O golpe militar de 1964 e as lições da derrota
30 de março de 2013
Este texto é uma contribuição individual, não necessariamente expressa a opinião da organização e por este motivo se apresenta assinado por seu autor.
Daniel Delfino
O contexto do Golpe
Em 31 de março de 2013 se completam 49 anos do golpe militar de 1964. O golpe estabeleceu uma ditadura militar que durou até 1985 e deixou seqüelas que até hoje marcam a vida do país. No contexto da Guerra Fria, a disputa política e militar entre os blocos do imperialismo estadunidense e o dos Estados burocráticos liderados pela URSS, o golpe militar no Brasil foi parte de uma onda de ditaduras que tomaram conta da América Latina, com eventos semelhantes na Argentina (1955 a 1969 e 1976-1986), Chile (1973-1989), Uruguai (1973-1985), Paraguai (1954-1989), entre outros. As ditaduras foram a resposta do imperialismo estadunidense às lutas por independência nacional em continentes antes colonizados como a África, a Ásia e a própria América Latina, que poderiam inclinar essas regiões na direção do bloco soviético. Particularmente na América Latina, o exemplo da revolução cubana de 1959, que estabeleceu um regime independente, que mais tarde se voltaria para o “modelo” da URSS, era um pesadelo para os estrategistas estadunidenses.
No incício da década de 1960 o Brasil vivia um momento de profundas mudanças. Milhões de pessoas se mudavam para as cidades, as fábricas se multiplicavam, milhões de crianças e jovens entravam para a escola, o que não havia acontecido com a geração de seus pais. A auto imagem do país estava em alta e difundia-se o mito do “país do futuro”. Eram os anos da inauguração da nova capital, Brasília (1960), do cinema novo, da bossa nova, do bicampeonato mundial de futebol (1958 e 1962).
Era também um momento de intensificação da luta de classes, com grandes mobilizações operárias, camponesas e estudantis. Uma greve geral em 1962 apresentou diversas reivindicações sociais e políticas e conquistou o 13º salário, que se mantém até hoje. As ligas camponesas no nordeste organizavam os trabalhadores rurais na luta pela reforma agrária e contra os abusos seculares dos latifundiários. Os Centros Populares de Cultura (CPCs) da UNE levavam teatro e cinema engajado à população, na tentativa de influenciar politicamente os trabalhadores por meio da cultura.
As facções da classe dominante
No campo da burguesia, estava em curso uma disputa entre dois setores. De um lado, o setor liderado pelo então presidente João Goulart (cujo apelido era Jango), herdeiro político de Getúlio Vargas, praticava uma política nacional-desenvolvimentista, que procurava levar o Brasil a ser uma potência capitalista, com algum grau de independência em relação ao imperialismo, impulsionando a indústria nacional. O projeto nacional-desenvolvimentista incluía concessões aos trabalhadores, aumentos salariais, direitos sociais, na crença de que isso ajudaria a dinamizar a economia. O slogan do governo e dos movimentos sociais na época eram as “reformas de base”, que incluíam a reforma agrária, a regulamentação das remessas de lucro das transnacionais, reforma urbana, etc.
De outro lado, havia o setor conservador e abertamente pró-imperialista da burguesia, composto por latifundiários e empresários diretamente associados ao capital estrangeiro, hostis a qualquer concessão aos trabalhadores. Sua política era de manter o Brasil como país subdesenvolvido, fornecedor de produtos primários e servil às transnacionais, que seguiriam extraindo lucros exorbitantes do país e enviando tranquilamente suas remessas para as matrizes. O discurso dos conservadores era de contenção da “ameaça comunista”. A luta popular pelas reformas de base era tratada como parte do “perigo vermelho”, como se o governo estivesse tomado por conspiradores e ateus demoníacos.
A maior parte da imprensa, os principais jornais, como o Globo, faziam oposição ao governo e atacavam as lutas populares como sinal de “caos” e “baderna”. O grupo Globo seria recompensado pelos serviços prestados ao golpe com a concessão de uma emissora de TV, que seria fiel aliada da ditadura. A igreja católica também se somou à campanha contra o governo e as lutas populares, organizando as “marchas da família com Deus pela liberdade”, com milhares de donas de casa da classe média e beatos em geral indo às ruas das capitais contra o governo e os comunistas.
O golpe e os primeiros anos da ditadura
O governo Jango foi instável desde o início. Como vice de Jânio Quadros, que havia renunciado ainda no primeiro ano de governo, Jango só conseguiu tomar posse depois de passar por um ano e meio de parlamentarismo, que limitava seus poderes, pois a direita não aceitava a volta do programa getulista. Depois de um plebiscito e da volta do presidencialismo em 1963, o crescimento das mobilizações populares levou o governo João Goulart mais à esquerda. O presidente pronunciou um comício na Central do Brasil, no Rio de Janeiro, em 13 de março de 1964, que foi tomado como um claro sinal de radicalização. Diante disso, aceleraram-se os preparativos para o golpe.
Em 31 de março a cúpula das forças armadas mobilizou as tropas e as ruas das capitais amanheceram tomadas por tanques de guerra. Não houve resistência ao golpe. Jango deixou Brasília e voltou para sua terra natal, o Rio Grande do Sul. O presidente da Câmara pronunciou um discurso declarando vago o cargo de presidente da república, sendo que Jango ainda estava em território nacional. Leonel Brizola, governador do RS e partidáro de Jango, defendia a resistência, mas Jango decidiu não resistir, aceitou a tomada do poder pelos militares e partiu para o exílio. A ditadura cassou mandatos parlamentares, fechou sindicatos, prendeu militantes, aposentou intelectuais, exilou artistas. Apenas a UNE continuou funcionando por algum tempo, até 1968.
Os primeiros anos do governo militar mantiveram uma expectativa de volta da democracia, com novas eleições, em que os expoentes da direita e adversários de Jango esperavam voltar ao poder pela via das eleições. No entanto, os generais se sucederam no cargo de presidente, o que fariam até 1985, quando tomou posse um presidente civil, eleito pela via indireta. O período de maior endurecimento da ditadura aconteceu a partir de 1968, quando foi promulgado o ato institucional nº5, uma emenda constitucional que fechava o Congresso, suspendia as garantias constitucionais, o direito de ir e vir, o habeas corpus, a liberdade de expressão, e dava poder ao aparato repressivo para prender suspeitos sem mandato judicial.
A derrota da luta armada e o “milagre brasileiro”
Com o fim das mobilizações populares, parte das organizações de esquerda optou pela luta armada, a partir de 1968. Sem apoio da população, as guerrilhas rurais e urbanas foram derrotadas, apesar do heroísmo de figuras como Lamarca e Marighella. O ato mais espetacular da luta armada foi o sequestro do embaixador estadunidense, em 1969, trocado pela liberdade de dezenas de presos políticos Na perseguição aos opositores, a ditadura matou, prendeu e torturou milhares de pessoas, estivessem ou não envolvidos na luta armada. Muitos opositores estão até hoje desaparecidos. A repressão foi financiada por empresários, que ajudaram a montar esquadrões da morte para perseguir militantes. Os crimes da repressão estão sem julgamento até hoje. Ao contrário dos demais países da América Latina, que julgaram e condenaram os agentes da ditadura, no Brasil os monstros continuam impunes. A Comissão da Verdade, montada pelo governo Dilma, não terá a função de levar à punição dos agentes da ditadura. A própria Dilma, que participou da luta armada contra os militares, é hoje uma agente da burguesia, como outros integrantes de seu partido, José Dirceu e José Genoíno.
Sob o governo militar, o Brasil viveu um período de grande crescimento econômico, os anos do chamado “milagre brasileiro”, principalmente entre 1968 e 1973, marcado por um aumento da produção de automóveis e eletrodomésticos (aos quais, no entanto, a maioria da população não tinha acesso), bens de consumo duráveis voltados para a burguesia e a classe média. Também foram características da ditadura as chamadas “obras faraônicas”, como a rodovia transamazônica, a hidrelétrica de Itaipu e a usina nuclear de Angra dos Reis, propagandeados como símbolos do “Brasil potência”. No entanto, esse modelo de desenvolvimento, pela estreiteza do mercado consumidor interno e pelo aumento da dívida do Estado (começou aí um surto explosivo de endividamento, que atingiu níveis absurdos), não era sustentável e se esvaziou ao longo da década de 1970, o que levaria ao fim da ditadura na década seguinte.
A maioria da população não viu os frutos desse “milagre”. Nas palavras de um dos generais-presidentes, “a economia vai bem, mas o povo vai mal”. A explicação do “czar” da economia, o ministro Delfim Neto (ainda hoje um “guru” dos governos do PT) era de que “primeiro era preciso esperar o bolo crescer para depois dividir”. Na verdade, o bolo nunca foi dividido. O Brasil continuou e continua sendo um país de maioria pobre, com muita desigualdade e muita riqueza sendo desviada para os mais ricos e para o capital estrangeiro. A ditadura militar foi portanto uma grande derrota das forças populares que lutavam pelas reformas de base e por melhorias em geral.
A importância da estratégia e da independência dos trabalhadores
Parte da responsabilidade dessa derrota cabe à principal organização política dos trabalhadores, o Partido Comunista Brasileiro (PCB), que tinha grande influência nos sindicatos e dirigia a UNE. A estratégia do PCB era de apoiar a fração nacionalista da burguesia nacional, contra o setor mais reacionário e o imperialismo. O pressuposto dessa estratégia era de que o Brasil ainda precisaria passar por uma revolução burguesa, antes de se pensar em transição ao socialismo. Em função desse apoio, não havia a preocupação com a independência política dos trabalhadores. Não foram desenvolvidos organismos capazes de lutar pelo poder, pois a suposição é de que essa não era uma tarefa dos trabalhadores.
Desde o início do século XX, Trotsky já havia demonstrado, na teoria da Revolução Permanente, que a burguesia dos países periféricos é incapaz de realizar as tarefas da revolução burguesa (como a reforma agrária e outras) e essa tarefa caberia ao proletariado. Na luta para concretizar essas tarefas, o proletariado precisaria impulsionar medidas de ruptura com o capitalismo, como nacionalizações e expropriações, sendo seguido pelas classes populares, avançando para uma revolução socialista. Sendo assim, a tarefa dos socialistas seria desenvolver a consciência dos trabalhadores para a luta pelo poder, com total independência em relação a líderes burgueses e pequenos burgueses. Ao contrário disso, o principal líder do PCB na época do golpe, Luís Carlos Prestes, acreditava que o “dispositivo militar” de Jango, composto por militares supostamente leais à constituição, iria deter o golpe, ao invés de preparar os trabalhadores para a resistência.
As lições da derrota dos trabalhadores no golpe de 1964 são vitais para a construção de uma estratégia revolucionária no século XXI. Não se pode confiar em lideranças burguesas e burocráticas, cujos exemplos nos dias de hoje são figuras como Hugo Chávez, pois essas lideranças, por mais radical que seja o seu discurso, nos momentos decisivos, abandonam a luta e deixam o poder livre para a burguesia e o imperialismo. E as vítimas são os trabalhadores, massacrados pela repressão. Não há outro atalho para a revolução que dispense os socialistas da tarefa indispensável de organizar os trabalhadores de forma independente e desenvolver sua consciência num rumo anticapitalista e socialista.
A repressão e os saudosistas da ditadura
Conforme dissemos, o Brasil é o único país que não julgou e condenou os autores dos crimes da ditadura, as mortes e torturas de opositores. O fim do regime militar se deu por meio de um acordo, que manteve o Estado sob controle dos mesmos setores da burguesia que se beneficiaram da ditadura. Além de não condenar a cúpula do aparato militar, foi mantida uma cultura repressiva e conservadora no judiciário e na polícia. O Brasil é um dos poucos países do mundo que tem uma polícia militar, a PM, uma polícia aquartelada, sob comando dos governos estaduais, criada na própria ditadura, como uma espécie de exército para combater um inimigo interno, o próprio povo.
Os métodos desenvolvidos na época da ditadura para perseguir opositores políticos, os esquadrões da morte e a tortura, são hoje aplicados diariamente pela polícia (militar e civil) para se apropriar de uma parte da renda dos negócios criminosos. Sob o pretexto de reprimir o crime, a polícia que atua nos bairros periféricos mata e tortura impunemente, especialmente quando as vítimas são negros. A atuação dessa polícia violenta e corrupta é legitimada pelo discurso da mídia, que cria um clima de medo e paranóia entre a população, nos programas de TV mundo cão.
Essa polícia que se associa ao crime e age de forma criminosa também tem outra função, reprimir grevistas e manifestantes. Em todos os governos pós-ditadura, e também nos do PT, as lutas sociais são tratadas como caso de polícia. Militantes são mortos, presos, torturados, no campo e na cidade, com a conivência do judiciário, que por sua vez proíbe greves, aplica multas aos sindicatos, inocenta os patrões e condena os trabalhadores. Nos últimos anos, com a crise mundial do capitalismo rondando o Brasil, o governo do PT e os governos locais dos demais partidos estão todos determinados a empurrar os efeitos da crise para debaixo do tapete. Não é permitido discordar do discurso que vem de todos os lados, do governo, da mídia, das burocracias sindicais, etc., de que o país está progredindo. Quem ousa discordar, e fazer alguma coisa a respeito, fazer greves, ocupações, manifestações, críticas, mostrando que apesar de todo o discurso “o povo vai mal”, como no tempo da ditadura, precisa ser tratado como uma ameaça à segurança nacional.
Em outras palavras, os governos do PT aplicam os mesmos métodos repressivos da ditadura, em plena “democracia”. Vivemos uma ditadura do capital, dos bancos, do agronegócio, das grandes indústrias, que contam com o PT para silenciar as lutas. É preciso denunciar essa ditadura disfarçada e também aqueles que, de maneira cada vez menos disfarçada, se atrevem a defender o golpe de 1964 (que foi chamado de “revolução” pelos seus autores), defender os crimes dos militares, defender a volta da ditadura, defender os métodos autoritários da repressão. A volta de idéias fascistas e de ultra-direita é um sintoma da gravdidade da crise e do perigo que se aproxima. Antes que essas idéias se tornem uma força material, antes que a ameaça de um golpe se aproxima, é preciso urgentemente lutar por uma outra idéia: a emancipação dos trabalhadores, por obra dos próprios trabalhadores!