O novo papa em nada muda o velho rumo da santa sé – Thiago Ferreira Lion
27 de março de 2013
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A Igreja Católica no turbilhão da Crise Capitalista
A escolha do cardeal argentino Jorge Mario Bergoglio, nesta última quarta feira (13/03), dá continuidade a uma linhagem de papas conservadores que dominam o Vaticano desde o provável assassinato do Papa João Paulo I, em 1978. Iniciando esta linhagem Karol Wojtyla, eleito João Paulo II, pode ser considerado o Papa que representou a implantação do neoliberalismo. Sua ligação com os EUA pode ser traçada ao menos desde o massivo investimento da CIA via Banco do Vaticano no sindicato polonês Solidariedade, seu “projeto de estimação” que ajudou a pavimentar sua eleição para Papa antes de contribuir decisivamente para o fim do SOREX[1]na Polônia[2].
João Paulo combateu firmemente a Teologia da Libertação e outras vertentes progressistas dentro da Igreja ao mesmo tempo em que canonizava o fundador da reacionária Opus Dei e afagava o criminoso pedófilo Marcial Maciel, fundador da ultra-ortodoxa vertente Legionários de Cristo. Silenciou enquanto foi possível sobre as ditaduras de direita implantadas pelas elites da América latina com apoio norte-americano; acobertou as fraudes financeiras pelo Banco do Vaticano junto à Máfia italiana e à CIA, incluindo aí tráfico de armas e financiamento de guerrilhas de direita, como revelou o escândalo do Irã-Contras. Protegeu o presidente do mesmo banco, Arcebispo Marcinkus, condenado por cometer fraudes e crimes financeiros, sendo também suspeito de ser mandante de três assassinatos[3]. Encobriu os casos de pedofilia na Igreja enquanto cobrava dos fiéis que não usassem meios contraceptivos como a pílula e a camisinha, mesmo na época em que surgiu o HIV, e lutava ativamente contra o reconhecimento das relações homossexuais.
O maior dom de João Paulo, no entanto, talvez fosse o de que, ao mesmo tempo em que imprimia no mundo sua marca reacionária em praticamente todos os sentidos, sua fala tranquila e seu jeito carismático reunia multidões de fiéis. Todos estes excepcionais esforços e qualidades o transformaram em um grande campeão do capitalismo neoliberal. Sua atuação arrancou elogios, entre outros, do presidente estadunidense Reagan, um dos dois maiores expoentes do neoliberalismo na política, e que o considerava um dos maiores responsáveis pelo fim do “comunismo” e a queda do muro de Berlim – e de fato talvez Wojtyla tenha sido o maior responsável[4].
Ratzinger apenas continuou a linhagem de João Paulo II. Os dois eram muito próximos, escreveram textos conservadores juntos, e, na realidade, segundo alguns, guiaram conjuntamente a Igreja. Ratzinger foi o Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (como foi em 1908 rebatizada a Santa Inquisição), colocado por João Paulo para modelar a doutrina da Igreja. Ele havia sido professor de teologia em Tübingen, quando em 1968 esta se tornou o centro das revoltas estudantis na Alemanha. Lá já se opunha ao marxismo, fazendo um “estágio” para o que depois, no importante cargo ao qual foi alçado por Wojtyla, se tornou sua especialidade: perseguir, punir, excomungar e silenciar os teólogos da libertação, os membros mais humanos e esclarecidos do clero, voltados para o combate das injustiças sociais principalmente na pobre América Latina. Feito Papa Bento XVI, no entanto, se mostrou bem menos carismático e habilidoso que seu antecessor, não reunindo mais as habituais multidões de fiéis.
Se João Paulo II foi o papa da implementação do neoliberalismo, quando este ainda podia ser vendido como “modernização” e “progresso”, e assim com um perfil “bom moço” – um tanto quanto assemelhado ao de Bill Clinton -, Bento XVI já chegou à cadeira de Pedro parecendo-se com Bush. Os primeiros filhos da terceira revolução industrial chegavam à fase adulta e agora a internet começava a revelar a todos aquilo que a grande mídia era paga para esconder, fazendo a confiança nas instituições evaporar. Ao mesmo tempo, com o capitalismo elevado à milésima potência, o dinheiro progressivamente dominava mais áreas da vida social. A instituição católica, ainda que umbilicalmente se ligasse ao capitalismo, não se adaptou tão bem à forma empresarial demandada pelos tempos de maturidade do neoliberalismo e começou a perder fiéis em velocidade espantosa. A realidade prática, cada vez mais dominada pelo dinheiro e pela informação, impeliu a população à crença nas novas religiões pentecostais (que veem na obtenção de dinheiro a marca da graça divina), ou em um teísmo de base pós-moderna (ultra-individualista, onde cada um imagina seu próprio deus) e, ou no ateísmo, que nega totalmente o fenômeno religioso como ilusão.
Bento XVI assume a Igreja em 2005, e, apenas dois anos depois, começa a grande crise internacional. A causa desta parece ser, como já há muito teorizado por Marx, o desenvolvimento das forças produtivas que cada vez mais expulsa a força de trabalho produção, formando de um lado um exército de desempregados e de outro um mar de trabalhadores cada vez mais precarizados esperando perder seus empregos com a próxima onda de “racionalização produtiva” ou “medidas de austeridade”. Este desenvolvimento obriga o crescimento capitalista pela via da financeirização, que chega ao seu limite em 2007 gerando a “crise da dívida”. Ao mesmo tempo o avanço das forças produtivas, principalmente em matéria de comunicação, faz chegar com cada vez maior velocidade à população os escândalos antes facilmente ocultáveis. As acusações de pedofilia assim se multiplicam com a nova tecnologia ao mesmo tempo em que o dinheiro se torna cada vez mais escasso. As principais fontes de financiamento do Vaticano, os fiéis, a CIA, os Legionários de Cristo, desaparecem ao mesmo tempo em que seus diversificados investimentos reportam rombos derivados de fraude e da própria instabilidade financeira de nossa época. O agora debilitado Estados Unidos, grande aliado do Vaticano desde quando uniram forças para vencer o Partido Comunista Italiano em 1948, em 2012 passa a colocar o Estado Papal na lista dos países que lavam dinheiro para o narcotráfico. As bases espirituais e financeiras que sustentavam a Igreja começam a ruir.
Esta crise, no entanto, não é meramente a crise da Igreja, mas sim a crise do capitalismo e de sua forma institucional como um todo, uma crise que atinge neste momento a totalidade dos Estados e instituições. Ratzinger pouco poderia fazer em meio a esta tormenta. O que pôde ele fez no sentido de continuar encobrindo, disfarçando, tocando adiante um barco furado cujo destino é naufragar, de modo similar ao que agora fazem os Estados Nacionais com suas dívidas e escândalos políticos. Seu legado para a Igreja é também similar ao que o reinado de Bush deixou para os Estados Unidos: a clareza mais ou menos generalizada de que comandava uma instituição suja, corrompida, que mais mal fazia do que bem à humanidade. A emergência de novos tempos joga luz possibilitando ver onde não se via e a renúncia do papado por Ratzinger vem trazer mais um elemento de clareza. Ao abandonar o trono, Bento XVI afirma simbolicamente que o Papa não se trata de um “escolhido por desígnios de Deus”, mas sim de um mero cargo, como os de qualquer outra instituição dos homens, a que se pode renunciar quando já não mais interessa.
À Igreja, perdida em meio à tormenta que apenas começou, resta escolher outro comandante-em-chefe, agora já não mais tão “vitalício”. Os cardeais, em esmagadora maioria conservadores e reacionários elevados ao posto por João Paulo II e Bento XVI, não poderiam, claro, escolher alguém de um perfil progressista. Sua escolha é de mais um de sua própria linhagem ideológica, no entanto, para parecer fazerem uma “abertura”, decidiram por um cardeal argentino. Sua escolha tem um elemento parecido com a eleição de Obama, o presidente negro, muda-se o rosto e melhora-se a imagem, mas a instituição permanece a mesma. O novo Papa Francisco I cresceu muito rapidamente nos escalões da Igreja durante o período da sanguinária ditadura militar argentina (1976-83). Ele chegou a retirar da proteção da Ordem dos Jesuítas na Argentina, da qual era o superior, dois padres – Orlando Yorio e Francisco Jalics – que faziam trabalho social em bairros pobres e que acabaram sendo presos e torturados pelo regime ditatorial. Outro caso que ficou famoso envolveu a família De La Quadra, incluindo uma grávida de cinco meses, que procurou a ajuda do agora Papa e a teve negada. É sabido que a mulher deu a luz em cativeiro antes de ser assassinada e que seu filho foi dado para uma família “muito importante” para se reverter posteriormente a adoção. O próprio ex-ditador argentino Jorge Videla revelou que mantinha a hierarquia da Igreja Católica bem informada sobre os “desaparecidos políticos” [5], ou seja, informava à amigável Igreja sobre os assassinatos brutalmente cometidos pelos militares.
Fora seu tarimbado passado distante, o novo Papa revela-se da linhagem de Wojtyla e Ratzinger também em sua atuação recente. Ele se opôs firmemente à lei argentina que permitiu o casamento de pessoas do mesmo sexo, que seria segundo sua santa inteligência “demoníaco em sua origem”, bem como à adoção por homossexuais, que seria “uma discriminação contra as crianças”. Podemos perceber que nas questões sobre liberdade sexual, bem como em relação ao casamento e adoção por homossexuais, com certeza a Igreja continuará com a mesma posição reacionária. Também do mesmo jeito que seus antecessores, o novo Papa critica vagamente o capitalismo de excessos e sem limites. Como novidade apresenta alguns comportamentos progressistas como o de andar de transporte público e se recusar a morar em palácios. Faz parte da Comunhão e Libertação, que nasceu na Itália com um apelo palidamente progressista para se contrapor na época ao marxismo,, que então dominava o movimento estudantil. Seguindo a toada conservadora, é um grande opositor à direita do governo Kirchner, tendo dito que a Argentina foi tomada pela demagogia, corrupção e totalitarismo. Assim, mesmo com a decadência da Igreja, a eleição de Bergoglio representa o enorme fortalecimento de um inimigo direitista do governo argentino, o que, cumulado com a recente morte de Cháves e a chegada da crise, deve aumentar a instabilidades políticas na América Latina.
O fato do novo Papa ser da América Latina indica que a Igreja quer parecer aos olhos leigos que está tomando novos rumos. O fato de o escolhido ser Jorge Mario Bergoglio indica que ela quer, em seus fundamentos práticos e dogmáticos, permanecer ao máximo como está. Ainda que tenha de fazer algumas concessões, a Igreja segue seu caminho, ou seja, continua afundando em seu reacionarismo. Rezemos para que naufrague logo! Ela e todas estas instituições, que apenas mistificam a consciência e a prática humana.
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[1] Socialismo Realmente Existente – termo para designar o Capitalismo de Estado, isto é, o capitalismo com forte direcionamento estatal que existiu na União Soviética e ainda existe em Cuba. O capitalismo, segundo Marx, se caracteriza pela dominação da produção pelo ciclo dinheiro que é usado para fazer mais dinheiro (D-M-D’ ), que sempre se encontrou nestes Estados Nacionais. Nunca foram portanto, em sentido profundo, comunistas e nem ao menos socialistas. Um explicação detalhada, ainda que breve, pode ser encontrada em meu artigo: http://www.criticadodireito.com.br/todas-as-edicoes/numero-1-volume-11/afinal-o-que-e-capitalismo
[2] Claramente não podemos atribuir como única causa do sucesso do sindicato Solidariedade o investimento da CIA. Não fossem os problemas estruturais profundos do SOREX e a condição polonesa de satélite da URRS, o movimento não teria crescido tão vigorosamente entre os trabalhadores.
[3] Entre eles o do próprio Papa João Paulo I, do banqueiro mafioso Calvi e de Emanuela Orlandi, uma garota de 15 anos filha de um funcionário do Vaticano.
[4] Em comparação com outras pessoas individualmente consideradas, ou seja, não se quer afirmar aqui, de maneira alguma, que a queda do capitalismo de Estado soviético seja obra de uma pessoa. Na realidade há uma causa mais profunda: a repercussão da terceira revolução industrial nas relações sociais capitalistas obrigou a neoliberalização para possibilitar um crescimento com base no capital financeiro, já que o trabalho humano deixou cada vez mais de ser necessário na produção industrial. Ocorre que o modelo de capitalismo de Estado não podia liberalizar a economia sem por fim à sua própria forma, o que acabou tendo de ocorrer por meio do colapso do sistema soviético.
[5] http://www.irishtimes.com/news/former-argentinian-dictator-says-he-told-catholic-church-of-disappeared-1.542154