O trabalho escravo no Brasil: a acumulação para a metrópole e a resistência dos trabalhadores negros
17 de novembro de 2010
O objetivo desse texto é abordar brevemente duas questões relativas ao trabalho escravo empregado no que hoje chamamos de Brasil: a utilização majoritária da renda auferida com o sistema escravista ( venda de escravos, produção desse trabalho compulsório) para a acumulação na Europa – portanto, não se destinava a formação de uma burguesia interna; e a relação subjetiva do trabalhador escravo negro com a escravidão.
Partimos da compreensão de que a escravidão por aqui era parte do que o marxismo chama de acumulação primitiva do capital, ou seja, a produção derivada do trabalho escravo não era destinada ao mercado interno, mas ao mercado europeu, servia a acumulação para a metrópole. A combinação de venda de escravos, trabalho escravo e produção voltada para a exportação formam os elementos essenciais desse processo de acumulação.
A acumulação com o lucro resultante do comércio de escravos era fabulosa, constituindo-se como uma atividade econômica das mais lucrativas. Para se ter uma idéia o escravo negro era um dos principais produtos de importação do Brasil no final século XVIII: "O ramo mais importante do comércio de importação é, contudo, o tráfico de escravos que nos vinham da costa de África: representa ele mais de uma quarta parte do valor total da importação, ou seja, no período 1796-1804, acima de 10.000.000 de cruzados, quando o resto não alcançava 30.000.000". Prado Júnior (História econômica do Brasil, p.116). Ainda segundo caio Prado Júnior, no final do século XVIII e início do XIX, o total de escravos que desembarcavam por aqui era cerca de 40.000 por ano. Dá para se ter idéia do potencial do aumento do capital de comerciantes que se dedicavam ao tráfico negreiro.
Em relação às taxas de lucro do que se produz com a utilização do trabalho escravo dá para supor que eram elevadíssimas. O fato de os escravos serem submetidos às piores condições de trabalho e de subsistência faz com que o tempo do trabalho destinado à satisfação de suas necessidades (tempo de trabalho necessário) seja reduzido a um curto intervalo de tempo e consequentemente o tempo de trabalho excedente constitui quase a totalidade de sua jornada de trabalho que não raro ultrapassava 15 horas diárias, incluindo sábados, domingos e feriados.
Ao comércio de homens e mulheres como escravos e a utilização em larga escala do trabalho escravo agrega o fato de que a produção era de monocultura de matérias primas e que ela estava essencialmente voltada para a metrópole onde servia para a formação das fortunas. Ou seja, o que se produzia era voltado quase que exclusivamente para a exportação. Esse era o "sentido da colonização": "Se vamos à essência de nossa formação, veremos que na realidade nos constituímos para fornecer açúcar, tabaco, alguns outros gêneros; mais tarde ouro e diamante, depois, algodão e em seguida café, para o comércio europeu. Nada mais que isso" (Caio Prado, Formação do Brasil Contemporâneo: colônia. p. 31-32)
A expansão ultramarina, portanto, não era resultado do desejo da Nobreza, mas uma necessidade histórica que se colocava para responder às pressões econômicas do novo sistema social que surgia das cinzas da sociedade feudal. Assim, essa relação que a metrópole estabeleceu com a colônia portuguesa foi fundamental para a consolidação da acumulação primitiva do capital e foi a que deu bases para o financiamento do capitalismo industrial nos séculos seguintes no continente europeu.
O processo de acumulação do capital (assim como em outras de suas fases) ocorre em base a uma super exploração do trabalho, mas esse processo não aconteceu sem resistência por parte dos trabalhadores negros escravizados. Historiadores apontam várias formas de resistência, entre elas a que ficou mais conhecida pela complexidade de sua organização econômica e social, os quilombos.
Há, no entanto, historiadores que minimizam o processo de resistência apontando que sequer a relação entre senhores escravocratas e escravos era negociada e, portanto livre de violência. E mesmo quando havia alguma forma de violência essa era considerada como justa pelos próprios escravos, ou seja, os castigos eram como lições pedagógicas. Uma das conclusões que podemos tirar dessas concepções historiográficas (reconheço que há diferenças entre eles) é que há uma acomodação e aceitação por parte do escravo de sua condição, ou seja, um escravo dócil porque tem um senhor generoso. Prevalece nessa tese a coexistência pacífica entre ambos.
De acordo com essa concepção, por parte do escravo havia uma consensualidade na escravidão, um acordo entre escravos e escravocratas. Esse consenso fazia com que o escravo pudesse se sentir não como instrumento, como coisa, mas como ser humano que se deixa levar pela passividade e aceita os desígnios de ser submetido à escravidão.
O absurdo da tese consensualista está no fato de que entre o homem que escraviza e o escravizado há uma relação contratual, com direitos e garantias para as duas partes. E como sabemos uma relação contratual só pode ocorrer entre homens livres, o que de fato desmonta a tese do consenso. O uso do chicote para impor a vontade do escravocrata é outro elemento que desmonta a tese de que havia qualquer forma de consenso entre senhores e escravos.
Penso ser impossível, pelas necessidades da acumulação primitiva do capital, qualquer relação de consensualidade ou mesmo de "pacto social" entre escravos e escravocratas. A violência (em todas as suas formas) ao extremo é a explicação plausível para entendermos como um sistema de apropriação de trabalho alheio tão cruel tenha durado tanto tempo. "Para explicar o caráter repressivo e violento das relações escravistas de produção é necessário compreender que o escravismo é um sistema de produção de mais-valia absoluta, sistema esse no qual a mercadoria aparece imediata e explicitamente como produto da força de trabalho alienada. Aliás, o escravo é duplamente alienado, como pessoa, enquanto propriedade do senhor, e em sua força de trabalho, faculdade sobre a qual não pode ter comando. O escravo é obrigado a produzir muito além do que recebe para viver e reproduzir-se; e não dispõe de condições para negociar, nem o uso da sua força de trabalho, nem a si mesmo. Esse é o fundamento do caráter repressivo e violento do escravismo" Octávio Ianni.
Para Gorender, o que havia era uma adaptação, que não quer dizer passividade. No processo de resistência (que se manifestava em diversos aspectos da vida social) a "adaptação para seguir sobrevivendo" tornava-se uma forma de resistência. Mesmo que tenham nascido e morrido na condição de escravos isso não quer dizer que tenham aceitado tal condição. Essa resistência, por exemplo, podia se manifestar no relaxamento no trabalho, trato danoso para com os animais das fazendas, a sabotagem, etc. Para esse autor, a resistência era parte ativa do cotidiano dos escravos. Essa forma de resistência não se tratava exatamente de uma escolha, mas o que em muitos casos era o possível diante das condições objetivas impostas, uma vez que a elite colonial brasileira impunha aos escravos uma severa repressão a toda forma de rebelião. Assim, a adaptação não era uma acomodação, mas uma forma de resistência possível.
Destaco essa forma de resistência para ressaltar que a luta dos escravos contra a sua condição era permanente e cotidiana. Mas também merecem destaque todas as formas de resistência, em especial a que se organizava nos quilombos e ainda mais especial a dos Palmares, que questionava não só a escravidão, mas que colocou em xeque todo o modelo econômico implementado pela Coroa. Por isso o ódio particular da elite escravocrata brasileira contra esses resistentes quilombolas.
É importante compreender e dar valor a todos esses processos de resistência porque significa que entendemos que se o sistema escravocrata, pelas condições objetivas, conseguiu coisificar o seu ser social, graças a resistência que os milhões de escravos exerceram durante todos esses anos, os senhores escravocratas não conseguiram coisificar a sua subjetividade.
Graças a essa subjetividade os escravos conseguiram continuar as suas lutas e essas mesmas lutas que os escravos travaram durante séculos conquistaram o fim do trabalho compulsório. Mas sabemos que isso não significou o fim das condições precárias de vida, pelo contrário, vários aspectos de nossa vida denunciam que a verdadeira liberdade do trabalho ainda está por vir. E isso só vai acontecer quando nós trabalhadores conquistarmos o fim da escravidão assalariada.
As palavras como reprodução do preconceito
Os temas relativos ao racismo e a escravidão são muito sensíveis porque neles, se por um lado significa poder conhecer o papel dos trabalhadores negros e suas lutas pela libertação, por outro lado também nos deparamos com práticas que são preconceituosas e até racistas. A história brasileira que aparece nos livros, meios de comunicação, etc é aquela forjada pela classe dominante branca, da qual a ideologia dominante impõe sobre todos nós modos de agir que em muitas ocasiões terminamos por utilizar palavras e expressões que reproduzem a idéia de que tudo que é preto ou negro sempre está associado a algo ruim ou negativo.
As palavras têm um significado que foi sendo construído historicamente e essa construção, via de regra, obedece a interesses político ideológicos da classe dominante, uma vez que as palavras -assim como a linguagem- também se constituem como instrumento de dominação dos exploradores.
A expressão "a coisa tá preta" é uma dessas em que logo se assemelha a situações difíceis, ruins, seja na vida ou mesmo na situação política do país. Poderíamos também falar da expressão consagrada pelo filme Star Wars "o lado negro da força" utilizada como forma de exprimir que um dos personagens passou para o lado do mau.
Outra palavra muito utilizada é o verbo "denegrir", geralmente utilizado para desqualificar a reputação de alguém e como o significado dela nos dicionários é tornar negro, escuro; enegrecer, escurecer, logo é feita a associação negro e desqualificação, negatividade se torna seu sinônimo.
Às vezes até utilizamos essas palavras sem saber o seu significado e o papel que têm, de reproduzir a linguagem dos dominadores, mas é preciso que fiquemos cada vez mais atentos para, na nossa prática militante, não reproduzamos tais preconceitos. Esses são apenas alguns exemplos relativos à questão racial. Há outros termos que se referem a mulheres, homossexuais e etnias, expressões estas que também merecem a nossa repulsa.