cena o outro lado da equação, ou seja, a reação do proletariado em defesa de suas condições de vida.
Em cada Estado nacional essas medidas de ataque aos trabalhadores terão velocidades diferentes, conforme a capacidade de resposta do proletariado e também a capacidade de iniciativa política da burguesia de cada país. O alcance dessa iniciativa política se determina também pela margem de manobra derivada da posição relativa do país em questão na divisão mundial do trabalho, pela qual se pode ser ou uma vítima ou um algoz, capaz de impor também aos demais países uma parte do custo do ajuste, fazendo-se valer das engrenagens da dominação imperialista mundial, como FMI, OMC, ONU, etc.
A primeira onda de lutas da classe trabalhadora contra a crise foi desencadeada no momento em que a recessão estava em seu auge, na virada de 2008 para 2009, com a atividade econômica diminuindo rapidamente, o comércio mundial em retração, a produção em queda, as empresas fechando e os mercados financeiros em pânico. Os países exportadores, como os da América Latina, experimentaram quedas enormes de suas vendas ao exterior. No último trimestre de 2008, México, Brasil, Argentina e Chile apresentaram quedas de ‐10,3%, ‐13,6%, ‐8.3%, e ‐1,2% do PIB anualizado, respectivamente. A queda do comércio mundial atingiu 10% em 2009. O PIB da Europa teve queda de 4,1%. Naquele momento, vários setores do proletariado reagiram “no susto”, com algumas greves e inclusive ações radicais, como ocupações de fábrica (Republic, em Chicago, nos Estados Unidos), greves prolongadas (portuários de Dublin, Irlanda), os seqüestros de patrões (New Fabris, Michelin e Alpharretta, na França) ou mesmo defenestrações (China). Essa primeira reação foi estancada pela contenção da crise, pelos pacotes dos governos, pelo isolamento das lutas e pela relativa estabilização geral.
Conforme os lucros das empresas voltavam, o discurso de que a crise foi superada se tornou dominante. Uma lenta recuperação está em marcha desde meados de 2009, mas as conseqüências da crise seguem se desenrolando. O custo exorbitante dos pacotes de ajuda dos governos, em termos de endividamento, está forçando o Estado a lançar as chamadas medidas de austeridade, as quais, por sua vez, estão detonando a segunda onda de resposta da classe trabalhadora contra a crise. Desta vez, a resposta é muito mais massiva e organizada. As seis greves gerais que ocorreram em maio na Grécia, algumas com contornos semi-insurrecionais, foram o prenúncio de lutas semelhantes em vários outros países.
2.5) O precário equilíbrio das relações internacionais
A lógica do capital é a lógica da sobrevivência do mais forte. As frações mais concentradas do capital precisam ser preservadas nos momentos de crise aguda, de modo que o sistema como um todo possa sobreviver, mesmo que isso signifique sacrificar as frações menos poderosas. Essa lógica é válida tanto para a concorrência entre as empresas como para as instituições que as representam e sustentam no plano político, ou seja, os Estados nacionais. Isso significa que no plano das relações internacionais a crise provoca novas disputas entre os Estados, reacende aquelas existentes e reabre rivalidades que pareciam ter sido enterradas pela história.
Nesse terreno nos deparamos com uma das contradições inelimináveis do sistema do capital, ou seja, a existência de inúmeros Estados nacionais e não apenas uma entidade política totalizadora a coordenar as atividades do sistema, um “Estado mundial” do sistema do capital. Esses inúmeros Estados entram inevitavelmente em choque conforme precisam defender os interesses das suas respectivas burguesias nacionais. No curso da atual crise, os Estados nacionais ensaiaram para a platéia mundial um simulacro de coordenação conjunta para a contenção da crise econômica. As reuniões do G20, essa espécie de “Internacional capitalista”, produziram declarações tranquilizadoras e fotos sorridentes dos chefes de Estado para acalmar os espectadores de telejornal do mundo inteiro, mas nos bastidores, para o público mais atento, desenrolaram-se por debaixo da mesa as caneladas e cotoveladas entre as maiores potências econômicas e seus principais parceiros subdesenvolvidos. 17 países do G20 lançaram medidas protecionistas uns contra os outros.
O foco das disputas atuais está na guerra pela desvalorização das moedas nacionais. Cada Estado precisa baixar o câmbio da sua moeda para favorecer os seus exportadores no mercado mundial, mas recebe a pressão dos países concorrentes para fazer exatamente o contrário, pois todos precisam exportar. A mais importante dessas disputas é a que envolve Estados Unidos e China, cujo relacionamento constitui o eixo dinâmico da economia mundial atual. Os Estados Unidos, mas também a Europa e o Japão, querem forçar a China a elevar a cotação de sua moeda, mas a burocracia dirigente naquele país não está disposta a fazer essa concessão, pelo menos não num ritmo nem de longe capaz de agradar às burguesias imperialistas.
As exportações e importações equivalem a 67% do PIB chinês, o que a coloca como uma das economias mais internacionalizadas do mundo (Brasil e Estados Unidos têm um índice de internacionalização de 26% e 25%, respectivamente). Ao mesmo tempo, a China precisa fazer com que sua economia continue crescendo anualmente a taxas próximas dos 10%, pois do contrário não conseguirá gerar emprego para dezenas de milhões de jovens e imigrantes que ingressam na população economicamente ativa todos os anos. Por isso, é absolutamente crucial para a China continuar exportando para os Estados Unidos.
Os Estados Unidos, por sua vez, tem tentado reativar sua capacidade de concorrer com os maiores exportadores do mercado mundial, que são a China e a Alemanha, respondendo a pressões protecionistas internas de setores da sua burguesia. Entretanto, as exportações estadunidenses não conseguem trazer para o país no volume necessário os dólares necessários para fechar o déficit comercial e o déficit público (déficits gêmeos). Por isso, o país precisa dos dólares acumulados por grandes exportadores, como China, Japão, Rússia e Brasil, que compram os títulos da dívida pública estadunidense. É a procura pelos títulos do tesouro estadunidense (treasuries), considerados o investimento mais seguro do mundo, que sustenta o valor do dólar. O tesouro estadunidense está acostumado a emitir títulos com prazo de resgate de até 30 anos, mas no curso da atual crise, foi forçado a reduzir o prazo para meros 6 meses, dado o desespero pela obtenção de recursos para fechar as contas.
Neste momento, esses grandes exportadores estão justamente buscando formas de reduzir a sua dependência de tais títulos como forma preferencial de constituir reservas, pois cresce a preocupação com os déficits gêmeos dos Estados Unidos, e já se fala na possibilidade de inadimplência. Por outro lado, os temores de que os Estados Unidos não possam honrar suas dívidas não podem ser alardeados, e os movimentos de diversificação das reservas não podem ser acelerados, pois justamente isso poderia desencadear a “profecia que se auto-realiza”, ou seja, a corrida dos detentores de treasuries (grupo que inclui outras plataformas de exportação de peso médio na economia mundial, como Coréia do Sul, Taiwan, Singapura, etc.) para vendê-los desordenadamente. Isso faria desabar o valor dos treasuries, e conseqüentemente, o valor do dólar.
Em outras palavras, os Estados Unidos precisam continuar comprando exportações chinesas, para que os chineses possam continuar acumulando dólares, para que possam comprar títulos do tesouro estadunidense, para que os Estados Unidos possam manter o valor do dólar, para que seu governo, suas empresas e consumidores possam continuar se endividando, para que possam continuar comprando exportações chinesas, e assim sucessivamente.
2.6) Perspectivas da economia e papel dos BRICs
A crise não foi resolvida, mas segue sendo administrada a partir do conjunto de políticas adotadas pela burguesia, por seus Estados Nacionais e pelos organismos como o G-20, o FMI, etc., no sentido de garantir socorro, crédito barato, emissão de moeda dos EUA, renegociação de dívidas, fusões e aquisições de empresas, etc.
Apesar de alguns sinais de recuperação, não se pode ainda falar que a crise cíclica aberta em 2008 já tenha sido resolvida, com a consolidação de um novo período de crescimento econômico.
O que é certo é que devem prosseguir e se aprofundar os ataques aos trabalhadores, particularmente os dos países centrais do capitalismo e no sentido de aumentar brutalmente os níveis de extração de mais-valia sobre os trabalhadores.
Há a possibilidade tanto de uma recaída na crise, como também de um processo de lento crescimento nos próximos dois anos.
O World Economic Outlook (doravante WEO), publicação quadrimestral do FMI que reúne os dados da economia mundial e apresenta as previsões em cima das quais a burguesia trabalha, aponta para um cenário de superação muito lenta da crise, ameaçada por incertezas. Na sua edição mais recente (novembro de 2010, de onde foram retirados os dados a seguir), o WEO aponta para alguns problemas que a economia capitalista terá que superar, e adianta assim, de certa forma, os ataques que a burguesia terá que fazer.
O estudo indica que a economia mundial vem se recuperando gradualmente desde 2009 e assim deve continuar ao longo de 2011. Entretanto, a recuperação perdeu fôlego no final de 2010 e deve continuar em marcha lenta em 2011, devido ao fim do efeito dos pacotes extraordinários de estímulo lançados no auge da crise. Uma retomada do crescimento sustentável ainda dependerá do retorno à “normalidade” dos mercados financeiros (que está longe de acontecer devido à montanha de ativos tóxicos de capital fictício ainda a serem digeridos). Os estudos reunidos pela OCDE, pelo escritório do orçamento do congresso estadunidense e pela comissão européia indicam também uma queda na produção e excesso de capacidade instalada. A previsão do WEO é de que o crescimento mundial seja de 4,2% em 2011, contra 4,8% em 2010, sendo 2,5% nos países avançados (nome que se dá no WEO para os países imperialistas) e 6,25% nos países emergentes.
Um dos problemas apontados pelo WEO é a queda do consumo, de longe o principal componente do PIB dos Estados Unidos. Os preços das residências caíram entre 25% e 30% nos últimos três anos. Se considerarmos que boa parte do último ciclo de crescimento esteve escorado em empréstimos pessoais baseados no valor dos imóveis que eram dados como garantia, isso mostra o tamanho da queda que foi experimentada num dos fatores centrais para a retomada do ciclo econômico. Além disso, o desemprego se mantém altíssimo para os padrões dos Estados Unidos, com algo entre 9% e 10%, e o tempo médio de duração do desemprego (cinco meses) é o dobro da média dos últimos 40 anos. Mundialmente, o desemprego afeta 210 milhões de pessoas, um aumento de 30 milhões desde 2007, sendo ¾ desse aumento nos países avançados.
Segundo o próprio FMI, os países emergentes (liderados pelos BRICs) têm poucas condições de compensar a economia mundial pela queda do consumo nos países avançados, devido ao seu ainda muito baixo consumo interno (mesmo com o forte crescimento do mercado interno – que alcançou 13% somente na China em 2009). As taxas de poupança devem subir de 44% para 45% de 2010 a 2015 na Ásia, sendo 2/3 provenientes da China. Apesar do crescimento acima da média das importações nos últimos 15 anos, a China ainda responde por apenas 3% das importações no mundo.
A queda do PIB entre 2008 e 2009 foi estimada em 6%, mas a queda no comércio mundial foi de 30%. A diferença se explica pelo fato de que os bens de capital e bens de consumo duráveis representam uma proporção maior do comércio mundial do que do PIB. Desde os níveis abissais de 2009 a 2010, o comércio mundial subiu 20%, o que ainda não significa o retorno ao volume pré-crise. Mesmo considerando as economias que não atravessaram uma crise financeira aguda, o comércio exterior permanece 15% abaixo da tendência do período 2001-2007.
Entre 2007 e 2009, o déficit orçamentário, dívida de curto prazo a ser rolada no interior de um determinado ano fiscal, aumentou de 1% para 9% nas economias avançadas. No final de 2010, o total de dívida pública (dívidas de curto e longo prazo) chegou a 100% do PIB, nível mais alto em 50 anos. O documento ainda lembra que o envelhecimento da população pode criar problemas ainda maiores para as finanças públicas. Para bom entendedor, isso significa que a burguesia tentará reduzir as aposentadorias dos trabalhadores para “reequilibrar o orçamento”, o que nos dá uma idéia do que ainda pode vir pela frente. Para 2011, a previsão é de que o déficit diminua 1,25% devido aos cortes de gastos e fim do desembolso de pacotes de estímulo. Para cada 1% de corte no orçamento, é esperado 1% de queda na demanda doméstica e 0,3% de aumento no desemprego, acrescentam os técnicos do FMI.
Embora tenham sofrido o impacto da crise em um primeiro momento, o conjunto de países conhecidos como BRICs, que inclui Brasil, Rússia, Índia e China, bem como os demais países localizados na periferia logo em volta dos países centrais, conseguiram se sustentar e até mesmo crescer no interior da crise e ao mesmo tempo como um contraponto e atenuador da mesma em um curto prazo.
Isso porque já representam níveis de extração de mais-valia e de lucratividade muito superior aos países centrais. Representam por isso mesmo referenciais a serem atingidos pelos capitais em operação nesses países.
Os mercados gerados no interior desses países (BRICs) são subordinados ao fato de que se trata sobretudo de exportadores. Ao mesmo tempo, os mercados gerados no interior desses países não compensam os mercados destruídos no interior dos países centrais. Por isso, ao longo do tempo, à medida em que a burguesia dos países centrais forem impondo níveis muito mais profundos de exploração dos trabalhadores nesses países, os mercados dos países centrais tendem a ser comprimidos.
Portanto, se num momento imediato, e ainda por algum tempo, o crescimento dos países ditos emergentes pode significar um contraponto aos países centrais no sentido de mediar e contrabalancear a crise nesses países, a longo prazo, tende não apenas a minar as bases de seu próprio crescimento (os mercados dos países centrais) como também a provocar e fazer se impor a queda da taxa de lucro e o contração dos mercados em nível mundial.
2.7) A administração da crise e as disputas interburguesas
As sete maiores economias do mundo, com o PIB medido pelo critério de paridade de poder de compra, são pela ordem Estados Unidos, China, Japão, Índia, Alemanha, Rússia e Brasil. Isso significa que os chamados BRICs deixaram para trás em termos de peso econômico velhas grandes potências como Inglaterra e França. Entretanto, na estrutura de poder geopolítico, os Estados Unidos e a Europa ainda controlam os principais organismos internacionais, como o Conselho de Segurança da ONU, Banco Mundial, FMI e OMC, mantendo a capacidade de ditar políticas que privilegiam os seus interesses. O G20 foi montado como forma de compensar parcialmente os BRICs, aumentando sua participação na tomada de decisões, mas principalmente sua responsabilidade ao arcar com medidas que ajudem o capitalismo a sair da crise. Entretanto, enquanto pedem sacrifícios dos trabalhadores e dos povos do mundo inteiro, as burguesias imperialistas tratam de usar o Estado para preservar seus interesses particulares.
A contradição entre a existência de um único sistema capitalista mundial e diversos Estados capitalistas rivais se manifestou no fenômeno da chamada “guerra cambial”. O dólar caiu 13% em relação ao yen em 2010 e 18% em relação ao euro entre junho e dezembro. A queda do dólar se refletiu na valorização do ouro, que subiu 28% em 2010, indo para US$ 1.420 a onça. A desvalorização do dólar também se manifesta como alta do preço das commodities, como petróleo, cobre, milho e outros alimentos. O FED anunciou no final de 2010 a impressão de mais US$ 600 bilhões, com o objetivo de desvalorizar ainda mais a moeda estadunidense.
A decisão dos Estados Unidos foi duramente criticada pela China e Alemanha, os dois maiores exportadores do mundo, os quais, por sua vez, foram acusados por Obama de acumular superávits comerciais de maneira “desleal”, ou seja, mantendo suas moedas artificialmente desvalorizadas em relação ao preço de mercado. Os últimos meses de 2010 presenciaram uma verdadeira guerra de desvalorizações cambiais, com diversos países anunciando medidas para diminuir o valor de suas moedas e melhorar as exportações, entre os quais vários exportadores importantes, com destaque para o gigante Japão, mas também os demais “tigres asiáticos”, como Coréia do Sul, Taiwan, Tailândia e Singapura. Outros como o Brasil anunciaram medidas para conter a entrada de dólares, impedir a valorização da moeda local e o perigo de inflação.
O efeito maior dessa “guerra cambial” é a imposição dos efeitos da crise pelos países mais fortes sobre os mais fracos.
A visita do presidente chinês Hu Jintao aos Estados Unidos em janeiro de 2011 não serviu para diminuir as tensões entre os dois países. Setores da mídia e do Congresso estadunidenses aproveitaram a visita para criticar a China abertamente por supostamente manipular sua moeda e desrespeitar os direitos humanos (o cúmulo da hipocrisia, já que os Estados Unidos fazem exatamente o mesmo em incontáveis operações criminosas e terroristas pelo mundo, como acaba de revelar abundantemente o site Wikileaks). Políticos e jornalistas, expressando os interesses da burguesia estadunidense, pressionam a administração Obama para que classifique a China como “manipulador de câmbio”, o que autorizaria o governo a impor sanções tributárias aos produtos chineses.
A China está se infiltrando no continente africano mediante acordos que visam garantir fornecimento de recursos estratégicos como petróleo, minérios e até mesmo alimentos. O comércio da China com a África subiu de US$ 10 bilhões em 2001 para US$ 107 bilhões em 2008. A penetração chinesa na África não difere do padrão estabelecido pelo imperialismo europeu no início do século XX. Em Zâmbia, país em que 70% das exportações provém da mineração, empresas chinesas tem sido envolvidas em escândalos desde 2005, envolvendo mortes em desabamentos, péssimas condições de trabalho, falta de água, jornadas abusivas e até tiros contra grevistas, em outubro de 2010.
Os Estados Unidos têm pressionado o restante do imperialismo para conter o crescimento chinês, por dentro e por fora dos organismos da ONU. Essa pressão se dá sob a forma de sanções e punições para países e empresas que se atrevem a negociar com países inimigos dos Estados Unidos, tais como o Irã, listados como “patrocinadores do terrorismo”. O Irã é o maior fornecedor de petróleo da China, que por sua vez é o país cujo consumo de petróleo mais cresce no mundo. A China consome 8,2 milhões de barris por dia, quantidade que tem aumentado a uma média de mais 500 mil barris por dia a cada ano, 50% do crescimento mundial do consumo.
Para estrangular o crescimento chinês e manter o país a rédeas curtas, os Estados Unidos querem bloquear parceria sino-iraniana, sob o pretexto de que o Irã busca desenvolver armas nucleares. O Irã possui um programa de uso de urânio para fins medicinais e de usinas nucleares para geração de energia. O nível de enriquecimento de urânio (processo técnico que permite o aproveitamento da radioatividade para produzir energia) requerido para essas atividades é de 3% e 20%, respectivamente, limite atingido até agora pela tecnologia iraniana. O nível de enriquecimento requerido para uso militar é de 90%. O Irã está longe de atingir a capacidade técnica para tanto e submete suas instalações à inspeção da Agência Internacional de Energia Atômica.
Enquanto isso, Israel, protegido dos Estados Unidos, já detém a tecnologia para produzir armas atômicas, recusa-se a assinar o Tratado de Não-Proliferação Nuclear (portanto, comportando-se como o verdadeiro Estado criminoso) e sabotou o projeto nuclear iraniano, assassinando os cientistas Ali-Mohammadi e Majid Shahriari, chefes do programa, e disparando vírus de computador contra as usinas daquele país.
3) O centro da crise mundial: os Estados Unidos
3.1) A continuidade da crise e sua gestão sob Obama
Na condição de centro do sistema capitalista mundial, país em que o capital se encontra mais concentrado e desenvolvido, que possui a moeda de reserva mundial, as maiores corporações do mundo, o maior poder econômico, político, militar e cultural, os Estados Unidos estão também no centro da crise e também na vanguarda das tendências que vão dominar o cenário mundial no próximo período.
A eleição de Obama, em fins de 2008, período de auge da crise, sinaliza o recurso da burguesia estadunidense ao único instrumento capaz de aplicar as medidas necessárias para administrar a crise, em face do desgaste interno e externo do grupo dirigente anterior liderado por Bush. Medidas como o resgate dos bancos e a reforma do sistema de saúde pública só poderiam ser aplicadas por um dirigente que tivesse completo respaldo dos trabalhadores. Esse respaldo foi ideologicamente construído em torno do discurso da “mudança”, precisamente o único em nome do qual poderia se desenvolver a continuidade do projeto da burguesia estadunidense.
A idéia de mudança advém da condição de Obama como negro, fato que tem um peso significativo num país extremamente racista como os Estados Unidos. Em nome da liberdade de expressão, a legislação estadunidense tolera a veiculação de idéias abertamente racistas, fascistas, neonazistas, e ultra-direitistas de toda espécie. Setores de ultra-direita podem pregar abertamente (em vários casos, mais do que pregar, esses grupos partem para as vias de fato, praticando assassinatos, torturas, agressões, difamação, assédio) o ódio aos negros, latinos, imigrantes, índios, minorias, judeus, muçulmanos, homossexuais, militantes, etc.
O fenômeno de um pastor que ameaçou publicamente queimar um exemplar do Alcorão no dia 11 de setembro não é um caso isolado de demência, pois representa o pensamento de amplos estratos da população. Não muitas semanas antes, um movimento intitulado “Tea Party” (“partido do chá”, em português – alusão à chamada “revolta do chá”, em que colonos jogaram chá ao mar no porto de Boston para protestar contra os impostos ingleses, precipitando a luta pela independência dos Estados Unidos, em 1785) havia liderado uma marcha à Washington (nos mesmos moldes da marcha liderada por Martin Luther King em 1968, no auge da luta pelos direitos civis dos negros), com mais de 100 mil pessoas, para defender a agenda típica da ultra-direita (redução dos impostos da burguesia e corte dos gastos sociais com os trabalhadores).
A organização da ultra-direita é um sintoma evidente da agudização das contradições de classe. Conforme avança a degradação das condições de vida dos trabalhadores, na esteira da crise, a insatisfação social latente ganha expressões irracionais no ódio e no fanatismo religioso, que germinam prolificamente em tais períodos, como germes num corpo em putrefação. Oportunistas de todos os tipos, políticos, religiosos, âncoras de TV, radialistas, etc., exploram a revolta popular com as condições sociais geradas pela crise e a ignorância das suas verdadeiras causas para oferecer falsas soluções e falsos culpados, bodes expiatórios nos quais se descarregam sob a forma de violência política (e física) as frustrações e preconceitos longamente acumulados e ideologicamente cultivados. A classe trabalhadora se fragmenta e se dilacera em falsos conflitos, deixando de dirigir suas forças contra a classe dominante.
Precisamente essa é a função de Obama como presidente. Na medida em que os trabalhadores dos setores mais explorados, os negros e os mais oprimidos em geral identificam Obama como “um dos seus” em função da identidade étnica de negro, deixam de identificá-lo como o inimigo de classe que é em função da política que aplica. O movimento operário estadunidense se encontra paralisado, de um lado, pela “política da identidade”, que desloca a questão de classe e coloca as reivindicações de reconhecimento e participação enquanto “minorias oprimidas” no centro de seu programa. Essa é a política das entidades que (des)organizam o setor mais explorado do proletariado, os negros, latinos, imigrantes ilegais, etc., as quais ainda emprestam apoio incondicional ao Partido Democrata e a Obama. De outro lado, o movimento se paralisa pela criminosa capitulação das ultra-burocratizadas entidades sindicais que representam as principais categorias do proletariado industrial.
Um só exemplo ilustra o grau da traição de classe a que chegaram os sindicalistas estadunidenses. Quando a GM, ícone do capitalismo industrial, foi à falência no início de 2009, o governo exigiu um “plano de viabilidade” que demonstrasse a capacidade da empresa de voltar a ser lucrativa, como condição para liberar dinheiro público para recuperar a companhia. O principal ítem desse plano era a redução dos salários e benefícios dos trabalhadores. Ao invés de defender seus associados, o UAW (United Auto Workers, sindicato dos trabalhadores das montadoras) pressionou nas assembléias pela aceitação da proposta da patronal, com tal afinco que foi premiado com ações da nova empresa assim “viabilizada”…
3.2) Os trabalhadores estadunidenses e o custo da crise
A derrota dos trabalhadores da GM abre as portas para ataques semelhantes em todas as demais categorias do proletariado. Sem organismos e direções capazes de apresentar uma alternativa classista e socialista diante da crise e suas conseqüências, os trabalhadores estadunidenses experimentaram uma forte queda nas suas condições de vida. Só em 2008 foram leiloadas 1 milhão de residências nos Estados Unidos. A queda do valor dos imóveis e das ações em que investiam sua poupança provocou uma baixa de 20% nos rendimentos da classe trabalhadora estadunidense.
Uma reportagem especial do Wall Street Journal no início de outubro mostrou que os lucros das empresas estadunidenses no segundo trimestre de 2010 aumentaram 3,9% em relação ao primeiro, e 26,5% em relação ao mesmo período de 2009. Entretanto, o aumento dos lucros não decorreu de uma aumento da produção e do consumo, mas do corte de custos. A recuperação em curso apresenta o clássico saldo de todas as crises capitalistas, ou seja, o desemprego em massa e a queda nos salários e condições de vida dos trabalhadores. Isso fica ainda mais evidente quando se observam os números das 500 maiores empresas, agrupadas no índice Standard & Poor’s. O lucro das 500 maiores empresas foi de US$ 189 bilhões, um aumento de 38% em comparação a 2009, um valor 10% maior do que o segundo trimestre de 2008, antes da crise, mesmo que a arrecadação bruta das empresas tenha caído 6%. O aumento dos lucros com queda na renda das vendas só é possível por meio de um violento e maciço corte de custos. Esse colossal ajuste de custos elevou a taxa de desemprego aberto para 9,7% nos Estados Unidos, desconsiderando o desemprego oculto (desalento, trabalho parcial, informal, etc.).
Essa porcentagem representa um número de 14,8 milhões de desempregados. A média de duração do desemprego é de 33 semanas. Essas estatísticas, que não incluem o desalento (trabalhadores que deixaram de procurar emprego) e o trabalho parcial, são as maiores desde a Grande Depressão. As estatísticas não conseguem esconder um aumento explosivo da miséria. A previsão do Supplemental Nutrition Assistance Program, que fornece “food stamps”, uma espécie de “vale-refeição” ou “bolsa-auxílio” para os extremamente pobres, é de que 43 milhões de estadunidenses recorram ao programa em 2011. O número de famílias recebendo “food stamps” (ajuda alimentar do governo) aumentou em 2 milhões em 2009, para um total de 11,7 milhões. Ou seja, o país mais rico do mundo, exemplo do “sucesso” do capitalismo, não consegue alimentar 1/7 da sua população.
De acordo com os dados do censo oficial do governo estadunidense publicados em setembro de 2010, a renda média anual das famílias caiu quase 3%, de US$ 51,726 para US$50,221 entre 2008 e 2009. O volume das dívidas em relação à renda anual das famílias estadunidenses passou de uma média de 60% em 1975 para 130% em 2007, ou seja, mais do que dobrou. O número de residências desocupadas subiu para 12,6%. A população com renda abaixo da linha de pobreza, estabelecida como sendo US$ 10.977 ao ano, aumentou de 5,7% para 6,3%. O número de crianças vivendo na pobreza aumentou de 16% para 21% entre 2000 e 2010.
Na região do meio-oeste, outrora o mais importante centro industrial dos Estados Unidos (ou do mundo) a queda da renda familiar média foi ainda maior: de US$ 54,600 em 1999 para US$ 48,400 in 2009. Nesta região, o número de pobres aumentou 45% em Ohio em relação a 1999, e 60% em Indiana no mesmo período. A taxa de pobreza em Detroit (antiga capital da indústria automobilística) é de 37% da população, e de 51% para os menores de 18. 34 estados tiveram queda na renda familiar e 31 estados tiveram aumento na porcentagem de pobres na população.
3,69 milhões de pessoas foram listadas no programa Medicaid, a assistência médica para os pobres em 2009, elevando o total para 48 milhões. Esse expressivo aumento é resultado do desemprego, já que nos Estados Unidos a assistência médica é parte dos benefícios pagos aos trabalhadores pelo empregador. Com a crise econômica, não só aumentou o desemprego, como muitas empresas cortaram benefícios dos seus trabalhadores. O reembolso pago aos médicos pelo Medicaid é tão baixo que muitos médicos estão se recusando a atender pacientes do programa. O financiamento federal será cortado em US$ 100 bilhões até junho de 2011, e 48 dos 50 estados anunciaram cortes de gastos, ao passo que o número de pessoas atendidas deve aumentar em 6% até o próximo ano. A previsão de aumento dos gastos é de 25%. Vários estados anunciaram cortes em serviços dependentes do programa tais como tratamentos odontológicos, exames básicos, terapias, atendimento pessoal e tratamentos de longo prazo.
As conseqüências destrutivas da crise econômica rapidamente se fazem sentir em outros setores da sociedade. Os Estados Unidos possuem 100,000 instituições voltadas para atividades culturais com fins não-lucrativos, desde orquestras sinfônicas, museus, teatros, até os pequenos grupos locais. O financiamento federal para essas instituições caiu de US$ 416 milhões em 1978 para US$ 155 milhões em 2009, de acordo com o National Endowment for the Arts. Diminuíram tanto o financiamento público quanto as doações privadas. O resultado é uma queda geral na qualidade das produções artísticas, dominadas pelo “mainstream” da indústria cultural, e a queda no nível cultural geral. E é claro, uma queda no padrão de vida dos artistas, que se juntam ao restante da classe trabalhadora sob um denominador comum de ataques e de empobrecimento, mas também de lutas. A Orquestra Sinfônica de Detroit entrou em greve em outubro de 2010 contra os cortes de 33% nos seus salários.
Enquanto o grosso da população empobrece, os super-ricos ficam ainda mais ricos. Os 20% mais ricos (renda de mais de US$ 100 mil ao ano) absorveram 50% da renda gerada no país em 2009, enquanto que 44 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha de pobreza recebem apenas 3,4%. Trata-se da maior desigualdade social entre os países desenvolvidos. A fortuna total dos 400 cidadãos estadunidenses mais ricos listados anualmente pela revista Forbes chega US$ 1,37 trilhão, o que equivale ao PIB da Índia (população de 1,2 bilhão de habitantes), ou ainda, a mais de dez vezes do déficit orçamentário dos 50 Estados (US$ 121 bilhões) projetado para 2011. O único a estar presente na lista desde a primeira edição, em 1982, o especulador Warren Buffett, viu sua fortuna se multiplicar em 180 vezes nesse período. Esse salto demonstra o caráter que tem tomado as atividades da burguesia estadunidense, cada vez mais rentista e predatória. O único representante do setor industrial “clássico” na lista, William Ford, teve seu lugar assegurado por conta do sucesso da Ford em cortar salários e benefícios dos seus trabalhadores. A taxa de lucro das instituições financeiras subiu de 15% em 1981 para 35% em 2006, o que explica o enriquecimento explosivo dos especuladores. A taxa de lucro das corporações não-financeiras dos Estados Unidos caiu de 19% em 1947 para 10% em 2007. Acompanhando o declínio da locomotiva estadunidense, a taxa de crescimento do PIB mundial baixou de 5% ano ano em 1970 para 2,5 em 1998.
A dívida dos Estados Unidos é a maior do mundo em volume e agudez. Para não entrar em moratória o governo estadunidense precisa cortar US$ 1,3 trilhão em gastos sociais, detonando uma verdadeira hecatombe social. A crise atual já custou 25 vezes mais do que a Grande Depressão, ou US$ 23.108 por pessoa contra US$ 821.
3.3) Avanço da desigualdade social nos Estados Unidos
No discurso presidencial de abertura dos trabalhos do Congresso, conhecido como “estado da União”, em fins de janeiro de 2011, Obama comemorou o fim da recessão, apontando como prova os lucros das corporações e a alta das ações desde 2009. Ao mesmo tempo, anunciou um plano para tornar a economia estadunidense mais “competitiva”, e nomeou como assessores de alto escalão ex-executivos do banco JPMorgan e da General Eletric. Para bom entendedor, esse discurso significa que a classe trabalhadora estadunidense será forçada a arcar com uma queda ainda maior nas suas condições de vida para que a economia do país se torne mais “competitiva” em relação a plataformas de exportação como a China. Obama também anunciou cortes de US$ 200 bilhões em impostos para as grandes corporações em 2011.
As grandes empresas lucraram U$ 1,7 trilhão em 2010, quantia maior do que no auge do ciclo de crescimento anterior à crise, em 2006. Com uma taxa de desemprego que se mantém em em 9,8%, elevadíssima para os padrões estadunidenses, a alta dos lucros se explica majoritariamente por meio do aumento da exploração dos que não foram demitidos. A produtividade dos trabalhadores tem aumentado 4,2% a mais por ano desde 2008. Ou seja, os Estados Unidos cresceram quase o mesmo que há três anos, mas com 7,5 milhões de trabalhadores empregados a menos.
As 500 maiores empresas listadas pela Standard & Poor’s anunciaram crescimento médio de 36% nos lucros no final de 2010 em relação a 2009. Esses lucros resultam em sua maioria de uma maior exploração dos trabalhadores, pois o faturamento cresceu apenas 6%.
Apenas 10% da população estadunidense possui 90% das ações em negociação nas bolsas, sendo metade concentrada nas mãos do 1% mais rico. É para essa classe social que Obama governa. Os 5.300 indivíduos mais ricos receberam uma renda de US$ 57,6 bilhões em 2009, US$ 8 bilhões a mais do que a renda dos 24 milhões mais pobres, ou 10% da renda nacional, segundo dados da SSA (Social Security Administration). O 1% mais rico da população amealhou 2/3 do crescimento da renda pessoal no país. O relatório também sugere que o desemprego está subestimado, pois a SSA calculou em 4,5 milhões o número de pessoas que perderam emprego em 2008 e 2009, contra 2,6 do Labor Department.
A taxa de desemprego nos Estados Unidos se mantém acima de 9% pelo terceiro ano seguido, o período mais longo desde o início das estatísticas em 1948. A quantidade de despejos (por hipotecas não pagas) cresceu em 2010 em relação ao ano anterior em mais de 100 grandes cidades, a uma taxa várias vezes maior do que a média do mercado. O longo período de desocupação faz com que os trabalhadores percam direito ao seguro-desemprego, entrando em situação de penúria total. Cerca de 45 milhões de estadunidenses dependem de ajuda do governo para adquirir alimentos, através do programa de “food stamps” (uma espécie de “vale-refeição” distribuído pelo Estado). Os cortes de emprego prosseguem tanto no setor público quanto no privado. 35 dos 50 estados reduziram a folha de pagamento.
A quantidade de pessoas pobres nos Estados Unidos passou de 39,8 milhões em 2008 para 43,6 milhões em 2009, segundo dados divulgados pelo órgão responsável pelo censo do país. É considerada pobre uma pessoa sozinha que ganhe até US$ 11,2 mil por ano. No caso de famílias com dois adultos e duas crianças, são consideradas pobres as que têm renda anual de até US$ 21,8 mil. Esse número é equivalente a cerca de 14% da população, o maior nos 51 anos em que a pesquisa é feita. O número de pessoas sem plano de saúde aumentou de 46,3 milhões em 2008 para 50,7 milhões em 2009, por causa da perda de planos de saúde pagos pelos empregadores.
3.4) Início das mobilizações da classe trabalhadora estadunidense
O governador republicano do estado de Wisconsin (extremo norte dos Estados Unidos) lançou um pacote de leis abolindo o processo de negociação salarial coletiva dos servidores do estado por meio de seus sindicatos. Isso significa que professores, policiais, bombeiros, médicos e enfermeiros, etc., não poderão lutar para defender seus salários. Ao mesmo tempo, o governo anunciou cortes nos salários, benefícios e pensões desses trabalhadores.
Em resposta, desde 15 de fevereiro esses setores iniciaram um processo de mobilizações, que contou com a adesão de amplas camadas da população, e já chegou a reunir 100 mil pessoas em frente à assembléia estadual na capital, Madison. A oposição democrata no senado estadual saiu do estado para tentar obstruir a votação. Os manifestantes comparam-se abertamente com os egípcios na praça Tahrir, no Cairo.
Esses primeiros sinais de mobilização da classe trabalhadora estadunidense devem se ampliar, na medida em que, assim como o governo federal de Obama, a quase totalidade dos estados e municípios está altamente endividada, e tem tido como política cortar gastos com servidores, demitindo, reduzindo salários e benefícios. Professores e funcionários públicos de saúde são os profissionais mais afetados. Ao mesmo tempo, as empresas estão sendo beneficiadas com cortes de impostos.
Medidas semelhantes às que estão em disputa em Wisconsin foram anunciadas em outros estados como Michigan e Carolina do Norte. Em contrapartida, processos de mobilização dos trabalhadores estão emergindo em outros estados como Minnesota, Ohio, Indiana e Pensilvania.
3.5) A política externa do imperialismo estadunidense
No plano externo, Obama também deu continuidade à política de seu antecessor, apenas deslocando o eixo das ocupações imperialistas do Iraque para o Afeganistão. Essa mudança de eixo foi apresentada como sendo o cumprimento da promessa de campanha de se retirar do Iraque. Entretanto, não houve uma retirada completa, pois um significativo contingente remanescente de 50.000 soldados permaneceu no país, tendo sido reclassificado de “tropas de combate” para tropas de apoio, assistência às forças armadas iraquianas, treinamento e conselheiros militares. Esse expediente de mudar o nome de uma determinada realidade política como se isso tivesse mudado a própria realidade era o que Orwell chamava de “duplipensar”. A duplipensada desocupação do Iraque conta ainda com o fato adicional de que o assim chamado “governo iraquiano” não passa de uma colcha de retalhos de forças tribais mercenárias em constante rivalidade, altamente corruptas e rapaces, as quais são empregadas para reprimir o povo iraquiano e permitir a continuidade da exploração do petróleo do país pelas transnacionais estadunidenses.
A composição altamente instável e problemática do governo títere iraquiano não deixa de expressar o fracasso do projeto inicial do imperialismo de contar com um poder político estável. Esse poder deveria legitimar a pilhagem do petróleo iraquiano pelas transnacionais estadunidenses sem precisar contar com um custoso aparato de segurança e enfrentar maciça oposição popular e a permanente ameaça terrorista ou mesmo o risco de dilacerar-se em lutas entre os senhores da guerra. Esse dilaceramento é o mesmo em que permanece o Afeganistão, cujo governo títere é ainda mais fictício do que o do Iraque.
Além do interesse vital no controle do petróleo e do gás natural do Oriente Médio e da Ásia Central, em rivalidade aberta com outras potências imperialistas européias, com a Rússia e a China, a presença de tropas dos Estados Unidos tem como objetivo também alimentar o complexo industrial-militar e o aparato de segurança. Os Estados Unidos respondem por metade dos gastos militares do planeta, com um orçamento anual em torno de meio trilhão de dólares (equivalente ao PIB do Brasil). O gasto diário com a ocupação do Afeganistão se situa na casa de US$ 130 milhões.
Essa gigantesca máquina de destruição precisa inventar constantemente novos inimigos reais e fictícios capazes de justificar as despesas da sua manutenção. Por isso o foco das atenções se desloca do Iraque para o Afeganistão, e deste para o Paquistão, ou futuramente o Irã, e assim por diante. Em lugar da Guerra Fria como princípio totalizador/conflitivo estruturador da dinâmica geopolítica internacional, erige-se o mito de uma “guerra contra o terror”. Em lugar da URSS como adversário sistêmico, temos a “Al Qaeda”. Convenientemente, temos um adversário que não pode ser delimitado sob qualquer critério racional. O terror é ubíquo e onipresente. Está simultaneamente em toda parte e ao mesmo tempo em lugar nenhum. O terrorista é um inimigo sem rosto, sem nome e sem pátria, movendo-se num cenário sem fronteiras e sem restrições.
Qualquer indivíduo subitamente tornado inconveniente para a lógica do sistema pode ser plausivelmente acusado de terrorista e transformado em inimigo, por meio de campanhas de difamação midiática que se tornaram um poderoso instrumento de guerra psicológica e de propaganda. O “terrorista” pode subseqüentemente ser caçado e morto pelas forças da “ordem”, com pleno aval das instituições “democráticas” e da opinião pública previamente anestesiada pelo medo e pela mentira. Essa indeterminação em torno do alvo a ser combatido pode se prolongar interminavelmente, visto que a “guerra contra o terror”, uma vez iniciada, por força das características do objeto contra o qual se define, pode muito bem nunca ter fim, e ser periodicamente relançada e renovada ao sabor das conveniências da conjuntura.
A conflitividade estrutural do sistema do capital encontra assim o pretexto complementar e necessário em função do qual sua destrutividade sistêmica pode se deslocar indefinidamente para fora de qualquer espacialidade e temporalidade concretas. A irracionalidade, sob a forma de duplipensar, alcança uma elasticidade virtualmente infinita. O terrorismo fornece o pretexto providencial para medidas repressivas que podem se abater sobre qualquer forma de oposição. O alvo real dessa guerra surreal é a classe trabalhadora e sua necessidade de lutar contra o capitalismo. As medidas repressivas erigidas sob o pretexto de combater o terrorismo tecem uma teia de obstáculos policiais e judiciais contra as lutas dos trabalhadores.
Os Estados Unidos já possuem a maior população carcerária do mundo, composta majoritariamente de negros e latinos. A criminalização da pobreza, as prisões arbitrárias, prisões secretas ilegais e sem mandado judicial, o uso sistemático da tortura como forma de investigação, os processos judiciais fraudulentos, o cerco policial pesado contra atos de luta e protestos, a espionagem telefônica e eletrônica, a monitoração dos espaços públicos por circuitos de TV, monitoração via satélite, campanhas de difamação e desinformação na mídia burguesa, etc.; são todos componentes de um mesmo operativo de repressão sistemático contra os trabalhadores.
Os Estados Unidos receberam 228 acusações de violação dos direitos humanos no novo Conselho de Direitos Humanos da ONU, em sessão realizada em fins de 2010. Não se espera que um órgão dessa natureza tenha qualquer poder efetivo para confrontar as arbitrariedades da maior potência imperialista. Entretanto, o relatório tem um importante significado simbólico. As violações dizem respeito às detenções ilegais em Guantanamo e outros centros secretos, prática de tortura, prisão política (casos do negro Mumia Abu Jamal e do índio Leonard Peltier), asilo a terroristas (como o cubano Posada Carriles), recusa em reconhecer o Tribunal Internacional e outros convênios, bloqueio a Cuba, discriminação contra imigrantes e minorias, prisão de menores, violações ambientais, etc.
4) A China, o projeto de superpotência e a restauração capitalista
4.1) O projeto da burocracia
A relação entre China e Estados Unidos é ao mesmo tempo de simbiose no plano da economia e de constante conflito político. Ambos têm interesse na preservação do dólar, mas enquanto que para os Estados Unidos isso é uma questão absolutamente vital e permanente, para a China trata-se de um recurso conjuntural, pois a burocracia do Partido Comunista Chinês (PCC) persegue sua própria agenda, que visa transformar o país em uma superpotência mundial, agindo com um pouco mais de inteligência e paciência do que os seus congêneres no ocidente.
Os dirigentes burgueses ocidentais reagem a cada crise com pseudo-soluções que na verdade criam os problemas que causarão a próxima crise. Alan Greenspan, que durante os mandatos de Clinton e Bush foi presidente do FED, o banco central estadunidense, reagiu à crise provocada pela quebra da bolha da Nasdaq em 2000 criando facilidades para o crédito imobiliário, que por sua vez geraram a bolha do sub-prime de 2007. Os burocratas chineses, menos irresponsáveis, reagiram à crise asiática de 1997-98 com medidas que fortaleceram a capacidade do Estado de lidar com flutuações extremas da economia. Desde a crise de 1998, a arrecadação do governo dobrou e chegou a 21% do PNB, os benefícios pagos pelo Estado quadruplicaram e alcançaram 23% do PNB, os créditos podres foram reduzidos a um quarto, as reservas em dinheiro se multiplicaram por 13. Dois terços dos bancos são controlados pelo Estado.
Em termos históricos de longo prazo, a reafirmação da China como superpotência mundial significaria apenas a sua volta ao lugar que sempre foi seu, pois foi apenas nos últimos duzentos anos, por causa da revolução industrial, que a Europa e os Estados Unidos ultrapassaram o Império do Meio na condição de sociedades mais desenvolvidas. Nos cinco milênios precedentes a China sempre esteve à frente ou no mínimo em pé de igualdade em termos de desenvolvimento técnico, poderio militar, organização política, centralização administrativa, coesão social, cultura, literatura, etc.
Na corrida para voltar a se tornar uma superpotência global, em 2010 a China ultrapassou a Alemanha como maior exportador do mundo e o Japão como segundo maior PIB (que atingiu um valor anualizado de US$ 5.34 trilhão, contra US$ 5.136 do Japão) . O crescimento chinês, que antes se dizia meramente conjuntural, mostra-se agora como resultado de uma estratégia consciente da burocracia para consolidar o país como potência. Esse projeto tem algumas sérias fragilidades, como a dependência do mercado externo, a dependência tecnológica e a ausência de grandes empresas chinesas capazes de concorrer no mercado global com as gigantes européias, japonesas e estadunidenses.
O total de investimentos da China no mundo é de apenas US$ 17,5 bilhões, vinte vezes menos do que o mundo investe na China. Entretanto, esse investimento vem crescendo, buscando áreas estratégicas, pouco exploradas ou abandonadas pelo imperialismo. É o caso das parcerias firmadas com vários países africanos para a exploração de minérios, e a compra de terras agricultáveis para fornecer alimentos para a imensa população chinesa. Recentemente chamou atenção também o acordo trienal com a Venezuela, que troca o fornecimento de 750.000 barris diários de petróleo por US$ 20 bilhões em projetos de desenvolvimento. A maior parte dos projetos se concentra em setores da própria exploração e distribuição de petróleo, gás, e minérios. Ao final do acordo, a China receberá os mesmos 1 milhão de barris diários hoje fornecidos aos Estados Unidos.
Para recolocar a China no centro do mundo, a burocracia estabeleceu um plano para reduzir sua dependência em relação ao dólar, que na verdade já está sendo colocado em andamento da forma mais discreta (tipicamente chinesa) possível. O governo chinês tem tentado diversificar suas reservas de ativos, adquirindo títulos de outros países, ouro, investimentos produtivos, etc. Esse processo já tem feito os Estados Unidos buscar formas de manter constantemente a China sob pressão, por meio de questões como o suporte chinês ao regime da Coréia do Norte, o incidente de conflito territorial com o Japão, a intenção permanente da burocracia chinesa de reintegrar Taiwan, a ocupação do Tibete, etc.
A rivalidade China-Estados Unidos se desenrola também num outro terreno, o das fontes de energia. A presença militar estadunidense no Oriente Médio e Ásia Central é uma ameaça ao futuro econômico não apenas da China, mas também da Europa e do Japão. Neste terreno, a Rússia pode vir a desempenhar um importante papel, pois o país é também um importante produtor e exportador de petróleo e gás natural, já sendo responsável pelo abastecimento da Europa e com crescente presença no mercado chinês. Um eventual bloco euro-russo-chinês seria o maior pesadelo dos estrategistas estadunidenses (que por enquanto ainda não precisam entrar em desespero, pois a formação desse bloco ainda não passa de uma hipótese distante, devido a sérias rivalidades e desacordos entre os seus componentes).
4.2) A situação da classe trabalhadora
A China ainda é um país de maioria rural. Essa imensa população ainda se organiza em aldeias e comunidades cuja estrutura remete a formas milenares de organização social, pré-capitalistas, que foram incorporadas pelo regime do PCC como forma de manter a população sob controle. A propriedade da terra é estatal, gerida pelos burocratas do governo, de uma forma tal que os trabalhadores precisam apresentar atestado de residência para ter direito a assistência a saúde ou qualquer direito social mínimo (na China os direitos são mesmo mínimos, não há nada que se compare nem de longe a um well-fare state, mas esses direitos limitadíssimos podem ser a diferença decisiva entre morrer de fome e doenças ou continuar vivo).
As cidades já enfrentam problemas para manter os trabalhadores migrantes que para lá se deslocaram nas últimas décadas, atraídos pelo chamariz de empregos que pagam salários miseráveis, mas mesmo assim maiores do que os rendimentos de suas famílias no campo, e que lhes permitem o acesso a alguns itens mínimos de consumo. O acréscimo repentino de centenas de milhões de camponeses subitamente deslocados do campo seria uma catástrofe social incontrolável, e por ter certa consciência disso a burocracia tem retardado o processo enquanto pode.
Os trabalhadores migrantes que de qualquer forma chegam às cidades são explorados num regime que remete às primeiras décadas da Revolução Industrial do século XVIII, com jornadas de 12 a 14 horas, regime de “camas quentes” (revezamento dos trabalhadores nos dormitórios, de modo que as máquinas nunca parem de funcionar), ausência quase total de direitos trabalhistas e sociais (sem a caderneta de residência, os trabalhadores migrantes não têm direito a qualquer forma de assistência social do Estado, e dependem dos próprios salários ou das empresas), autoritarismo extremo nos locais de trabalho, golpes dos patrões (fábricas que fecham e cujos donos desaparecem sem pagar os salários ou qualquer direito), proibição de organização sindical e política, etc.
Nessas condições, a resistência dos trabalhadores tem se manifestado em formas que vão desde as saídas individuais desesperadas (suicídio) até as formas de protesto “selvagens” (um diretor de empresa foi jogado pela janela do prédio por trabalhadores enfurecidos, provavelmente por não ter tido tempo de fugir com o dinheiro dos salários como seus colegas de classe), com greves espontâneas, motins, ocupação de empresas e prédios públicos, todos duramente reprimidos. Essas lutas incipientes da classe trabalhadora chinesa são o “efeito colateral” inesperado da restauração capitalista, com o qual a burocracia chinesa está tendo que lidar, um efeito que se intensificou brutalmente no auge da crise econômica e da queda das exportações.
A taxa de crescimento do PIB da China deu um salto de 7% para 12% entre 2000 e 2008, caindo para 9% em 2009. A capacidade utilizada caiu de 83% para 74%. A taxa de crescimento não pode descer abaixo de 9 a 10% ao ano, pois do contrário não se consegue gerar emprego para os 24 milhões de jovens e os 13 milhões de migrantes da zona rural que ingressam anualmente na população economicamente ativa. Os meses de maio e junho de 2010 foram marcados pela ocorrência de greves nas fábricas terceirizadas que montam produtos para as transnacionais estrangeiras (a mais famosa das quais é a Foxconn, que monta produtos eletrônicos para Dell, Apple, HP, etc.). O governo chinês não permite a existência de sindicatos, mas os trabalhadores se organizaram em comitês de base independentes, o que demonstra o surgimento de embriões de consciência de classe. Para se antecipar a uma explosão operária e pressionado pelo escândalo nacional provocado pelos 11 suicídios na Foxconn, o governo chinês foi forçado a fazer algumas concessões em termos de aumentos salariais. Os salários dos trabalhadores chineses já alcançaram US$ 400 mensais em várias cidades e ramos produtivos (contra médias de US$ 250 da Tailândia, US$ 200 da Indonésia, e US$ 100 das Filipinas e Vietnã).
Um relatório do Ministério de Recursos Humanos da China lançado em setembro de 2010 informou uma taxa de desemprego da população urbana de 4,3%, ou 9,2 milhões de trabalhadores. Esse número, que provavelmente está bastante forçado para baixo, inclui um total de 1,5 milhão de recém graduados nas universidades. O número de graduados aumentou de 1 milhão em 1998 para 6 milhões em 2010. Um total de 24 milhões de jovens ingressa na população economicamente ativa todos os anos. Destes, metade tem nível médio e um quarto tem nível superior. Um total de 114 milhões de trabalhadores têm nível médio ou superior na China, graças à urbanização dos últimos 20 anos. Essa população com conhecimentos técnicos recebe a baixíssima renda média de US$ 224 por mês, pouco mais elevada que a de um trabalhador rural. Nas greves de maio a junho na indústria automobilística e eletroeletrônica, os jovens jogaram um papel de peso.
A classe operária chinesa, como é tradicional nos países asiáticos, tinha contratos de trabalho vitalícios, aposentadorias, moradia e assistência médica garantida pelas empresas estatais, as únicas que existiam. Nos últimos trinta anos, 720 milhões de chineses emigraram para as cidade e se incorporaram à economia capitalista moderna. Esses milhões de novos trabalhadores não desfrutam de nenhum desses direitos: vivem em alojamentos precários e não recebem qualquer proteção social, assistência médica ou pensões, além daquela que eles mesmos puderem pagar ou pactuar com seus relutantes empregadores privados. A combinação de superexploração, trabalho extenuante, baixos salários e condições de vida precárias resulta em alta explosividade social.
Ao contrário da imagem tradicional, o povo chinês não é de forma alguma passivo. A combatividade é contida por uma feroz legislação repressiva e um monumental aparato policial. Em 2008 registraram-se 127 mil tumultos e protestos (contra 87 mil em 2005). Houve 467 invasões de prédios públicos, como prefeituras e órgãos ministeriais locais, 615 enfrentamentos com a polícia e 110 incêndios de barricadas e veículos. A sindicalização ou qualquer tipo de organização política independente é proibida e qualquer iniciativa nessa direção é duramente reprimida. As lutas operárias acontecem em grande quantidade, mas são atomizadas por fábrica, empresa ou bairro, não tendo condições de convergir para greves de toda uma categoria laboral ou setor produtivo, e muito menos para uma greve nacional ou greve geral. Mesmo assim, o governo é forçado a fazer concessões, lançando algumas regulamentações trabalhistas e salariais.
4.3) Limites do crescimento chinês
A restauração capitalista na China não advém de um processo endógeno de acumulação, mas do investimento do capital imperialista no país, em busca desesperada pelos altos índices de mais-valia absoluta (fruto da extensão da jornada) que o farto e barato proletariado chinês pode fornecer. A abertura do mercado de trabalho chinês foi pactuada entre a burocracia e o imperialismo, mas ficou de fora do pacote a concessão de direitos políticos para a nascente burguesia chinesa (como o imperialismo faz questão de lembrar constantemente, por meio de expedientes como a concessão do Prêmio Nobel da Paz a Liu Xiaobo, um intelectual dissidente atualmente preso, histórico ativista dos direitos humanos e veterano dos processos de Tianamen). A burocracia chinesa não se converteu em burguesia como na União Soviética, quando o aparato de segurança em decomposição (KGB) deu origem a máfias que operavam no mercado negro, o qual acabou se tornando oficial. Nesse mercado negro germinou uma lúmpen-burguesia que se apropriou criminosamente do patrimônio do antigo Estado burocrático soviético.
A burocracia chinesa procura a todo custo evitar um cenário de decomposição caótica como o do leste europeu. É evidente que, assim como na URSS em decomposição, a corrupção é endêmica em todos os setores do aparato do Estado, com destaque para o Exército, o qual é também proprietário de empresas. Mas a insatisfação social tem sido controlada por meio das promessas de prosperidade que a “economia de mercado” tem trazido para algumas parcelas da população. Essa nascente burguesia e pequena-burguesia não se queixa da ditadura do PCC e não exige eleições democráticas ao estilo do ocidente, desde que possa enriquecer em paz. Essa paz está ameaçada por alguns limites estruturais, que são os próprios limites do capitalismo chinês:
– A China não detém o domínio da tecnologia do setor de produção de bens de produção, o chamado departamento I da economia capitalista (elemento chave para que qualquer país capitalista possa passar de dominado a dominante), que inclui a pesquisa científica, a tecnologia de ponta, projeto e design de produtos, automação industrial, desenvolvimento de softwares, etc., embora esteja dando passos na direção de construí-lo.
– A China é cronicamente dependente de fontes de energia externas, em especial o petróleo, do qual já é um dos maiores consumidores mundiais e cujas importações seguem crescendo.
– A acelerada industrialização chinesa está produzindo um gigantesca bomba-relógio ambiental, na medida em que a poluição se acumula no ar, no solo e nas águas, sem qualquer controle, em nome do crescimento.
– A expansão do capitalismo na China resulta de um movimento do capitalismo global em busca de altas taxas de mais-valia absoluta, as quais são de certa forma uma espécie de “última fronteira” para o capital global. A formação da massa de mais-valia na China atualmente depende mais da mais-valia absoluta (extensão da jornada) do que da mais-valia relativa (aumento da produtividade), mas essa relação tende a se inverter, como acontece dentro de determinado prazo com toda economia capitalista, na medida em que aumenta a composição orgânica do capital (incorporação de novas tecnologias e meios de produção). Com isso, esses mesmos milhões de trabalhadores atraídos do campo para a cidade pelo “milagre chinês” vão ser jogados ao desemprego, com conseqüências sociais e políticas imprevisíveis.
– Os baixos salários dos trabalhadores chineses são o principal fator que atraiu as fábricas das transnacionais imperialistas para a China, lançando as bases para o seu crescimento, mas são ao mesmo tempo um limite para o crescimento do seu mercado interno. O consumo chinês é de US% 1,5 trilhão ao ano, comparado com US$ 22 trilhões da Europa e Estados Unidos, e se concentra em 10% da população das cidades litorâneas. A população da China excede em 300 milhões a dos países imperialistas somados, mas seu PIB é de apenas um quinto da soma deles. 535 milhões de chineses vivem com menos de dois dólares por dia, e destes, 135 milhões vivem com menos de um dólar. O desenvolvimento do mercado interno chinês, que poderia representar uma saída para a dependência das exportações, tem como limite os baixos salários dos trabalhadores, que não podem ser aumentados a ponto de lhes permitir consumir os bens que fabricam. Afinal, caso os salários aumentem mais do que seria tolerável para o capital imperialista, as fábricas podem ser montados em outros paraísos da superexploração onde os salários são ainda mais brutalmente baixos do que os da China, como o Vietnã, a Índia, etc.
As mais recentes plataformas de exportação, que emergiram disputando fatias do mercado mundial com base na superexploração de mão de obra barata, submetem essa mão de obra a condições de trabalho fisicamente insalubres e degradantes, o que resulta em alto número de acidentes e doenças relacionadas ao trabalho. O Vietnã é um dos países em que as condições de trabalho experimentam uma crescente deterioração, graças à adoção do “modelo chinês” pelo Partido Comunista do Vietnã. Apenas 2% dos 400.000 empreendimentos produtivos do país são de propriedade estatal, ficando o restante em mãos privadas, nacionais ou estrangeiras. Além de plataforma de exportação para grandes transnacionais, o país é um dos maiores exportadores mundiais de carvão e arroz. 80% da população trabalha no campo, onde o uso de agrotóxicos e o contato com dejetos industriais jogados na água os expõe a doenças cutâneas e respiratórias. Nas cidades, são comuns os acidentes na construção civil. Com o objetivo de baratear os custos, empreiteiras e terceirizadas empregam trabalhadores sem a proteção adequada. Apenas 3% das empresas notificam acidentes de trabalho ao órgão oficial de proteção, reportando uma média de 2,5 mil mortes por ano.
5) A burguesia européia ataca os trabalhadores e enfrenta resistência
5.1) O endividamento, o euro e as “medidas de austeridade”
Embora os Estados Unidos sejam o centro irradiador da crise, as suas reverberações mais agudas se concentram nesse momento sobre o continente europeu. A diferença entre os dois maiores centros do capitalismo está em que, entre outros aspectos, os Estados Unidos detém o monopólio da emissão do dólar, moeda de reserva mundial, privilégio que os países europeus não possuem. O caráter incompleto da unificação européia impede que a burguesia do continente possa tomar medidas com abrangência e impacto suficientes para administrar a crise. O fato de que os Estados nacionais detenham a autonomia sobre os seus orçamentos na prática impede que o banco central europeu imponha sua autoridade sobre a moeda comum, o euro, que por isso carece da estabilidade para concorrer com o dólar.
Os Estados europeus membros da eurozona desobedecem sistematicamente os limites de endividamento e déficit público estabelecidos como critério para participação na moeda comum, na medida em que cada governo nacional precisa preservar os interesses da sua respectiva burguesia nacional, ou seja, entregar dinheiro para salvar os negócios da sua fração da burguesia. Um conflito cada vez mais aberto se estabelece entre os Estados mais poderosos, em especial a Alemanha, e os mais fragilizados, como Portugal, Irlanda, Grécia e Espanha (“PIGS”, ou seja, porcos, na sigla em inglês), ou mesmo a Itália, em torno da necessidade de controlar o endividamento público. A Alemanha, que representa a fração mais concentrada do capital europeu, e já realizou “reformas” no seu mercado de trabalho (ou seja, retirou direitos dos seus trabalhadores) num grau ainda não efetuado por outros países europeus, está na liderança dos índices de crescimento do período pós-crise econômica (2,2% no primeiro semestre de 2010).
Entretanto, para consolidar a recuperação, o imperialismo alemão precisa forçar as frações menores do capital europeu a aceitar as perdas com a crise. Dentro da lógica do capital, os mais fracos devem sempre ser sacrificados em função dos mais fortes. Essa regra básica da concorrência vale tanto para empresas quanto para Estados. A pressão da tecnocracia da União Européia para que os governos do continente adotem medidas de austeridade na verdade emana do capital financeiro alemão.
O interesse em forçar os países menores da Eurozona e também os membros da União Européia no leste europeu (que não participam do euro) a honrar suas dívidas decorre do fato de que essas dívidas, na sua maioria, foram contraídas junto aos bancos dos países centrais, ou seja, da própria Alemanha e também da França e Inglaterra. Isso significa que os governos dos países mais fracos precisam atacar as condições de vida de suas populações para arrecadar o dinheiro necessário para salvar os bancos dos países mais ricos. Na prática, isso significaria uma anexação econômica completa da periferia européia pela Alemanha. Tratar-se-ia de completar, em regime de urgência, a unificação européia ainda não obtida totalmente por meio do lento processo político dos tratados diplomáticos e acordos de cúpula.
A artificialidade da construção européia se revela no momento em que os gestores do capitalismo europeu são forçados a agir com unidade para administrar a crise, sendo que tal unidade política ainda não foi obtida em grau suficiente para dar conta da tarefa. A rivalidade interimperialista e as rivalidades nacionais subsistem e voltam à tona, pois mesmo nos países menores as burguesias nacionais não aceitarão tal processo de anexação sem serem politicamente derrotadas, ou mesmo militarmente. No momento decisivo, ao invés de completar a unificação, a União Européia pode se fragmentar de vez.
No início de 2010, a crise do endividamento explodiu na Grécia, quando se tornou patente que o governo do país não seria capaz de pagar suas dívidas. A dívida da Grécia, de US$ 400 bilhões de dólares, equivale a quase metade da dívida do Brasil, com uma população 20 vezes menor. Imediatamente, foi armado um pacote de €$ 100 bilhões de euros para o governo grego, em maio. Entretanto, o tiro saiu pela culatra, pois o mercado identificou claramente que a fonte da crise estava nos bancos europeus, “contaminados” com títulos “tóxicos” de países extremamente endividados. As autoridades contábeis da União Européia realizaram uma rodada de teste com 91 bancos europeus para certificar o mercado de que o sistema financeiro do continente continua seguro, divulgando que apenas 7 bancos foram reprovados. Políticos festejaram o resultado, mas o próprio mercado se mostrou cético, custando a crer que somente 7 bancos estejam com problemas e que as quantias propostas para salvá-los (€$ 3,5 bilhões) sejam suficientes (a estimativa do mercado era de que seriam necessários de €$ 50 a €$ 100 bilhões). Além disso, aqueles que observaram os testes puderam perceber que os critérios foram extremamente rebaixados, os próprios bancos forneciam os números, várias áreas de negócios não foram cobertas, permitindo que recursos fossem transferidos de um fundo a outro, etc.
Para conter uma crise bancária e financeira ainda maior que a de 2008, a União Européia e o FMI acabaram tendo que desembolsar um pacote ainda maior, de €$ 750 bilhões em garantias para países ultra-endividados, em junho, o qual acalmou o mercado. Com ou sem a pressão da Alemanha, os demais países europeus, inclusive as demais potências imperialistas do continente, como Inglaterra (que não faz parte do euro) e França, também precisam lidar com seu próprio endividamento. A receita comum dos países europeus para administrar a crise mistura “keynesianismo para os ricos” (entrega de dinheiro do Estado para os bancos e grandes empresas) e “liberalismo para os pobres” (cortes nos gastos sociais, nos salários dos servidores, nas aposentadorias, retirada de direitos trabalhistas, etc.).
Tão logo saíram os pacotes de ajuda aos bancos, no intervalo de semanas, ou meses, a conta foi repassada aos trabalhadores. A partir de junho de 2010, os governos europeus anunciaram pacotes de redução de gastos, as chamadas “medidas de austeridade”, para recuperar o dinheiro gasto salvando os bancos: 100 bilhões de libras na Inglaterra, 42 bilhões de libras na Escócia, €$ 80 bilhões na Alemanha, €$ 75 bilhões na Rússia €$ 70 bilhões na França, €$ 25 bilhões na Itália, €$ 15 bilhões na Espanha, e assim por diante. Os pacotes incluem aumento de impostos sobre consumo (que agravam principalmente os mais pobres), aumento do tempo para aposentadoria, redução e congelamento dos salários dos servidores, cortes nos gastos públicos (saúde, educação, transportes, etc.), facilidades para demissões e redução das indenizações aos trabalhadores do setor privado, etc. Eslováquia, Bulgária, Dinamarca, Finlândia, Hungria, Irlanda, Romênia, Polônia, Rep. Tcheca; governados por partidos da direita clássica ou da velha “esquerda” social-democrata, todos anunciaram pacotes de bilhões de euros em cortes de gastos sociais e aumentos de impostos.
Os pacotes de salvamento da União Européia e do FMI para que a Grécia e a Irlanda rolassem suas dívidas em 2010 não foram suficientes para contentar os especuladores, que apontaram suas baterias para os próximos alvos, Portugal, Espanha e Itália. Esses países altamente endividados foram forçados a oferecer juros mais altos para rolar suas dívidas. Ao mesmo tempo, as grandes potências da zona do euro, Alemanha e França, voltaram a falar sobre um “Mecanismo Europeu de Estabilidade”, capaz de fazer empréstimos a países à beira da falência e exigir “ajustes estruturais” ao estilo dos que o FMI impõe aos países periféricos. A Grécia e a própria França já enfrentaram massiva resistência popular a esses ajustes em 2010.
França e Alemanha prepararam um plano chamado “Pacto de competitividade” a ser imposto aos 27 países da União Européia em março de 2011. O plano contém três eixos principais: aumentar a idade de aposentadoria para 67 anos, impor limites constitucionais aos gastos estatais (forçando governos a cortar gastos sociais) e derrubar a legislação que garante aumentos salariais automáticos de acordo com o índice de inflação, vigente em vários países. Essas medidas têm sido exigidas pelos bancos e foram apresentadas pelas duas grandes potências como condição para ampliar o fundo de apoio para governos altamente endividados.
No início de fevereiro o governo espanhol lançou um pacote de medidas aumentando a idade média para aposentadoria, diminuindo o valor das pensões e favorecendo a patronal nas negociações salariais coletivas. O acordo foi pactuado com a confederação patronal e as centrais sindicais burocráticas e deve passar no parlamento sem dificuldade, apesar da enorme insatisfação popular. A Espanha tem um índice de desemprego alarmante, sendo de 20% no geral e 40% entre a população com menos de 25 anos. O PIB do país caiu 3,7% em 2009 e 0,1% em 2010. O país também está altamente endividado e está sendo cotado como a “bola da vez” depois que os especuladores forçaram os governos da Grécia e da Irlanda a pedir socorro internacional para rolar suas dívidas.
5.2) Trabalhadores europeus reagem contra a crise
Evidentemente, nada disso foi combinado com o adversário, ou seja, a classe trabalhadora. Na medida em que os governos anunciam suas medidas, os trabalhadores se mobilizam. Na Ucrania, a “revolução laranja”, um golpe eleitoral que empossou um setor pró-estadunidense da burguesia (parte de uma série de manobras semelhantes em outros países da antiga URSS, como Georgia e Bielorússia), foi revertido com a volta ao poder do setor pró-russo nas eleições deste ano. A queda do PIB do país foi de 15% em 2009. Em junho, na Espanha, o governo do Partido Socialista Espanhol (PSOE) decretou um pacote de redução de gastos de €$ 15 bilhões, com redução de 5% nos salários do funcionalismo e congelamento em 2011, além de reduzir indenizações e facilitar demissões no setor privado. Imediatamente, foi decretada greve do serviço público, com grande adesão e massivas manifestações, seguida de uma forte greve dos ferroviários. Em julho, ocorreu a greve dos trabalhadores dos correios e motoristas de ônibus, na Inglaterra; e a greve dos eletricistas na Irlanda.
Greves gerais, greves de servidores públicos, manifestações de massa, ação direta, bloqueios de estradas, etc., se generalizam no continente. Conforme avança a conjuntura, o foco das atenções passa de um país para o outro. Depois da Grécia, que enfrentou seis greves gerais nos primeiros meses de 2010, foi a vez da Espanha, que convive com um índice de desemprego de 22%, o maior índice do bloco europeu, chegando a 40% para trabalhadores entre 18 e 24 anos, enfrentar uma forte greve geral em outubro. Também na França, em que o governo lançou um pacote que contém o aumento do tempo das aposentadorias, houve grandes manifestações em fins de setembro, quando a proposta foi à votação no parlamento, e greve dos trabalhadores das indústrias petrolíferas em meados de outubro, levando o país à beira de um colapso de abastecimento.
A magnitude das mobilizações fez com que a Europa, neste momento, se colocasse no centro da conjuntura da luta de classes mundial. O proletariado europeu é o depositário de séculos de lutas contra o capital, herdeiro de guerras, revoluções, revoltas, protestos, greves, piquetes que se levantaram por séculos em nome da emancipação da classe. Essas lutas se materializaram em conquistas sociais importantes, como os altos salários, o nível de emprego, a estabilidade, a duração da jornada, as férias, descansos e licenças, o seguro-desemprego, a assistência social, as aposentadorias, a saúde e a educação públicas, etc. Agora, com o agravamento da crise estrutural do capital, a burguesia tenta reverter essas conquistas históricas.
A resistência dos trabalhadores em face desses ataques torna-se cada vez mais massiva. Mas a retomada da tradição de luta do proletariado europeu enfrenta um sério obstáculo, a crise da alternativa socialista. Desde a queda da URSS e dos Estados do leste europeu, o socialismo foi alvo de uma violenta campanha política e ideológica de desmoralização, de tal sorte que a idéia de uma alternativa socialista ao capitalismo está ausente ou desacreditada na consciência da maioria dos trabalhadores. Sem um projeto alternativo de sociedade a ser apresentado em substituição ao capitalismo, a luta acaba se limitando a medidas defensivas que não rompem com a ordem estabelecida. O discurso dos trabalhadores em mobilização é tão somente contra a “injustiça” das medidas de austeridade, por meio das quais os governantes querem obrigá-los a pagar pelos “erros” dos especuladores. Esse discurso não se eleva ao nível da consciência de que não se trata de erros “acidentais” de gestores mal-intencionados e de injustiças eventuais, mas de uma lógica social capitalista que inevitavelmente produz crises. Essa lógica social não pode ser atenuada ou controlada por medidas parciais, nem muito menos “humanizada”, pois a alienação está na sua própria essência.
Não existe saída vitoriosa e definitiva para a luta dos trabalhadores europeus que não a ofensiva pela destruição do capitalismo. Portanto, é positivo que o proletariado europeu tenha se colocado em movimento, mas é preciso que no movimento e na luta em defesa das condições de vida seja forjada uma consciência socialista renovada. Um obstáculo político a ser superado para a reconstrução de uma consciência socialista de massa, além da própria ideologia burguesa que predomina no senso comum dos trabalhadores, é composto pelos partidos políticos e direções sindicais da antiga esquerda, de diversas tradições reformistas, social-democratas, stalinistas e ex-revolucionárias, todas hoje convertidas em instrumentos auxiliares da administração do capitalismo.
As burocracias sindicais e partidárias tem se colocado à frente das greves e mobilizações, muitas vezes convocando greves gerais e manifestações, mas apenas com o intuito de freá-las, enquanto buscam costurar saídas por dentro das instituições do regime. Entretanto, tais saídas são na verdade impossíveis, pois a pressão dos mercados financeiros sobre os Estados endividados é implacável. A política conciliadora das burocracias somente ajuda a burguesia a ganhar tempo para legitimar seus planos nos parlamentos apodrecidos. A saída passa portanto pela construção de organismos que rompam com as burocracias, organizem ações diretas e radicais, com bloqueios de estradas, piquetes e ocupações que ataquem a continuidade dos negócios da burguesia. Somente através da luta radicalizada, da independência de classe e da coesão ideológica em torno de uma alternativa socialista os trabalhadores podem adquirir consciência e confiança nas próprias forças e colocar em cheque o poder do capital.
6) Origens e desdobramentos da revolução democrática no norte da África e Oriente Médio
6.1) Relação entre o dólar e o petróleo e a necessidade do imperialismo controlar os países exportadores
O consumo mundial de petróleo está atualmente em 86,6 milhões de barris diários, sendo que cerca de 10% dessa quantidade provém da Arábia Saudita. 60% dessa produção acontece em campos com mais de 25 anos de exploração. A proporção entre o crescimento do consumo (cerca de 1 milhão de barris por dia a cada ano) e o descobrimento de novos campos é de 4 para 1, sendo que em média um campo demora 6 anos para entrar em produção plena. Para que a exploração dos novos campos compense os custos do investimento em prospecção, extração e transportes, o preço de venda não pode ficar abaixo de US$ 90 o barril. Para que se tenha uma idéia, antes da 1º guerra do golfo (1991), o preço do barril tinha baixado a US$ 10. (ALAI, 21-02-2011)
Uma das características do período de crise estrutural é a crescente financeirização da riqueza, que se manifesta também como perda de lastro da moeda. Em 1971 os Estados Unidos romperam a paridade dólar-ouro, o que significa que romperam com a obrigação de manter reservas em ouro capazes de sustentar o valor de sua moeda. Isso significa que o valor do dinheiro passou a ser puramente simbólico, sem relação com um valor material concretizado em alguma mercadoria. Pouco depois disso, em 1973, os países produtores de petróleo, agrupados na OPEP, aumentaram os preços do petróleo, provocando uma crise mundial. Uma das conseqüências dessa 1º crise do petróleo foi o acúmulo de uma grande quantidade de dólares pelos países exportadores de petróleo (chamados “petrodólares”).
Iniciou-se então uma verdadeira inundação de petrodólares no mercado financeiro mundial, que se transformou por exemplo em empréstimos para os países periféricos, que por sua vez, juntamente com a alta dos juros nos Estados Unidos, provocou a crise da dívida externa no início dos anos 1980. Essa inundação de petrodólares foi um dos primeiros impulsos para o crescimento da especulação a partir dos anos 1970.
Ao invés de enfraquecer o dólar, a crise dos anos 1970 provocou na verdade uma a consolidação de um outro padrão financeiro, em substituição ao dólar-ouro, que seria o “dólar-petróleo”. Os países da OPEP, os maiores fornecedores mundiais de petróleo, exigem pagamento em dólar para suas exportações. Assim, os países do mundo inteiro precisam ter reservas em dólar para poder comprar petróleo. A necessidade universal de acumular reservas em dólar por parte dos governos do mundo inteiro mantém o dólar no centro da estrutura financeira internacional.
Indiretamente, isso se tornou mais um motivo para que os Estados Unidos mantenham governos amigáveis no Oriente Médio. Além de manter o fornecimento de petróleo para sua própria economia, os Estados Unidos precisam garantir que os exportadores de petróleo continuem fazendo negócios em dólar. Se os países exportadores passassem a negociar em outras moedas, como por exemplo, o euro, isso seria um golpe fatal na hegemonia do dólar, e conseqüentemente, dos Estados Unidos. Daí a necessidade crucial de que os governos dos países árabes, maior parte dos exportadores, sejam pró-estadunidenses.
6.2) Nova alta do preço dos alimentos
Em 2008, o mundo produziu uma safra recorde de 2,23 bilhões de toneladas de grãos. Mesmo assim, os preços dos alimentos atingiram uma alta também recorde, resultando em protestos populares contra a carestia em mais de 30 países. Isso somente se explica pelo uso que os especuladores fizeram das commodities como alimentos, petróleo e minérios para se recuperar das perdas no mercado de hipotecas estadunidense, que já estava fazendo água desde fins de 2007. Especuladores aproveitam a abundância de liquidez nos mercados financeiros para comprar grandes quantidades de commodities, chantageando o mercado e lucrando com o aumento dos preços. Além disso, um terço da produção de grãos se destina a ração animal, que se transforma em carne para os países ricos, e uma fração crescente está sendo transformada em agrocombustíveis.
A maior parte dos países pobres na África, no sudeste asiático e na América Latina teve sua agricultura familiar destruída pelo agronegócio e se tornou importador de grãos. Os governos estão altamente endividados e não têm condições de subsidiar as importações, deixando os preços flutuarem ao sabor do mercado. Em muitos países pobres o custo dos alimentos chega a comprometer 50% da renda familiar ou mais. Enquanto milhões passam fome e são obrigados a lutar nas ruas contra seus governos por comida, outros lucram com a miséria e o sofrimento. A Cargill, uma das maiores transnacionais do agronegócio, viu seu lucro aumentar 300% entre 2009 e 2010, quando passou de US$ 489 milhões para 1,49 bilhão. O mesmo quadro de especulação financeira, aumento da produção e dos preços se repete agora.
A FAO, agência da ONU para alimentação e agricultura, alertou para o preço recorde dos alimentos no início de 2011, o qual superou as marcas de 2008. Naquele ano, os preços subiram a ponto de dobrar num intervalo de 18 meses. Depois da queda dos preços em 2009, os índices voltaram a subir novamente em 2010. Nos últimos doze meses, o preço do milho subiu 52%, o trigo subiu 49%, a soja 28%, o café 53% e o algodão 119%. Outras commodities também estão subindo, como o cobre (30%) e o petróleo (26,5%). O preço do petróleo, por sua vez influencia no preço final dos alimentos, uma vez que aumenta o custo dos transportes, dos fertilizantes e também, indiretamente, o dos agrocombustíveis. A FAO tem uma lista de 29 países em situação de emergência alimentar, ou seja, fome.
6.3) Situação política e social em alguns países africanos e árabes
A Jordânia tornou-se independente da Inglaterra em 1956, sob o governo do rei Hussein, sucedido em 1999 por seu filho Abdullah, componentes de uma dinastia chamada hachemita. Metade da população é composta de palestinos expulsos de sua terra natal por Israel, quadro semelhante ao do Líbano. Os habitantes de origem palestina são tratados como cidadãos de segunda categoria, sem acesso a cargos nas forças armadas e no Estado, e sem direito de organização política. Os grupos militantes palestinos foram massacrados pela monarquia em 1971, no que foi chamado de Setembro Negro. A Jordânia impediu assim o surgimento de um movimento como o Hizbollah libanês, colaborando explicitamente com Israel na repressão dos palestinos. Como a maior parte dos países árabes, a maioria da população jordaniana é jovem (70% tem menos de 30 anos) e enfrenta alto desemprego (o índice oficial é de 14%) e baixos salários. Na esteira dos protestos no norte da África, o povo jordaniano também tem se manifestado, forçando o rei Abdullah a substituir o primeiro-ministro, numa manobra distracionista para ganhar tempo.
O Iêmen, pequeno país da península arábica com 23 milhões de habitantes, não detém reservas de petróleo comparáveis às de seus vizinhos. Mesmo assim, possui grande importância estratégica, pois cerca de 3 milhões de barris de petróleo passam diariamente pelo estreito de Bab al-Mandab, no litoral iemenita, entre a península arábica e a Etiópia, em direção à Europa. O país é governado desde 1978 por Ali Abdullah Saleh, apoiado pelos Estados Unidos e responsável pela reunificação do país (a metade sul, onde havia um regime pró-soviético, foi anexada em 1990), e enfrenta um conflito contra tribos xiitas no norte. Metade da população sobrevive com menos de US$ 2 por dia, portanto abaixo da linha de pobreza. A taxa de desemprego é de 35%, o analfabetismo é de 50% e 65% da população tem menos de 24 anos. Seguindo seus irmãos do norte da África, a população iemenita também se mobilizou e organizou várias manifestações no início de fevereiro de 2011. Em resposta, o presidente Saleh seguiu os mesmos passos de seus malfadados colegas egípcio e tunisiano, primeiro prometendo que não vai prolongar o mandato, depois convocando a oposição tolerada a fazer parte do governo, como forma de aplacar a insatisfação popular por meio de medidas democráticas de fachada.
O Líbano foi vítima de uma invasão israelense em 2006, que terminou sem atingir sua finalidade, que era destruir o movimento Hizbollah, organização cuja base social se compõe de refugiados palestinos. Desde então o Hizbollah tem aumentado sua influência, a ponto de indicar ministros para o governo libanês formado em 2009. No início de 2011, o Hizbollah e seus aliados se retiraram da coalizão governante, despontando como maioria nas eleições seguintes e habilitando-se a indicar o chefe de governo da nova coalizão. Isso ameaça o delicado equilíbrio entre minorias cristãs e muçulmanas que mantém o governo libanês de pé desde o fim da guerra civil dos anos 1980.
O Sudão viveu em estado de guerra civil praticamente desde sua independência em 1956 até 2005, num conflito que opõe as facções governantes do norte e do sul do país e deixou mais de 2 milhões de mortos e 4 milhões de refugiados. No início de 2011, foi realizado um referendo em que a proposta de secessão do sul e criação de um novo país venceu por esmagadora maioria. Mas não foi o desejo popular pela paz que determinou a realização do referendo e sim o desejo dos Estados Unidos de criar um governo fantoche, o qual seria um instrumento para deter o crescente controle da China sobre recursos petrolíferos e minerais sudaneses.
O Zimbabwe, país do sudeste africano rico em diamantes, é governado desde 1980 por Robert Mugabe, que se mantém no poder fazendo concessões à elite local e ao imperialismo. O nível de vida da população tem caído drasticamente devido ao desemprego e à alta dos alimentos. A expectativa de vida é de apenas 47 anos, e 1,5 milhões de zimbabweanos emigraram para a África do Sul em busca de melhores condições. Desde 2008 o poder é partilhado com o oposicionista Tsvangirai, apoiado pelo imperialismo. Nos bastidores, Mugabe luta para conseguir uma rendosa aposentadoria, assegurando o controle do campo de diamantes de Marange, cuja prospecção revelou um potencial de valor muito maior do que os campos atualmente em exploração no país. Manter-se no controle do tráfico de diamantes seria sua condição para deixar o poder e evitar uma guerra civil com os apoiadores de Tsvangirai. O líder da oposição, originário da burocracia sindical, por sua vez, não está disposto a permitir que a insatisfação popular tome a forma de protestos e mobilizações espontâneas, sobre as quais não teria controle.
A Costa do Marfim passou por eleições presidenciais em novembro de 2010 e ambos os candidatos se declararam vencedores. O atual presidente Laurent Gbagbo, típico político africano autoritário e corrupto, apoiado pelas forças armadas, se recusa a deixar o poder e acusa seu oponente Alassane Ouattara de dividir o país em favor de uma crescente minoria muçulmana. Ouattara, ex-funcionário do FMI e ex-ministro identificado com reformas neoliberais, foi reconhecido pelo conjunto do imperialismo como vencedor das eleições, e conta com tropas da ONU, da França e de países africanos vizinhos para revindicar o poder. As negociações para um governo de coalizão não avançam, pois os exemplos de acordos semelhantes no Quenia e no Zimbabwe, em que a instabilidade continuou, se mostraram desfavoráveis para os negócios do imperialismo.
O impasse prossegue há meses e já tem havido choques entre facções rivais no interior do país, provocando algumas centenas de mortes e a migração de alguns milhares de refugiados. Uma greve geral foi convocada por Ouattara em fins de 2010, mas teve pouca adesão, já que ele conta com escasso apoio popular por estar identificado com as reformas de mercado. Uma guerra civil em 2004 quase dividiu o país e terminou com a intervenção de tropas francesas, ex-potência colonial. Juntamente com outros governantes africanos da região, que também disponibilizaram tropas, o imperialismo francês está pressionando Gbagbo a renunciar, ameaçando confiscar os bens de seu clã no exterior e negar-lhes visto para deixar o país. A Costa do Marfim é um dos maiores produtores mundiais de cacau e café, além de detentor de grandes reservas de minério e madeira, mas a maioria da população não se beneficia dessas riquezas (60% estão abaixo da linha de pobreza, a expectativa de vida é de apenas 59 anos).
A África do Sul, que tem sido listada entre os emergentes do mercado mundial, recebeu a Copa do Mundo em 2010, em plena celebração pelos 20 anos do fim do apartheid, no que foi apresentado como uma vitória da democracia. Entretanto, o fim do apartheid não trouxe melhoria significativa para os negros, que compõem a esmagadora maioria dos 70% de sul-africanos abaixo da linha de probreza e dos 40% desempregados. A única melhoria foi para um minúsculo setor de burocratas do CNA (Congresso Nacional Africano, o partido de Mandela), que se converteu em uma milionária burguesia negra, graças às políticas neoliberais aplicadas pelo partido. O país possui 40% das reservas mundiais de ouro. O presidente da África do Sul, Jacob Zuma visitou Pequim em agosto de 2010, juntamente com uma delegação de empresários, e assinou uma série de acordos com o governo chinês, referentes à exploração dos recursos minerais sul-africanos. Acordos desse tipo têm se tornado padrão no continente.
6.4) Relação entre a crise e a revolução democrática nos países árabes
A recessão e o desemprego na Europa fez com que vários países endurecessem as regras contra a imigração vinda do norte da África e de outros continentes. Nessas situações, os trabalhadores mais precários, em geral imigrantes, são os primeiros a serem demitidos e também enfrentam a hostilidade generalizada, o preconceito e a perseguição de bandos fascistas e neonazistas. A xenofobia se converte em política de Estado em países como a França e a Itália. Milhares de jovens que buscavam empregos permanentes ou temporários na Europa foram impedidos de entrar ou obrigados a voltar para seus países de origem. Assim como os nordestinos em São Paulo, muitos imigrantes africanos e de outros continentes estabelecidos na Europa mantém os laços com suas famílias nos países de origem, enviam dinheiro regularmente, retornam periodicamente, etc. Quando a porta do “sucesso” individual se fecha na Europa, a ação coletiva nos países natais é a única escolha que resta aos jovens.
A ação coletiva se manifestou finalmente como rebelião social na virada do ano. O mundo foi surpreendido no início de 2011 pelo que foi batizado de “Revolução de Jasmim” na Tunísia. Mas as tensões já vinham se acumulando no norte da África e Oriente Médio há meses. O Egito na verdade precedeu a Tunísia, pois os protestos ocupam a praça Tahrir, na capital Cairo, desde meados de 2010. A queda do presidente tunisiano deu ânimo aos povos de toda essa vasta região, e fez com que se lançassem às ruas. Protestos semelhantes se espalharam pelo Marrocos, Argélia, Jordânia, Iêmen e Bahrein. As lutas sociais também se reavivaram fortemente em países já tensos da região, como Irã, Iraque e Líbano. A mesma combinação explosiva de alto desemprego, inflação galopante, autoritarismo político, corrupção, servilismo aos Estados Unidos e populações predominantemente jovens se repete em todos esses países para explicar o levantamento popular.
A revolução democrática em processo por parte dos povos árabes deixou o imperialismo em estado de alerta, pois a economia capitalista mundial é cronicamente dependente do fornecimento de petróleo do Oriente Médio, o qual é garantido por governos pró-ocidentais, extremamente corruptos, autoritários e violentíssimos na repressão aos seus povos. Muitos desses ditadores governam há décadas e se sustentam no poder graças ao medo que seus aparatos de terror estatal inspiravam na população. Esse cenário agora começa a mudar. Muitos desses países passaram por tumultos e greves por ocasião da alta dos preços dos alimentos em 2008, antes da crise mundial. Agora, com uma nova alta dos preços, a continuidade do desemprego e da repressão, novos levantamentos começam a acontecer, configurando uma revolução democrática em alguns países. Mas dessa vez, em 2011, os povos árabes miram mais alto e exigem a saída dos odiados governantes, o que representa um salto em relação aos tumultos de 2008.
O primeiro foco de revolução democrática em processo por parte a chamar atenção foi o Maghreb, região do norte da África composta por Mauritânia, Marrocos, Sahara Ocidental, Tunísia, Argélia, e Líbia. Esses países são ocupados por povos de variadas composições étnicas, mas são unificados pela língua árabe e pela religião muçulmana. Todos partilham também um passado de ocupação imperialista, especialmente por parte de franceses e ingleses. Desde meados do século XX, esses países, como o restante do mundo colonial, se tornaram formalmente independentes, mas mantiveram-se submetidos à política imperialista, aos interesses das transnacionais das antigas metrópoles e ao imperativo de reprimir suas populações.
Em alguns deles, como o Egito, chegou-se a ensaiar um movimento nacionalista, sob a liderança de Gamal Abdel Nasser, militar que nacionalizou o canal de Suez, enfrentando o imperialismo anglo-francês, dentro do contexto do movimento dos chamados “países não-alinhados” (supostamente equidistantes em relação aos Estados Unidos e URSS). Entretanto, o nacionalismo árabe gradualmente se dobrou ao imperialismo. O sucessor de Nasser no Egito, Anwar Sadat, foi o primeiro governante árabe a assinar um tratado reconhecendo Israel. Sadat foi assassinado em 1981 e sucedido por Hosni Mubarak, que se manteve no poder até 2011. No final das contas, as ditaduras nacionalistas serviram apenas para reprimir a oposição de esquerda, virtualmente exterminada, e abrir caminho para os fundamentalistas islâmicos, a principal forma de oposição conhecida no mundo árabe. Entretanto, esse cenário está mudando, pois uma nova forma de oposição popular, operária e da juventude, onde a influência do fundamentalismo islâmico é minoritária, está emergindo das lutas recentes.
6.5) Tarefas da revolução democrática em curso
Está em curso um processo de revoluções democráticas com a queda de ditaduras de décadas sustentadas pelo imperialismo e ao mesmo tempo seus agentes na região.
1) Os elementos desse ciclo, com expressões mais ou menos avançadas de país para país, são:
– A queda brusca de ditaduras históricas a partir da ação direta e da organização das massas;
– Participação dos setores da classe trabalhadora no processo;
– A crise e divisão das forças armadas com a dificuldade para a repressão direta aos movimentos;
– A conquista de várias liberdades democráticas e de organização dos trabalhadores e das massas em geral;
– A transição mais ou menos rápida para regimes democrático-burgueses com a realização de eleições. Mesmo no caso do Egito, em que as forças armadas assumem o poder político através da junta militar, estão marcadas eleições para a constituição de um governo civil e para o parlamento.
2) Mesmo estando desprovido de uma consciência socialista e de direções revolucionárias, esse processo abre uma nova situação nesses países do Oriente Médio e Norte da África, com melhores condições para a luta e a organização dos trabalhadores, agora diretamente contra a burguesia e a dominação imperialista que tende a permanecer. Essa situação está ligada à eclosão da crise a partir de 2008.
Os problemas estruturais, contudo, não foram resolvidos. A partir de agora as lutas tendem a se travar entre os trabalhadores e a burguesia, com a polarização de classe tomando uma dimensão maior, que combinado às liberdades democráticas conquistadas tende a desenvolver um processo de organização da classe trabalhadora e seus organismos de luta, como sindicatos, etc.
No entanto, a caracterização de que se trata de revoluções democráticas ao mesmo tempo busca apontar os limites desse processo. Com a mudança para regimes democrático-burgueses combinada com a profunda crise de alternativas socialistas, tende a haver a divisão dos setores que protagonizaram essas revoluções democráticas, devido à capacidade da democracia burguesa de diluir, cooptar e se contrapor às necessidades de luta da classe trabalhadora contra a burguesia.
As tarefas democráticas, apesar de conquistadas em boa medida, não estão consolidadas e nem foram plenamente atingidas, assim como outras revoluções democráticas na América Latina, por exemplo. Assim, colocam-se as seguintes tarefas para o próximo período:
a)Consolidar e expandir ao máximo o processo de conquistas democráticas a partir da manutenção da mobilização das massas;
b)Avançar num processo de lutas e organização independentes da classe trabalhadora por suas demandas direcionadas contra a burguesia e o Estado burguês;
c) a necessidade de uma nova revolução, desta vez socialista, sustentada nos organismos da classe trabalhadora.
7) América Latina
Depois do Oriente Médio, as maiores reservas mundiais de petróleo se encontram na América Latina. Somente na Venezuela são estimados 500 bilhões de barris, fora os 100 bilhões localizados nas bacias que já estão em exploração (ALAI, 14/02/2011). Além do petróleo, a América Latina também é o maior produtor mundial de biocombustíveis, com o Brasil sozinho produzindo 45% do total mundial. Para além dos combustíveis tradicionais, o continente possui 80% das reservas mundialmente conhecidas de lítio, metal de altíssima importância, foco das atuais pesquisas em geração de energia nuclear por fusão.
O lítio, juntamente com o coltán (minério cujas maiores reservas estão na África, mas que também foi localizado na Venezuela), também possui a propriedade de armazenar energia, o que o torna fundamental para as indústrias que concentram a maior parte do desenvolvimento tecnológico atual e futuro, desde a fabricação de microchips até a de carros elétricos com baterias de longa duração.
As reservas de petróleo, minérios, biodiversidade, terras férteis e água doce da América Latina têm enorme importância estratégica. O acesso a tais reservas é uma questão vital para o imperialismo e deve se tornar ainda mais crucial na medida em que se tornar mais premente a necessidade da transição da matriz energética baseada em combustíveis fósseis para as fontes de energia alternativa. A América Latina possui tanto reservas de petróleo e biocombustíveis quanto potenciais de aproveitamento de fontes renováveis (solar, hidrelétrica, eólica, etc.), o que a tornará um alvo cada vez mais importante dos interesses imperialistas.
O ressurgimento na Europa das greves gerais, greves nacionais de categorias, grandes manifestações, greves com ações de massa e ações radicais como piquetes, ocupações de fábricas e bloqueios de estradas, recoloca em seus devidos patamares a discussão sobre as alternativas da classe trabalhadora. O início do despertar do proletariado europeu faz empalidecer o outrora festejado e colorido espectro de “alternativas” políticas latino-americanas, agrupadas em torno da referência do chavismo e seus congêneres nacionalistas burocráticos. A questão da independência de classe como fundamento para a construção de uma alternativa socialista revolucionária demonstra a sua importância crucial diante da falência das diversas vertentes da “esquerda” latino-americana agrupadas em torno do chamado “socialismo do século XXI”, que estão passando para o segundo plano da luta de classes mundial. A crise econômica pôs a nu a miséria política e ideológica do projeto bolivariano, quando Hugo Chávez apareceu em rede de TV para pedir aos venezuelanos que comprem “produtos socialistas” (chineses).
A incapacidade dos governos nacionalistas burocráticos de romper com o capitalismo faz com que não consigam avançar em melhorias nas condições de vida dos trabalhadores. As medidas assistencialistas esgotam seu limite e produzem a queda no respaldo e na popularidade de tais governantes. Nas eleições parlamentares de setembro Chávez não obteve a maioria que desejava para as mudanças constitucionais. Os partidos chavistas chegaram a 5,4 milhões de votos, ou 48%, contra 5,6 milhões (52%) dos partidos de oposição. Graças ao sistema de circunscrições eleitorais, o chavismo terá 98 cadeiras no parlamento, contra 67 da oposição, ainda uma grande maioria, mas insuficiente para mudanças constitucionais. Além disso, essa votação representa uma queda brutal em relação à média de 60 a 63% do eleitorado que apoiou Chávez e seus partidários nas 12 eleições e referendos desde sua primeira eleição em 1998. Esse resultado animou a direita, que volta a sonhar com as eleições presidenciais de 2012.
No Chile, a presidente “socialista” Michele Bachelet, que contava com os mesmos 80% de popularidade de Lula no Brasil, não conseguiu transferir seus votos para o candidato do Partido Socialista, entregando o cargo para o opositor da direita tradicional, Sebastian Piñera. Esses desenvolvimentos desmentem a tese de que é preciso apoiar os governos nacionalistas burocráticos para evitar a volta da direita, pois tais governos, ao não se enfrentar com o capital, são incapazes de trazer melhorias substanciais e duradouras nas condições de vida da população. Com a continuidade da exploração capitalista e da miséria da grande maioria da população, a oposição de direita tem um amplo terreno a explorar para readquirir base eleitoral.
Além das eleições, a direita latino-americana e o imperialismo estadunidense contam sempre com o recurso dos golpes de Estado, como o que foi executado em Honduras, cujo presidente, um burguês latifundiário, ameaçava aproximar-se do chavismo. O golpe foi tratado de maneira duplipensada pelo imperialismo, que emitiu as condenações formais de praxe, mas respaldou o novo governo surgido de eleições fraudulentas encenadas em plena vigência do regime golpista ilegal. O presidente deposto, como bom burguês, capitulou ao novo governo e a resistência popular hondurenha ficou desarmada no enfrentamento.
Os dirigentes nacionalistas burocráticos latino-americanos, mesmo os que surgiram e se respaldaram em impressionantes processos de luta e mobilização popular, têm como característica a capitulação à direita no momento dos enfrentamentos decisivos, como as tentativas de golpe, pois não podem avançar contra sua própria classe social. Não podem admitir o armamento dos trabalhadores para se defender da contra-revolução direitista e fascista, pois isso poderia permitir o surgimento de organismos operários de duplo poder capazes de fazer frente ao Estado burguês e ultrapassá-lo. A debilidade política das forças de esquerda do continente permite a reorganização da direita, que avança na Colômbia rumo ao esmagamento da insurgência das FARC, projetando a constituição de um Estado policial fascista pronto para reprimir as lutas dos trabalhadores por meio de forças legais e ilegais, como os para-militares.
A Colômbia é a principal cabeça-de-ponte dos Estados Unidos no continente, com a cessão de nada menos do que 7 bases militares para as forças armadas estadunidenses, que lá intervém sob o pretexto de “combater as drogas”. Enquanto o consumo de drogas permanece proibido, mas florescente em todo o mundo, as economias ilegais ligadas ao tráfico prosperam. A cocaína sobe de US$ 600 a tonelada nas zonas produtoras para US$ 25.000 no consumo. Essas áreas produtoras ocupam 200 mil hectares e empregam meio milhão de pessoas na Colômbia, Peru e Bolívia. Sob o pretexto de combate às drogas e à insurgência das FARC, o governo colombiano, os agentes militares estadunidenses e também os para-militares de extrema-direita sistematicamente matam lideranças populares, camponesas e sindicais que tentam organizar a população local.
A violência contra os trabalhadores produz o fenômeno dos refugiados, que se deslocam para os países vizinhos, como Equador e Venezuela, também pobres, onde encontram dificuldades para reconstruir suas vidas. Ao todo há 4 milhões de colombianos vivendo no Equador e na Venezuela como refugiados, em situação extremamente precária. A fumigação de áreas de plantio de coca com herbicidas tem arruinado a economia agrícola na Colômbia e também no Equador. O interesse dos Estados Unidos em derrotar os governos de Chávez na Venezuela e Correa no Equador tem levado os dois países à beira do confronto militar com a Colômbia. A ameaça de guerra também dá a Chávez e Correa, por sua vez, o pretexto para militarizar as zonas de fronteira com a Colômbia, reprimindo as populações locais e impedindo sua auto-organização para lutar contra a presença de transnacionais estrangeiras, em especial as mineradoras, petrolíferas e empreiteiras (inclusive brasileiras) no Equador.
Ao mesmo tempo em que não tem força para contestar os interesses do imperialismo, nem sequer de seus sócios da burguesia brasileira, ou nem mesmo a lúmpen-burguesia da droga, o nacionalismo burocrático exerce a repressão contra os trabalhadores, camponeses e povos originários nos seus países, impedindo-os de se organizarem autonomamente. E o que é pior, esse comportamento conta com o beneplácito da esquerda latino-americana, ainda seduzida pela retórica “radical” da “revolução bolivariana”. A confusão ideológica dos movimentos populares latino-americanos faz com que mantenham lealdade política para com dirigentes como os irmãos Castro (que estão restaurando o capitalismo em Cuba num estilo semelhante ao da China), ou o presidente equatoriano Rafael Correa, que durante todo seu mandato favoreceu as empresas de mineração e empreiteiras estrangeiras (inclusive brasileiras) contra as organizações indígenas amazônicas.
Por falar em Brasil, a gestão de Lula foi mundialmente reconhecida pela burguesia como modelo de sucesso pelo seu tratamento da crise econômica, mas também por todo um mandato exemplar em termos de amortecimento dos conflitos sociais. Ao desviar uma parte ínfima da renda do Estado para programas assistencialistas, Lula construiu uma base eleitoral sólida para si e seu partido, que pode durar por décadas no poder. Ao mesmo tempo, não descuidou de cevar os setores mais importantes da burguesia nacional e internacional, como o capital financeiro (a dívida pública brasileira já passa de R$ 1,8 trilhão), os bancos, o agronegócio, as montadoras e empreiteiras.
Tendo essas prioridades no orçamento, o governo Lula precisa sucatear os serviços públicos, o que implica em reduzir os gastos de pessoal, principalmente dos funcionários das estatais, o que por sua vez exige cooptar a burocracia sindical para impedir qualquer mobilização independente desses setores. A CUT foi praticamente integrada ao aparelho do Estado e desenvolve uma política de franca traição de classe, colaboração com a burguesia, implementação de ataques e acordos rebaixados contra os trabalhadores e contenção de suas lutas por meio do controle institucional do aparato dos sindicatos. Esse mesmo procedimento de cooptação e contenção das lutas é usado com os demais movimentos sociais, como os movimentos de sem terras, sem tetos, estudantes, movimento negro, e outros, antes combativos, hoje convertidas em correias de transmissão do PT, em ONGs, etc.
Um crescimento econômico artificial impulsionado pela explosão do crédito e do endividamento dos trabalhadores foi a receita da “estabilidade” econômica da era Lula, que deve ainda ter fôlego para prosseguir ao longo do mandato de Dilma Roussef. Esse sucesso, do ponto de vista da burguesia, deu a Lula projeção internacional, sacramentada pela escolha do Brasil para sede da Copa do Mundo em 2014 e 2016, o que deve manter os holofotes no país por mais alguns anos. A projeção de Lula é importante para conter as veleidades esquerdistas de outros líderes latino-americanos, que passam a tê-lo como modelo e girar politicamente para a direita sem nenhum peso na consciência. Uma última palavra em relação ao “sucesso” do governo Lula: a taxa de desemprego de cerca de 9% que é festejada como baixa no Brasil é considerada catastrófica nos Estados Unidos, estando inclusive no centro do debate das eleições parlamentares que acontecerão em novembro.
8) Principais eixos políticos
A crise mundial iniciada em 2008 ainda não está superada no plano da economia. Há sinais de recuperação da produção e do comércio nos Estados Unidos e na Europa, mas que ainda não chegaram aos níveis pré-crise. Além disso, a crise que estamos atravessando não é apenas uma crise econômica, mas uma crise societal, ou seja, uma crise do modo de produção social em suas várias esferas. Os impactos sociais, políticos e culturais da crise econômica são por demais severos para que se possa dizer que o mundo retornou à “normalidade” pré-crise. Seguiremos convivendo com esses impactos no próximo período.
A crise atual já produziu suas “argentinas”, ou seja, países fortemente afetados em que, como no vizinho platino em 2001, o grau de insatisfação social chegou ao ponto de colocar milhões de pessoas nas ruas para derrubar os governos. A diferença é que, desta vez, os povos se levantam contra governos muito mais duros, ditaduras que já duravam décadas, que pareciam sólidas e inquestionáveis, em países com uma importância estratégica maior para o imperialismo do que os da América do Sul.
Além disso, no próprio coração do imperialismo, o ataque às condições de vida dos trabalhadores, necessário para que os governos possam recompor os orçamentos dilacerados pelo salvamento da burguesia, colocou esses trabalhadores nas ruas também nos países centrais. A Europa já enfrentou greves gerais na França, Espanha e Portugal, mobilizações em diversos países, e um estado quase permanente de enfrentamento na Grécia, em que quase dez greves gerais fortíssimas se sucederam desde meados de 2010. Agora, a classe trabalhadora começa a se mover até mesmo nos Estados Unidos, que há décadas, desde o início do governo Reagan, não assistiam a processos de mobilização tão grandes como o que está acontecendo nos estados de Wisconsin, Minnesota, Ohio, Indiana e Pensilvania, com marchas de mais de dezenas de milhares de servidores, apoiados pela população.
Assim, por mais que os lucros da burguesia tenham retornado, e que aos poucos, nos próximos anos, se reinicie um novo ciclo de crescimento, o que ainda não está claramente colocado, as conseqüências da crise continuarão provocando um acirramento da luta de classes, com dificuldades políticas enormes para a burguesia seguir administrando a crise estrutural. O mundo já não é o mesmo depois do retorno das lutas sociais nos países imperialistas e da colossal revolução democrática em processo por parte dos povos árabes. Houve uma mudança de qualidade importante, o retorno das mobilizações de massa dos povos e da classe trabalhadora, que derrubam governos e chegam a fazer tremer as estruturas do regime burguês em vários países.
8.1) Rivalidades interimperialistas, guerras, invasões, golpes de Estado, militarização
A necessidade de cada governo nacional de salvar os negócios da sua burguesia leva ao agravamento das rivalidades e tensões políticas, que em última instância só se resolvem pela guerra. As guerras entre Estados imperialistas não estão totalmente descartadas, mas o mais provável é a ocorrência de guerras, invasões e intervenções do imperialismo contra países periféricos. O imperialismo, em especial o estadunidense, que responde sozinho por metade dos gastos militares do planeta e concentra um poder de destruição apocalíptico, se arvora no direito de fiscalizar o poder militar de outros países, e de intervir militarmente para defender os interesses das suas corporações, em nome da “democracia”, da “civilização”, da “paz”. É preciso denunciar e combater as invasões imperialistas em qualquer território, sob os pretextos de “guerra ao terror”, “guerra às drogas”, intervenções “humanitárias”, missões “de paz”, contra a “proliferação nuclear” e as “armas de destruição em massa”, etc. A luta contra as intervenções militares imperialistas e a solidariedade à resistência dos povos não significa por sua vez deixar de se diferenciar politicamente das forças de resistência de tipo terrorista, fundamentalista, nacionalista-burguês, nem deixar de lutar pela perspectiva da auto-defesa e auto-organização dos trabalhadores rumo à tomada do poder.
– Direito à auto-determinação dos povos. Que os povos de cada país sejam livres para decidir seu destino, sem a interferência de outros Estados!
– Fora todas as tropas de ocupação imperialista ou a seu serviço em qualquer território. Retirada dos Estados Unidos do Iraque e do Afeganistão. Contra os bombardeios no Paquistão e contra a invasão do Irã! Fora Israel de Gaza e da Cisjordânia. Destruição do muro que isola os povos palestinos. Fora tropas de ocupação, inclusive do Brasil, do Haiti e do Líbano. Retirada de todas as bases militares estrangeiras. Retirada das bases militares estadunidenses de todos os países. Retirada das bases da OTAN do leste europeu. Expulsão dos agentes de espionagem e de contra-informação imperialistas e burgueses.
– Defesa da soberania dos países, considerados pelos EUA como “Eixo do Mal” (Irã, Coréia do Norte e Cuba). Contra qualquer sanção, retaliação ou invasão a esses países, o que não significa o apoio às direções políticas desses países.
– Contra as tentativas de golpe, mudança de regime e subversão patrocinadas pelo imperialismo em qualquer país!
– Todos os povos têm o direito de defender seu território. Nenhum povo pode ser obrigado a se desarmar enquanto as potências imperialistas dispuserem de arsenais nucleares e de destruição de massa e de sistemas de espionagem e contra-informação imperialistas e burgueses.
– Desarmamento de todas as potências nucleares. Desmantelamento dos arsenais de armas de destruição em massa. Desmantelamento das armas nucleares, das armas químicas e bacteriológicas. Desmantelamento dos sistemas de espionagem e contra-informação.
– Punição a todos os criminosos de guerra em tribunais internacionais dos trabalhadores, independentemente do país de origem. Fim da tortura e punição para todos os seus praticantes.
– Dissolução do Estado de Israel. Por um Estado laico, democrático e que congregue o proletariado multi-étnico no território da Palestina. Por uma confederação socialista do Oriente Médio.
– Soberania inviolável de todas as nações. Cada povo é senhor de seu território e das riquezas correspondentes e tem o direito de dispor sobre elas como melhor atender suas necessidades. Solidariedade aos povos dos países com recursos escassos.
8.2) Repressão e criminalização dos movimentos sociais
Além da guerra externa contra outros Estados visando a espoliação de suas riquezas, o Estado capitalista em crise tende a intensificar também as medidas de “guerra interna” contra os trabalhadores. Recrudesce a repressão policial e judicial, as leis anti-sindicais, leis contra os piquetes de greve, interditos proibitórios, reintegrações de posse contra as ocupações, perseguição judicial e administrativa contra os militantes e ativistas, a restrição aos direitos democráticos, a criminalização dos movimentos sociais, a criminalização da pobreza, o crescimento do aparato policial e repressivo, a espionagem telefônica e eletrônica, a monitoração dos espaços públicos por circuitos de TV, monitoração via satélite, etc. Quando esse golpe de Estado “silencioso” ou a “conta-gotas” se mostra insuficiente, a burguesia pode apelar para os golpes de Estado propriamente ditos, como atestam os casos de Honduras e Equador.
– Em defesa dos direitos democráticos dos trabalhadores! Pelo direito de ir e vir, liberdade de reunião e de organização, liberdade de expressão, pelo direito de recorrer à justiça, direito ao habeas corpus.
– Pelo direito de greve, pela liberdade de organização sindical independente da tutela do Estado, pela estabilidade, inviolabilidade e inamovibilidade dos dirigentes sindicais!
– Pelo direito à manifestação!
– Contra a criminalização dos movimentos sociais, contra as punições judiciais e administrativas aos militantes e ativistas.
– Contra a criminalização da pobreza, contra a violência policial, contra a opressão carcerária! Punição para o abuso de autoridade, para a tortura e a corrupção policial!
8.3) Fascistização social, neonazismo, racismo, xenofobia, homofobia, reorganização da ultra-direita
Além das medidas estatais de guerra contra os trabalhadores, a burguesia conta ainda com os movimentos de extrema-direita, as diversas ideologias fascistas, neonazistas, rascistas, anti-islâmicas, “anti-pobres”, cujos seguidores se atiram contra os imigrantes, os pobres, os negros, os africanos, asiáticos, latino-americanos, as minorias étnicas, religiosas, lingüísticas, os homossexuais, militantes, etc. O órgão da ONU para migrações calcula em 200 milhões o número de trabalhadores vivendo fora de seus países. 5 milhões o fizeram em razão de conflitos políticos, guerras e ameaças de genocídio. Por isso coloca-se na ordem do dia a defesa dos direitos democráticos, a reconstrução da solidariedade de classe e do internacionalismo proletário, pela unidade da classe contra a reação fascista da burguesia, pelo direito à livre locomoção da força do trabalho, pelos direitos dos imigrantes e pelo acesso aos direitos e serviços sociais para todos.
– Contra os movimentos fascistas e de extrema-direita, contra a xenofobia, o racismo e a homofobia, contra o fundamentalismo cristão, islâmico ou sionista!
– Solidariedade às lutas dos trabalhadores em todos os cenários onde elas são travadas, independentemente de qual seja o país, religião, etnia ou gênero dos envolvidos!
– Fim de qualquer perseguição em função de crenças religiosas, traços culturais, cor da pele, homossexualidade!
– Igualdade de direitos para homens e mulheres!
– Livre circulação dos trabalhadores pelas fronteiras de qualquer país. Fim da perseguição aos imigrantes, plena integração às sociedades onde vivem, direito ao trabalho, livre acesso a todos os serviços sociais.
– Fim da xenofobia e da perseguição dos imigrantes!
– Destruição imediata do muro levantado pelo imperialismo na fronteira dos EUA com o México, do Muro construído na Cisjordânia pelo Estado de Israel, e todos os muros de exclusão social e de dominação!
– Legalização de todos os imigrantes. Direitos e salários dos negros e imigrantes iguais aos dos demais trabalhadores!
– Fim do trabalho escravo e do tráfico de seres humanos! Fim do trabalho infantil!
– Fim da exploração sexual de mulheres e crianças! Fim da exploração sexual de transexuais, homossexuais e travestis!
8.4) Ataques aos direitos e conquistas sociais dos trabalhadores
As guerras, golpes de Estado, aumento da repressão e fascistização social são o recurso extremo da burguesia para impor seus interesses. O outro recurso são os instrumentos legais do Estado para legitimar uma gigantesca operação de confisco social. A necessidade do Estado burguês de arrecadar dinheiro para cobrir o endividamento deixado pelos pacotes de salvamento da burguesia financeira coloca na alça de mira os direitos e conquistas sociais da classe trabalhadora. A defesa dessas conquistas precisa avançar a ponto de ser capaz de derrotar os planos de austeridade aprovados nos parlamentos burgueses.
– Contra os ataques da burguesia aos direitos dos trabalhadores! Defesa dos empregos, dos salários, dos benefícios, das condições de trabalho, dos serviços públicos e das conquistas sociais dos trabalhadores do mundo inteiro!
– Contra as medidas de “austeridade” dos governos capitalistas, os cortes nos gastos sociais, aumentos de impostos e reformas da legislação trabalhista!
– Regulamentação dos direitos trabalhistas para todos os trabalhadores do mundo: duração da jornada, condições de trabalho, salário mínimo, que garantam as necessidades básicas de vida digna ao trabalhador!
– Redução da jornada de trabalho sem redução de salário, para garantir o pleno emprego!
– Não ao confisco das propriedades dos trabalhadores e da classe média. Anulação das dívidas dos trabalhadores e da classe média com os bancos!
8.5) Especulação, endividamento e divisão mundial do trabalho
Os pacotes de salvamento revelam a identidade do Estado como engrenagem do capitalismo a serviço da burguesia, com a função de privatizar os lucros e socializar os prejuízos. Os pacotes de salvamento das instituições financeiras na crise atual são um clássico exemplo desse processo. Essas operações deixam como rastro dívidas públicas gigantescas, que tornam os Estados nacionais presas fáceis de operações especulativas, que exigem juros cada vez mais elevados pela aquisição de seus títulos, que se tornam assim cada vez mais impagáveis. Essas dívidas servem ainda como pretexto para atacar as condições de vida dos trabalhadores. Os países centrais impõem sobre os periféricos o pagamento de dívidas fraudulentas, com o agravante de juros abusivos e outras formas de extorsão.
– Pelo não pagamento das dívidas fraudulentas aos especuladores burgueses!
– Pela estatização e socialização do sistema financeiro, sob controle dos trabalhadores!
– Pelo não pagamento das dívidas externas e internas, contra a servidão dos povos e dos trabalhadores ao capital financeiro. Os países imperialistas devem reparar os países colonizados e oprimidos pelos anos de saque de suas riquezas naturais e exploração de suas populações. Indenização aos países africanos pelos anos de escravização dos negros, sem perder de vista a perspectiva da revolução socialista.
8.6) O poder das empresas transnacionais
Um dos aspectos centrais da mundialização do capital é a formação de grandes monopólios, empresas transnacionais com riqueza e poder superior aos próprios Estados nacionais, capazes de impor seus interesses sobre as populações, o meio ambiente, a cultura de países inteiros, com a conivência de governos periféricos corruptos.
– Controle de cada país sobre os empreendimentos estrangeiros em seu território. Fim da remessa de lucros!
– Reparações pelos Estados Unidos e demais países imperialistas aos países vítimas de crimes de guerra, prática de tortura, abusos das transnacionais, crimes ambientais, crimes contra a saúde pública, etc. , sem perder de vista a perspectiva da revolução socialista
– Revogação de todos os paraísos fiscais, pois executam a lavagem de dinheiro da máfia, da sonegação fiscal e da corrupção. Que todo o dinheiro depositado em contas secretas seja revertido para os países de origem sob controle dos trabalhadores.
– Estatização sob controle dos trabalhadores sem indenização, punições, multas e expropriação das transnacionais de qualquer procedência que violarem a legislação de cada país, suas normas trabalhistas, ambientais, fiscais, etc.
8.7) Os danos da crise societal
As corporações transnacionais são as maiores responsáveis pela destruição do meio ambiente planetário, pela poluição, a desertificação, a fome, as doenças, etc. A luta contra o capitalismo é uma luta pela própria sobrevivência da humanidade e contra a destruição do planeta. O socialismo é a única alternativa contra a barbárie, e precisa não só reverter os processos de destruição em curso, mas estabelecer em seu lugar novas formas racionais de produção e consumo, e fundamentalmente, novas relações humanas.
– Estabelecimento de metas de redução da poluição do ar, da água e do solo, de reciclagem do lixo, de produção orgânica e ambientalmente sustentável, com expropriações a todas as empresas que as descumprirem, com punição dos responsáveis.
– Pelo uso racional dos recursos naturais, isto é, de acordo com as necessidades humanas, como no caso do petróleo e da água.
– Contra o uso de sementes transgênicas, agrotóxicos, pesticidas, hormônios, pecuária intensiva e outras formas predatórias de produção de alimentos. Por uma agricultura coletiva, orgânica e ecológica a serviço das necessidades dos trabalhadores.
– Pelo direito a soberania alimentar de todos os povos, pelo direito às sementes, à terra e às fontes de água potável. Contra a privatização das sementes, fontes de água, florestas e recursos naturais.
– Em defesa da biodiversidade, contra a destruição das florestas, dos manguezais, dos corais, zonas pesqueiras, e outros ecossistemas ameaçados.
– Pela redução do uso de combustíveis fósseis, pelo incentivo às fontes alternativas de energia renovável. Prioridade para o transporte coletivo em ônibus, metrôs e trens, em lugar das obras viárias voltadas para o transporte individual.
– Quebra das patentes de medicamentos que tratam as doenças que afetam a maioria da população e distribuição gratuita, liberação das pesquisas com células-tronco, contra as patentes de seqüências de DNA humano ou de outras espécies.
– Contra o ensino do criacionismo nas escolas públicas, pela livre difusão do conhecimento científico, contra os preconceitos de ordem moral e religiosa.
– Direito de cada nação de preservar sua cultura por meio da limitação de entrada, sob controle dos trabalhadores, de produtos culturais estrangeiros. Subsídios para a cultura local, defesa da língua, da literatura e da tradição de seu próprio povo.
8.8) A organização política dos trabalhadores
Na conferência passada dissemos que não se tratava de uma simples crise econômica, mas que abrangia uma crise de dominação, social, ambiental, uma crise societal.
Houve mudanças na realidade? Os elementos de crise abrangente permaneceram, apesar de que a crise econômica foi contida, nos marcos da crise estrutural do capital, sendo que suas causas não foram resolvidas pelas medidas paliativas impulsionadas pelo conjunto dos governos e capitalistas.
A caracterização que chegamos a discutir de que poderia ter se aberto uma situação revolucionária e a dinâmica de que a crise econômica iria à depressão, mostrou-se totalmente equivocada. E isto teve conseqüências nos ritmos da política, na clarificação das tarefas e na construção da organização e do movimento.
A questão fundamental, que apesar de estar presente, não foi devidamente considerada, e que determina a realidade mundial, é a contradição entre os elementos objetivos e subjetivos, materializada na crise de alternativa. A utilização mecânica e simplista de analogias com a crise de 29 levou a considerar que surgiria um ascenso revolucionário (o que não ocorreu), menosprezando a profunda crise de alternativa, que não é só ideológica (socialista), mas mais profunda e implica na reconstrução da consciência da classe em si e de suas organizações.
A falta de resposta do proletariado permitiu que a situação se estabilizasse, no marco de que a tendência à instabilidade confirmou-se nas lutas que começaram a espocar e no surgimento de movimentos/ações da ultra-direita.
No início deste ano, surgiu um elemento novo. As mobilizações contra as ditaduras no norte da África/Oriente Médio representam um salto de qualidade na disposição de luta das massas, que alterou toda a situação política na região, com repercussões mundiais.
Apesar do elemento que faltava, a disposição revolucionária das massas, começar a surgir, a crise de alternativa ainda se impõe, fazendo com que no próximo período não se resolva o problema subjetivo, que não é simplesmente da direção revolucionária, mas também da consciência do proletariado e seus organismo de luta e poder.
Mas houve uma mudança. Esta mudança significa que se abriram condições para maiores lutas da classe trabalhadora, com maior nível de organização de base e independência frente ao Estado e às direções burocráticas, e consequentemente melhores condições de que os trabalhadores e ativistas ouçam, sejam atraídos e se envolvam nas idéias, propostas e na construção de organizações revolucionárias que consigam ser parte impulsionadora desses processos.
Diante destes acontecimentos, haverá mudanças em toda a esquerda mundial, provocando crises e realinhamentos. Neste sentido, é fundamental acompanhar a situação internacional, tanto para tirarmos lições, como também para estar atentos à possibilidade de aproximação com outras organizações.
As lutas dos trabalhadores contra o capitalismo em crise precisam passar da defensiva para a ofensiva. Os planos dos governos capitalistas precisam ser derrotados e revertidos pela ação organizada da classe trabalhadora. É preciso romper com os limites políticos e os obstáculos organizativos das atuais direções reformistas e burocráticas dos partidos e sindicatos. A luta em defesa das condições de vida e contra os ataques da burguesia precisa se desenvolver em direção a uma alternativa de poder dos trabalhadores, que apresente um projeto socialista de reorganização da vida social, contra a barbárie capitalista.
– Formação de uma Organização Internacional dos Trabalhadores, estruturando-se a partir das lutas concretas do proletariado em cada país. Que essa Organização Internacional seja armada de um programa de ruptura do capitalismo e de construção da revolução socialista mundial.
– Por um poder socialista dos trabalhadores. Por uma Sociedade Socialista Internacional.