SAIA JUSTA NO CENTRO DO ESPETÁCULO
29 de abril de 2010
O espetáculo e os fatos
No clássico “Sociedade do Espetáculo”, de 1967, Guy Debord identifica um salto de qualidade nos mecanismos de mistificação ideológica, por meio do qual se criou uma esfera que concentra em si toda a representação do mundo, substitui a representação real, impede a manifestação do real e impõe o domínio da falsificação. É a essa esfera que Debord denomina espetáculo. Não se trata de uma simples explosão quantitativa do volume de produção e influência da indústria cultural e dos meios de comunicação, mas da conformação de toda uma estrutura que permeia de alto a baixo as relações sociais, da cultura até a política.
A característica central do mundo do espetáculo é a falsificação. O inautêntico se impõe como verdade e bloqueia a aparição do autêntico. Todas as relações sociais trazem a marca da encenação, do inautêntico, do falsificado. O fetichismo da mercadoria se concretiza como império da imagem, da narrativa e da encenação. Tudo é performance e nada é ação. De cada um se espera que cumpra o seu papel.
A ruptura com a ordem espetacular exigirá a ação coletiva e a afirmação de indivíduos reais capazes de estabelecer relações autênticas. As rupturas parciais, que não afetam em profundidade a ordem do capital, acabam sendo assimiladas pela lógica do espetáculo. Os fatos são deglutidos pelos factóides. A função do espetáculo é sobrepor-se ao fato e torná-lo incompreensível, ou pior do que isso, inacessível à consciência.
O recente fato acontecido na faculdade Uniban e sua transformação em espetáculo expõe/oculta várias camadas de falsificação nas quais estão enredadas as relações sociais na atual etapa histórica de capitalismo mundializado e em plena crise estrutural.
No dia 22 de outubro de 2009 uma estudante do curso de turismo da faculdade Uniban, do campus de São Bernardo, foi vítima da agressão de centenas de colegas por estar usando um vestido curto. Geisy Arruda foi cercada por gritos, xingamentos, ameaças de estupro, e teve que sair da faculdade escoltada por policiais. As cenas da agressão vazaram para a internet e se tornaram domínio público. O incidente ganhou as proporções de um escândalo e se transformou em assunto nacional.
As engrenagens da indústria cultural digeriram implacavelmente mais esse incidente, encaixando-o por fim no script pré-fabricado da moça-pobre-injustiçada-que-consegue-15-minutos-de-fama-e-desaparece. Conforme o interesse do público na celebridade-mercadoria do momento arrefece, um novo episódio-escândalo-entretenimento passa a ser demandado para se tornar o assunto público. Por conta de mecanismos como esse, é provável que o destino de mais essa celebridade instantânea seja o mesmo de outros “famosos descartáveis” que retornam para o anonimato de onde nunca deveriam ter saído tão logo o interesse do público é dirigido para outro foco. Por trás do giro interminável das máquinas desse show de horrores e espuma sem conteúdo, se desenvolvem tendências que revelam mutações no estado ideológico da sociedade. São essas tendências que devemos examinar mais atentamente.
O fato e o contexto
No momento da sua maior audiência, as proporções do escândalo na Uniban foram amplificadas pela atitude da própria direção da faculdade, que puniu a vítima com a expulsão. A maioria dos alunos apoiou a expulsão, mesmo os que não participaram da agressão. A repercussão negativa contra a expulsão foi geral. A resposta contou com pressões vindas até do Ministério da Educação, que forçou a faculdade a voltar atrás e readmitir a estudante. Mas o estrago já estava feito. A Uniban já havia ganho o apelido de “Unitaliban”, por ser intolerante, ou “Unibambi”, por não gostar de mulheres com roupas curtas. Empresas começaram a recusar currículos de estudantes vindos dessa faculdade (e coloca-se a seguinte interrogação: os currículos provenientes da Uniban estão sendo recusados porque o incidente mostrou que os seus estudantes e dirigentes são intolerantes? Ou porque mostrou que seus estudantes se parecem com a vítima em questão? Ou as duas coisas ao mesmo tempo?).
Vejamos mais de perto o que é de fato a Uniban. Trata-se de um simulacro de faculdade em que se vende uma mercadoria, um simulacro de educação superior, produto certificado por um diploma, cujos compradores acreditam que servirá como via de acesso para uma carreira, uma profissão na qual se projetam as esperanças ilusórias de sucesso material e acumulação de riqueza (capital em reprodução ampliada), processo que é apresentado como sendo o ápice da realização humana, ou seja, o ideal de felicidade em nossa época.
Os clientes da loja de diplomas da Uniban são oriundos da pequena-burguesia e de estratos superiores da classe trabalhadora. Eventualmente, alguns filhos de camadas mais baixas do proletariado conseguem ingressar também na faculdade, à custa de grande esforço pessoal e familiar. É o caso da própria Geisy, moradora de um bairro periférico de Diadema, filha de pais trabalhadores braçais e ela própria balconista de uma loja. Quanto à burguesia, esta evidentemente tem suas vagas garantidas nas instituições universitárias públicas, nas quais ainda se pratica algo semelhante ao ensino superior real, e nas quais um número muito menor de integrantes das classes subalternas consegue penetrar.
Todos enxergam a faculdade como uma via para a ascensão social, não porque a instituição universitária oferece algum conhecimento real sobre o mundo, mas porque fornece um verniz de “formação profissional” devidamente certificado pelo diploma, que é na realidade o objetivo final. Os professores, as aulas e o conhecimento em si são na verdade obstáculos que se interpõem entre os compradores (supostamente estudantes) e o vendedor (supostamente uma faculdade) numa transação comercial ordinária. Isso tudo é sintetizado por uma piada célebre nas faculdades particulares: “os alunos querem comprar o diploma, a faculdade quer vender, e o professor é o obstáculo no meio do caminho”.
A irritação dos estudantes da Uniban com a sua colega se deve ao fato de que a repercussão negativa desvalorizou a mercadoria em que estão empenhando seu tempo e dinheiro, o ambicionado diploma, que agora se transformou em uma mancha em seus currículos. Por isso houve grande apoio dos estudantes à tentativa de expulsar Geisy por parte da reitoria, a qual, por sua vez, estava também tentando preservar a atratividade da mercadoria que está vendendo, movimento que acabou saindo pela culatra.
Quanto a Geisy Arruda, o incidente a arremessou no redemoinho da indústria de celebridades, o mundo das revistas de fofocas e programas de TV que vivem de expor a intimidade (combinada com o exibicionismo calculado) de modelos, artistas de TV, esportistas, empresários, políticos, arrivistas, aventureiros, alpinistas sociais e oportunistas de todos os tipos. A indústria do entretenimento é sempre bastante ágil na busca de carne fresca para oferecer ao apetite do público. Geisy foi cotada para revistas masculinas, filmes pornô e desfiles de escola de samba.
Do ponto de vista do público espectador do espetáculo, Geisy deve fazer exatamente o que a indústria espera que ela faça, ou seja, aproveitar sua exposição na mídia para faturar. Se alguém fica famoso, é porque quer ganhar algum dinheiro em cima disso, raciocina o público. A narrativa-padrão em que o episódio está sendo encaixado inverte a ordem dos fatos, transformando a vítima em autora de alguma espécie de golpe. A estudante teria provocado o incidente propositalmente para obter algum tipo de notoriedade, a partir da qual poderia extrair algum lucro. O investimento da mulher em seu corpo-mercadoria (academia, salão de beleza, roupas e acessórios) deve obter seu retorno. Não há outro comportamento a se esperar da mulher que não o de encontrar alguma forma de vender seu corpo (ver textos do blog maçãs podres de 5, 8 e 15 de novembro de 2009 – http://nucleogenerosb.blogspot.com/).
A lógica da mercadoria e a ética de Big Brother
O instinto comercial e o pragmatismo explicam as reações da comunidade da Uniban a posteriori e também a interpretação do público sobre o comportamento de Geisy. Mas o que explica o fato em si na sua origem, ou seja, a agressão que vazou para a internet e se transformou em escândalo? Por que Geisy foi hostilizada a ponto de precisar de proteção policial? O que há de tão extraordinário no vestido curto? Não se trata do mesmo tipo de traje que todos estão acostumados a ver nas ruas? E mais, não estão todos acostumados a ver mulheres com muito menos roupa a cada minuto na televisão? Os estudantes da Uniban são simplesmente machistas? São talibans ou bambis que não gostam de mulheres com pouca roupa? A juventude retrocedeu para antes dos anos 60, antes da chamada “revolução sexual”, e se tornou conservadora?
Essas hipóteses são parcialmente verdadeiras, mas o conservadorismo puro e simples não explica todo o fenômeno. Há algo mais sinistro do que puro e simples conservadorismo tradicional em cena. Esse exemplo de proto-fascistização da juventude não é um fato isolado, e é produto de certos aspectos peculiares da situação histórica em que vivemos e suas correspondentes narrativas ideológicas.
A forma-mercadoria é a célula básica da sociabilidade burguesa e matriz de todas as relações sociais. O sexo é também uma mercadoria, algo que as mulheres devem vender (tornando-se atraentes, ao custo de grande sacrifício, e ao mesmo tempo seletivas, repelindo os homens, exigindo provas de compromisso e viabilidade material em troca de oferecer seu corpo aos vencedores) e os homens devem comprar (prometendo casamento, fidelidade e estabilidade material, provando que são economicamente capazes de prover um lar de contos de fadas). Toneladas de moralismo religioso, ideologia romântica e hipocrisia social costuram essa relação entre matrimônio e patrimônio, colaborando para a imposição do consumismo como razão de viver, elemento fundamental do conformismo geral que anestesia os trabalhadores na sociedade capitalista.
No mundo da vendabilidade universal, as mercadorias devem ser trocadas pelo seu valor equivalente. Essa lei absoluta da esfera da circulação foi de alguma forma transgredida pela estudante de turismo ao expor seu corpo daquela forma, o que explica a reação das demais concorrentes no mercado. Geisy teria supervalorizado seu corpo-mercadoria, buscando se sobressair na competição por meios espúrios. Ela “apelou” ao usar o traje que foi pivô da agressão, e foi punida por ter saído do seu “devido lugar”. A lógica social que motivou a agressão mistura repressão sexual, machismo, discriminação (elementos do velho conservadorismo) e uma nova espécie de ética mercadológico-comportamental. Esse fascismo de mercado aparece no nível das consciências por meio de uma “ética de Big Brother”, e aqui nos referimos não ao personagem do “1984” de Orwell, mas ao do programa de TV (embora este seja indubitavelmente uma das faces contemporâneas daquele).
O Big Brother da TV sintetiza a concorrência entre os indivíduos na competição por exposição no mercado. Os participantes do jogo são julgados pelos espectadores, que aprovam ou rejeitam as estratégias por meio das quais os jogadores tentam se destacar: há os “bad boys”, os “santinhos”, os “manipuladores”, etc. Os critérios pelos quais os espectadores julgam essas estratégias para escolher os vencedores do show são os mesmos pelos quais esses mesmos espectadores são julgados numa dinâmica de grupo ou numa entrevista para vaga num emprego. É preciso ser ao mesmo tempo firme e humilde, ousado e contido, autêntico e comedido, etc. Uma série de exigências comportamentais contraditórias desafiam os participantes, sempre em busca de um equilíbrio impossível entre estratégias de competição simultâneas e mutuamente excludentes. O Big Brother da TV é a forma dramática condensada do ambiente das agências de emprego (ver o texto “My Big Brother” – http://politicapqp.blogspot.com/2007/05/my-big-brother-o-crtico-de-cinema-da.html em que se desenvolve essa interpretação e se dá o devido crédito ao autor).
A geração de universitários educados pelo Big Brother vivencia as faculdades particulares como uma ante-sala da empresa, com visual de shopping center e códigos morais de agência de emprego. Existem regras por meio das quais os estudantes-clientes devem “vender seu peixe”. Dentro dessa lógica, Geisy teria adotado a estratégia de se vender como mulher-que-tem-o-controle-sobre-seu-corpo-e-faz-com-ele-o-que-quiser. Essa estratégia lhe foi negada pelas demais estudantes, que se sentiram lesadas na concorrência.
O script do fascismo de mercado
A mulher que usa um traje nos moldes do fatídico vestido vermelho é socialmente interpretada tanto pelos homens como pelas outras mulheres como estando “disponível para o sexo”. E aqui é irrelevante determinar se esse estereótipo é ou não compatível com a pessoa em questão. Não importa se Geisy tem um comportamento sexual livre (o qual no caso das mulheres é socialmente valorado de forma negativa e estigmatizado com epítetos como o de “vagabunda”, “vadia”, “galinha”, “puta”, etc.) autêntico e saudável ou se apenas deseja aparentar que o tem. Não importa se se trata de um comportamento real ou de simples aparência, mesmo que a aparência signifique a opção por uma estratégia de exposição que é também uma expressão de alienação e desejo de aparentar algo que não é (um padrão de beleza e comportamento que por sua vez constitui uma submissão a imperativos sociais de dominação impostos sobre as mulheres). Não importa porque não se pode conceder aos seus agressores o direito de reprimir aquilo cuja aparência não lhes apraz.
Isso seria o mesmo que dizer que ela mereceu a agressão, porque provocou, assim como as mulheres que são estupradas provocaram os criminosos por despertarem seu desejo; ou os torcedores que são vítimas dos elementos fascistas nas torcidas organizadas mereceram apanhar porque foram pegos “vacilando” com a camisa de uma agremiação rival no campo esportivo; ou ainda os jovens “emos” mereceram ser agredidos pelos carecas do ABC porque se atreveram a adotar um determinado visual que não os agrada; e assim por diante. Não se pode ser tolerante com a intolerância e o fascismo, e nesse sentido a reação das organizações de esquerda e movimentos de defesa das mulheres foi correta ao organizar manifestações de repúdio contra a faculdade Uniban (embora a compreensão real das organizações de esquerda sobre os elementos psicossociais profundos aqui discutidos seja nula).
Voltando pois ao incidente. As demais estudantes da Uniban negaram a Geisy o direito de se vestir como lhe aprouver. Ela não tem esse direito porque pertence a um estrato mais baixo da classe trabalhadora, porque é filha de migrantes nordestinos, porque não se encaixa no padrão de beleza ariano-anoréxico vigente, porque não é uma autêntica patricinha sarada e malhada, mas alguém que “indevidamente” ousa aparentar sê-lo. O fato de que ela queira aparentar sê-lo é sem dúvida uma expressão da miséria cultural da qual ela é produto e da falta de alternativas da juventude, mas nem por isso os seus agressores tem o direito de perseguí-la, pois isso expressa uma degradação muito mais perversa. Além de tudo, trata-se também de preconceito de classe e racismo. Geisy se atreveu a aparentar distintivos de inserção social que são vedados a sua classe social. Ao proceder dessa forma, ela supervalorizou sua mercadoria no cenário do Big Brother universitário capitalista.
Para que fique bem claro, repetimos o que viemos dizendo nos parágrafos anteriores: a agressão partiu de colegas do sexo feminino (conforme os relatos mais detalhados que circularam depois do escândalo – ver por exemplo http://www.terra.com.br/istoe/edicoes/2088/artigo156256-1.htm). Depois que as mulheres perseguiram Geisy, vieram seus namorados e afins, e depois desses toda a massa que apenas gosta de ver o circo pegar fogo e aproveita qualquer ruptura da rotina para expressar desejos reprimidos e vontade de destruição (“estupra ela”, “vamos estuprar”, gritavam).
As mulheres reprimiram em Geisy aquilo que não tem coragem de expressar através de si mesmas, ou seja, o comportamento sexual livre insinuado pelo vestido vermelho. A transformação do recalcamento psicológico individual em força social repressiva é o mecanismo essencial da psicologia de massas do fascismo. Esse mecanismo hoje está a serviço de um pragmatismo mercadológico mesquinho que enquadra a juventude (uma força social contestadora décadas atrás) no roteiro dramatúrgico barato dos reality-shows, livros de auto-ajuda e manuais de administração de empresas, entre outras formas abjetas da apologética vulgar do capital. A seguir, cenas do próximo capítulo.
Daniel M. Delfino
09/02/2010