PT vende a luta por direitos humanos no balcão de negócios do congresso
14 de abril de 2013
Este texto é uma contribuição individual, não necessariamente expressa a opinião da organização e por este motivo se apresenta assinado por seu autor.
Daniel Delfino
Raposas cuidando do galinheiro
A eleição do pastor evangélico Marcos Feliciano, deputado federal pelo PSC-SP, para a presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara teve uma imensa repercussão nas últimas semanas, e toda ela negativa, a ponto de haver se avolumado uma campanha pedindo a sua renúncia. As declarações do pastor contra negros e homossexuais mostram a sua absoluta incapacidade para exercer a função (como discutiremos logo abaixo) e o absurdo que representou a sua eleição.
A sua chegada à presidência da Comissão, como em t
odos os cargos dentro do Congresso, se deu por meio de acordos entre as lideranças dos maiores partidos. A função vinha sendo historicamente exercida por parlamentares do PT, que este ano abriu mão do cargo, em troca do apoio do PSC nas próximas eleições. Ou seja, o PT rifou a questão dos direitos humanos em nome de interesses eleitorais, como de resto tem feito em todos os demais aspectos da sua gestão no país.
A eleição aberrante de Marcos Feliciano não é exatamente uma novidade, visto que já temos o latifundiário e “rei da soja” Blairo Maggi na Comissão de Meio Ambiente, o ex-integrante da “tropa de choque” de Collor (ex-presidente cassado por corrupção), Renan Calheiros, na Comissão de Ética, e já tivemos o ex-presidente mundial do Bank Boston, Henrique Meirelles, na presidência do Banco Central, nos dois mandatos de Lula. Parece que estamos no mundo do “1984” de Orwell, em que a função dos cargos governamentais é fazer exatamente o oposto do que diz seu nome: a Comissão do Meio Ambiente realiza a devastação ambiental, a Comissão de Ética acoberta a corrupção, a Comissão de Direitos Humanos encaminha o massacre de minorias, e assim por diante.
Mais uma prova da falência do PT
Colocar a raposa para tomar conta do galinheiro é portanto uma parte do “modus operandi” do PT para se manter no poder. Boa parte do alarido que se tem feito pedindo a saída do pastor tem vindo de setores ligados ao próprio PT, nos movimentos de direitos humanos, especialmente de LGBTs. Nesses movimentos específicos ainda há militantes do PT que buscam se apresentar com alguma combatividade, ao contrário do que acontece por exemplo nos sindicatos, em que há décadas o PT pratica um sindicalismo “cidadão”, eufemismo para a conciliação de classe. No movimento sindical o PT, que controla a CUT e conta com o apoio das demais centrais, pratica uma “militância” completamente divorciada da base das categorias, cupulista, burocrática e abertamente pró-patronal. Nos demais movimentos os militantes do PT que tentam preservar alguma credibilidade estão agora expostos a uma contradição insolúvel. A “luta” para remover o pastor da Comissão de Direitos Humanos acaba também tendo a inglória tarefa de esconder o fato de que a responsabilidade pela chegada de Marcos Feliciano ao cargo que ocupa é do próprio PT. Se querem travar alguma luta, esses militantes deveriam lutar contra o próprio PT!
Os setores de base do PT ou que tem o partido como referência, e que ainda tem algum vínculo com os movimentos sociais, o que ainda acontece nos movimentos por direitos humanos, movimentos de moradia, no serviço social, atendimento à população de rua e população carcerária, entre outros; não tem mais nenhuma influência decisória em nenhuma instância do partido, e arcam com o ônus das políticas antioperárias e antipopulares do PT, mas ainda assim não rompem com o partido. A recusa em compreender que o projeto do PT é administrar os interesses do capital custa muito caro, pois impede os avanços desses e outros movimentos sociais. Não é mais possível compactuar com a lógica de que “o PT é menos pior”, é preciso romper e superar esse projeto.
O projeto do PT, de ocupar cargos no Estado para supostamente “mudar o sistema” por dentro, não conseguiu outra coisa além de mudar o próprio PT e transformá-lo em um instrumento da manutenção desse sistema (o jornal nº 56 do Espaço Socialista, lançado em março de 2013, traz uma matéria em que analisamos os 10 anos do PT no poder: http://espacosocialista.org/portal/?p=1811#titulo1). A cada dia se demonstra a urgência dos militantes honestos que ainda estão apegados à memória do antigo PT a romperem com esse projeto e construírem novas organizações de luta, independentes e opostas ao governo e ao PT. Não se trata de uma avenida aberta, mas de um caminho tortuoso, onde muitas vezes temos que reinventar a roda, mas que precisa ser percorrido. A classe trabalhadora precisa reconstruir a sua sua subjetividade, e para isso o ponto de partida é a demarcação em relação ao projeto do PT, que precisa ser negado e superado.
Da mesma forma, é um erro grave a política de algumas organizações que, mesmo estando fora do PT, como o PSTU, limitam-se a fazer exigências ao governo Dilma, como se esse governo pudesse alterar seu rumo para atender reivindicações operárias e populares, o que não vai acontecer O governo está comprometido com a gestão do capital e não vai mudar! Ao invés de fazer exigências, é preciso denunciar o governo como agente do capital em alto e bom som, em todos os movimentos sociais e em todas as lutas, diante de todos os setores da classe e em todas as oportunidades! É preciso dizer aos trabalhadores que só podem confiar em sua própria força e em sua organização independente, jamais em governos burgueses.
A vanguarda do atraso
Para explicar a gravidade da entrega da comissão de direitos humanos a uma figura como Marcos Feliciano, é preciso explicar o que representa esse cargo. A Comissão de Direitos Humanos não é a responsável direta pela aplicação da política de direitos humanos do governo, prerrogativa que cabe à Secretaria de Direitos Humanos, órgão com status de ministério, pertencente ao Poder Executivo. A Comissão é um órgão do Congresso, que exerce o Poder Legislativo, ou seja, que cria as leis. O Congresso se compõe de centenas de deputados e senadores, que legislam sobre todos os temas, mas antes que um projeto de lei chegue para votação em plenário, na presença de todos os parlamentares da Câmara ou do Senado, ele deve passar por avaliação em comissões temáticas, especializadas nos temas que essa lei vai regulamentar. As comissões temáticas são compostas por parlamentares que estão acostumados a lidar com o tema, que são especialistas no assunto por profissão, que são militantes de determinada causa e se elegeram ao parlamento por conta disso, etc.
Uma Comissão de Direitos Humanos deveria ser composta por pessoas que têm um histórico de luta pelos direitos humanos. Ora, o pastor Marcos Feliciano não tem nenhum histórico desse tipo, mas ao contrário, foi eleito defendendo uma política oposta, baseada na religião da qual é um ministro, que difunde uma visão de mundo conivente ou até mesmo favorável à violação sistemática dos direitos de determinados segmentos da população, como negros e LGBTs. A função do presidente é estratégica, pois cabe a ele controlar a pauta, ou seja, o andamento dos projetos que vão ser debatidos na Comissão, antes de ir a votação no plenário. Ou seja, o presidente pode impedir que determinados projetos sejam discutidos. E a plataforma de Marcos Feliciano, a promessa que fez a seus eleitores, foi justamente essa, impedir que projetos como o da lei que reconhece o casamento entre homossexuais, sejam desengavetados. Em outras palavras, ele se elegeu para defender a discriminação contra uma parte da população, para evitar que tenham direitos iguais ao restante, e o PT o coloca na presidência da Comissão de Direitos Humanos!
Um órgão que existe para permitir que se façam avanços e aperfeiçoamentos na lei foi tomado de assalto por setores que representam o retrocesso social. Em qualquer caso, já é absurdo que alguém seja eleito para um cargo público com base na defesa de uma religião, qualquer que seja ela, tendo como programa impor ao restante da sociedade a sua concepção particular de moralidade e costumes. No caso em questão, é ainda mais absurdo pelo fato de que se trata de uma religião que defende a interpretação literal da Bíblia. Segundo a igreja da qual Marcos Feliciano é pastor, os negros são descendentes de um dos filhos de Noé, que teve relações sexuais incestuosas com o pai (ver o relato de Gênesis, capítulo 9, versículos de 20 a 29, em que Noé descobre as propriedades embriagantes do vinho e Cam “descobre a nudez” de seu pai, eufemismo bíblico para relação sexual), por isso foram amaldiçoados com a cor da pele escura.
Com base nessa interpretação e outras oferecidas pelas religiões institucionalizadas sobre a “inferioridade espiritual, moral e intelectual” dos negros, foi justificada a escravidão durante séculos, uma violência bárbara e desumana da qual a África até hoje não se recuperou, nem os afrodescendentes em outros continentes. Trata-se de um absurdo do ponto de vista antropológico, já que o continente é habitado por centenas de etnias e culturas diferentes, algumas tão distantes entre si como em relação aos povos de outros continentes. Qual delas seria amaldiçoada? E antes disso, que Deus é esse que pune os descendentes por um pecado cometido por seu ancestral? E antes ainda, porque a cor da pele deve ser considerada uma maldição?
A lógica sectária da religião
Esse Deus é o mesmo que proíbe as relações homossexuais (como está expresso no Levítico, capítulo 18, versículo 22, que proíbe relações entre dois homens, embora não cite relações entre duas mulheres). Nesse ponto o pastor Marcos Feliciano não está sozinho, pois a condenação aos homossexuais unifica muçulmanos e cristãos numa mesma intolerância. Entre os intolerantes está o recém eleito e festejado Papa Francisco (sobre o qual recomendamos o artigo “O novo Papa em nada muda o velho rumo da Santa Sé”: http://espacosocialista.org/portal/?p=1844). Aliás, o atual Papa se tornou um dos principais opositores do governo Kirchner, por ser contra a lei que autoriza o casamento entre homossexuais, organizando verdadeiras manifestações de massa para impedir esse avanço na legislação. Foi esse histórico (e sua omissão diante da ditadura militar argentina) que o credenciou para chegar ao papado.
É muito curioso que os religiosos queiram manter a proibição bíblica às relações homossexuais, mas silenciem sobre outros “hábitos” bastante disseminados entre seus heróis bíblicos (e abençoados por seu Deus), que praticaram abertamente a escravidão, o genocídio, diversas formas de tortura, fraude e estelionato, a poligamia, etc. Por que os religiosos não defendem essas práticas nos dias de hoje? Onde está a coerência? O que dá aos religiosos o poder de selecionar as partes do texto sagrado que devem ser postas em prática hoje em dia e as que não podem? Não é de se estranhar que a religião já tenha servido de pretexto para muitas guerras (as quais tinham a ver com os mesmos interesses materiais dos poderosos que as religiões protegem em tempos de paz).
Não se trata apenas do pastor Marcos Feliciano, mas de uma lógica que está na essência de todas as religiões. A religião divide o mundo em bons e maus, salvos e condenados, sendo que quem reza para o mesmo Deus ou para o mesmo templo está salvo, todos os demais estão condenados. Essa visão maniqueísta e simplista isola o adepto de uma crença religiosa da complexidade do mundo, desobrigando-o de entender a diversidade humana e permitindo-lhe atribuir ao demônio tudo aquilo com que não concorda ou que por algum motivo lhe causa desconforto (aí entram a homossexualidade, o uso recreativo de drogas, outras religiões, línguas ou idéias, etc.). Como se não bastasse, a lógica sectária da religião autoriza o adepto a odiar todos os que não partilham da sua fé, a se sentir superior, e querer impor a sua crença aos demais pela força. Essa é a receita para o sectarismo, o ódio, as perseguições, pogrooms, limpezas étnicas e holocaustos.
Brincando com fogo
A luta em defesa dos direitos humanos expressa uma concepção diametralmente oposta, segundo a qual todos os seres humanos, independentemente de etnia, cor da pele, língua, ou inclusive religião, são basicamente iguais e por isso devem ter garantidas uma série de prerrogativas, como a vida, a liberdade, a consciência, a igualdade, etc. Existem setores da população que, em função de processos históricos de violência e discriminação, carecem de uma proteção especial, para que tenham assegurados para si direitos dos quais os demais já desfrutam. Esse é o pressuposto da luta por direitos humanos, que envolve bandeiras como as cotas para os negros ou o casamento civil para homossexuais, que lhes asseguraria o acesso à condição que o restante da população já desfruta.
Assim sendo, a eleição de um pastor para a presidência da Comissão de Direitos Humanos, com a prerrogativa de impedir o avanço de legislações que prescrevam condições minimamente iguais para esses setores discriminados, é um verdadeiro insulto a todos os que lutam por direitos humanos. Mais do que isso, é um sinal da gravidade da crise ideológica que vivemos hoje no Brasil e no mundo (ver o capítulo “sobre a religião no Brasil de hoje”, parte das resoluções sobre situação nacional da Conferência 2012 do Espaço Socialista, em que tratamos do crescimento das seitas religiosas neopentecostais e sua repercussão política: http://espacosocialista.org/portal/?p=368).
O PT e o próprio Marcos Feliciano sabem o quanto essa manobra é absurda. Para o PT trata-se de um cálculo frio de custo benefício eleitoreiro: vale mais o apoio do PSC do que o apoio dos setores interessados na luta por direitos humanos. Logo, danem-se os direitos humanos. Para o pastor, trata-se de um excelente negócio, mesmo que tenha que abandonar o cargo de presidente da Comissão, pois todo o circo armado em torno da sua pessoa lhe dá a oportunidade, paradoxalmente, de se apresentar como vítima de perseguição e fazer da Comissão um palanque. A sua projeção na mídia vai solidificar ao seu redor o apoio de todos os setores conservadores, religiosos ou não, que são contra os avanços no campo de direitos humanos. Marcos Feliciano usa a lógica do “falem mal mas falem de mim” para fazer sua propaganda como corajoso “defensor da moral e dos bons costumes”, um herói do “povo de Deus”, em meio ao antro de pervertidos, tarados, drogados e bandidos do Congresso e da política.
O avanço político de seitas conservadoras já foi capaz de permitir a uma figura como Bush, nos Estados Unidos, chegar à Casa Branca por meio de uma eleição fraudada, um verdadeiro golpe de estado, com o qual obteve dois mandatos para cevar o complexo industrial militar, a indústria petrolífera e a especulação financeira. Agora, esse câncer das seitas de ultra direita chega também ao Brasil. Já não se trata mais da tradicional alienação religiosa, que anestesia milhões de trabalhadores e miseráveis no conformismo. Trata-se de algo ainda pior, uma religião agressivamente militante na defesa do atraso social, do individualismo, do obscurantismo, do preconceito e do ódio.
Os limites da luta por direitos humanos
O crescimento de seitas ultra conservadoras (assim como o de bandos fascistas e neonazistas, defensores da ditadura militar, da pena de morte, da internação compulsória, etc.) é um dos sintomas da gravidade da crise do capitalismo. Os defensores do sistema são capazes de mergulhar o país e a humanidade na barbárie para impedir que esse sistema seja questionado. Por conta disso, a luta política contra as ideologias conservadoras deve ser uma prioridade. A campanha pela saída de Marcos Feliciano deve ser apoiada de todas as formas. É preciso barrar o avanço das ideologias conservadoras e seu assalto ao Estado, assim como reforçar a luta por direitos humanos, seja os direitos básicos negados às minorias, seja os direitos democráticos em geral, como o direito de greve, de manifestação, a liberdade de expressão, etc., contra a repressão e o autoritarismo em todos os níveis.
Mas a luta por direitos humanos não pode ser travada como uma luta para ocupar cargos no Estado, como foi o projeto do PT, que como vimos, naufragou miseravelmente e se converteu no seu oposto. A luta tem que ser travada contra o Estado e o sistema que nele se apóia. A ocupação de cargos e a eleição de representantes tem que ser um instrumento secundário, a serviço do elemento fundamental, que é a mobilização e a organização massivas de todos os setores da classe.
Indo ainda mais profundamente, na verdade, a concepção fundamental que sustenta a luta por direitos humanos, segundo a qual “todos os seres humanos são basicamente iguais”, está radicalmente equivocada. Não existe uma humanidade no abstrato, que unifique todos os seres humanos. Existe uma divisão social do trabalho, que divide a humanidade em classes sociais com interesses distintos e opostos, com diferentes graus de acesso e apropriação das realizações humanas. Existe uma divisão entre exploradores e explorados. Enquanto a exploração não for abolida, a igualdade de direitos não passa de uma abstração.
Pelo fato de ser explorada, a imensa maioria da humanidade está privada da possibilidade de desfrutar dos avanços da tecnologia, da ciência, da arte, porque está escravizada pela obrigação de trabalhar para os detentores da propriedade privada que se apoderam desses bens (ou, do contrário, perecer de fome, como tem acontecido com milhões de pessoas). Enquanto houver propriedade privada dos meios de produção, dos recursos coletivos, não haverá igualdade entre seres humanos, portanto, será puro idealismo dizer que possuem direitos iguais. Mais grave do que isso, a manutenção da propriedade privada e da exlploração fica extremamente facilitada pela divisão dos explorados em segmentos mais e menos favorecidos, em que setores como mulheres, negros e LGBTs são considerados inferiores e vitimados diariamente pela violência, opressão, discriminação e preconceito. As ideologias conservadoras, como a da religião, favorecem essa divisão entre os setores da classe, facilitam a sua exploração, dificultam a sua unificação e impedem a luta unitária contra o capitalismo.
As lutas por melhorias na condição dos setores historicamente mais explorados e oprimidos, ou por quaisquer melhorias nas condições gerais de vida, necessariamente se chocam com as necessidades do capitalismo em crise. Para garantir sua sobrevivência, o capitalismo não pode conceder melhorias a qualquer setor, pelo contrário, está revogando aquelas que foram conquistadas no passado. Por isso, torna-se cada vez mais urgente derrotar as ideologias conservadoras que hoje tomam conta da classe trabalhadora, reconstruir sua subjetividade, sua consciência da necessidade de ir além do capitalismo, a unidade de todos os setores e segmentos da classe e a solidariedade por todas as lutas, para construir um grande movimento da classe trabalhadora para acabar com a divisão e a exploração, um movimento anticapitalista, revolucionário e socialista.