A miséria, o espetáculo e suas perversidades
17 de março de 2009
(Comentário sobre o filme “Quem quer ser um milionário”)
O grande vencedor do Oscar 2009 tem como principal mérito o fato de ter escolhido um favelado como protagonista. Afinal, mais de um bilhão de pessoas são favelados hoje no mundo. Vivemos no “Planeta favela”, título de um livro de Mike Davis que descreve a estarrecedora realidade dessa porção nada desprezível da população humana. A favela é o retrato acabado do fracasso da civilização capitalista. Desemprego, subemprego, trabalho informal, biscates, mendicância, prostituição, doenças, fome, violência, crime; são a realidade social dessa população. Esgoto a céu aberto, lixo, fezes, cadáveres em decomposição, ratos e moscas são a realidade material. Um bilhão de pessoas vive literalmente na merda (há uma cena em que o protagonista do filme em questão ilustra graficamente o que quer dizer “viver na merda”).
Pouco acima dessa camada de favelados, temos as também numerosas camadas dos pobres, dos remediados, dos trabalhadores explorados formalmente, que compõem a imensa maioria da humanidade, para quem a simples sobrevivência é um desafio cotidiano. Isso é um grotesco absurdo em face da abundância de recursos e de capacidade produtiva disponível no planeta. O sistema funciona de fato apenas para uma restrita minoria. Nada pode ser mais eloqüente do que essa realidade para demonstrar o fracasso estrepitoso do capitalismo, do livre mercado, da globalização, do progresso, do desenvolvimento, do crescimento, etc. Pedir a cada um desses 1 bilhão de pessoas que continue suportando a vida no inferno por mais um dia sequer, apenas para que a minúscula elite internacional dos banqueiros, executivos, especuladores, aventureiros e rapinantes de toda espécie que controlam a economia mundial possam seguir desfrutando do luxo obsceno em que se refestelam; é dar mostras de um sadismo verdadeiramente hediondo.
Entretanto, é exatamente isso que fazem os gestores do sistema, os tecnocratas e ideólogos mercenários encarregados de reciclar cotidianamente as promessas furadas da viabilidade do capitalismo e propagá-las maciçamente por todos os canais e meios de comunicação que intoxicam diariamente a consciência coletiva. Por esse motivo, os méritos de um filme que tem a coragem de expor as entranhas de uma sociedade periférica como a da Índia devem ser sempre destacados. Trata-se de uma abordagem diametralmente oposta à do “Caminho das Índias” da rede Globo, que optou por mostrar a Índia dos nababos e marajás.
Por falar em Globo e em Brasil, “Planeta Favela” registra o fato de que nosso país tem 51,7 milhões de favelados, e a Índia 158,4 milhões, o que corresponde a 36,6 e 55,5 por cento da população urbana dos dois países respectivamente. Mas nem tudo na nossa indústria cultural é pura mistificação. Por vezes a realidade também aparece. “Quem quer ser um milionário” tem um predecessor importante no seu gênero, o brasileiro “Cidade de Deus”, do qual recebe nítidas influências. Além do cenário de miséria, semelhante em Bombaim (cidade que os inventores de modismos resolveram rebatizar com o insosso nome de “Mumbai”) e no Rio de Janeiro, temos um protagonista que tenta fazer seu caminho sem se envolver com o crime, embora esse tenha sido o meio em que cresceu. No que se refere à narrativa, temos também o recurso à linhas temporais intercaladas que compõem o quebra-cabeças da vida dos personagens. Finalmente, no aspecto puramente estético, temos o estilo de edição, o ritmo acelerado, as cores fortes.
Ao escolher um favelado como protagonista, “Quem quer ser um milionário” tem a oportunidade de retratar as diversas formas de opressão de que essa população é vítima. A opressão se manifesta não apenas na condição material, mas também nas diversas formas de preconceito, discriminação e violência, não apenas física, mas também psicológica.
O título do filme se refere a um programa de televisão do tipo de perguntas e respostas. No Brasil tivemos há alguns anos o “Show do Milhão”, apresentado pelo grotesco Silvio Santos (que aliás fez sua fortuna explorando a credulidade dos pobres), imitação de um modelo internacionalmente difundido, prova de que na indústria do espetáculo nada se cria, tudo se copia. No filme, o programa é inesperadamente vencido por um concorrente que vive na favela. Jamal Malik é um típico representante do emergente capitalismo indiano: trabalha servindo chá aos operadores de telemarketing. Ele é o subalterno entre os subalternos da classe trabalhadora, parte da gigantesca massa humana anônima triturada nas engrenagens implacáveis do superlucro globalizado.
Ninguém na televisão, dos produtores ao público, acredita que Jamal tem a mínima chance de acertar as perguntas do programa. Mas ele acerta uma após a outra, e seu prêmio em dinheiro vai aumentando rodada após rodada. Antes que ele chegue à pergunta final, os produtores do programa tentam descartar-se dele nos bastidores e o acusam de ser um fraudador. Um favelado jamais poderia ter acertado as perguntas sem algum tipo de expediente ilícito. Favelado não é gente, não pode vencer nunca. Está fora do script.
Os órgãos da repressão, por outro lado, cumprem fielmente o roteiro que deles se espera. O favelado é torturado para confessar o crime que não cometeu. Lá como aqui, a polícia bate primeiro e pergunta depois. Ninguém sequer cogita na possibilidade de o vencedor do concurso ter realmente acertado as perguntas, até que a tortura se prove ineficaz e o infeliz tenha a oportunidade de falar. Para explicar para a polícia como acertou as perguntas do programa, Jamal tem que narrar uma série de incidentes de sua vida, pois cada resposta tinha relação com algo que aprendeu por ter sofrido na pele. Desdobra-se então a narrativa de sua vida, desde a infância até o momento em que chega ao programa de TV.
Além do “crime” de ser favelado, Jamal deve pagar pela ousadia de tentar transgredir as normas e mudar sua realidade. O favelado só pode conseguir algo depois de apanhar muito e ganhar traumas e cicatrizes. Depois da tortura policial e de apresentar as justificativas para cada uma das respostas que acertou, ele terá a chance de voltar ao programa e arriscar a sorte na pergunta final. O detalhe é que a tortura e o interrogatório transcorrem longe dos olhares do público. O inferno vivido por Jamal não pode ser televisionado. O favelado não pode ser humanizado, seu sofrimento não pode ser partilhado pelo espectador. A televisão suprime a brutalidade do real e a dissolve na superficialidade do estereótipo. O público do programa inevitavelmente desenvolve uma empatia por Jamal e torce por ele, mas nem sequer desconfia dos horrores pelos quais ele passou para chegar até ali, desde sua infância distante até a tortura policial ali mesmo, às vésperas da pergunta final.
O mundo do espetáculo é um mundo asséptico, higienista, forjado, embalado para presente e emoldurado pelo sorriso artificial e monstruoso dos apresentadores de TV. Um mundo de fantasia que dissimula por meio da hipocrisia profissional a verdadeira realidade dos seres humanos. A demanda por “reality shows” expressa justamente isso, a necessidade do público de torcer por personagens com os quais possa se identificar. Os “reality shows” fornecem tais personagens, mas não modificam a dramaturgia básica do espetáculo, apenas substituem os atores profissionais que encenam o conto de fadas por amadores com os quais o público se considera mais parecido. Nenhum reality show mergulha na realidade de um ser humano com a mesma profundidade de que somente a verdadeira arte, a literatura, o teatro, e alguns raros filmes são capazes.
Um dos méritos de “Quem quer ser um milionário” é humanizar seus personagens, valorizando sua trajetória de vida. Jamal adquiriu uma diversificada (e terrível) experiência de vida na favela, nas ruas, na mendicância, no trabalho. Vivenciou a barbárie dos conflitos religiosos, o trauma da orfandade, a precariedade da mendicância, o horror da exploração do trabalho infantil, enquanto as pessoas mais próximas dele resvalavam para o crime e a prostituição. Conheceu a inveja, o autoritarismo e por fim a traição da parte do próprio irmão. Mas ele conheceu também a amizade e o companheirismo que unificam os miseráveis e as pessoas que atravessam situações extremas. Conheceu até mesmo o amor, que foi o fio de esperança que o manteve firme e vivo enquanto era massacrado pela vida e levado pela correnteza dos acontecimentos.
Depois de passar por esse purgatório, Jamal faz jus ao prêmio milionário do programa de TV. Chegamos então ao ponto limite do filme. “Quem quer ser um milionário” nos mostra a realidade do favelado, humaniza sua trajetória, cria no espectador a empatia pelo personagem, nos faz torcer por ele e vibrar por sua vitória; tudo isso é bastante louvável e excepcional no cinema, mas é feito no bojo de uma solução narrativa também artificial, que termina por endossar o mecanismo básico do espetáculo e seus pressupostos ideológicos.
O problema começa na forma como Jamal vence o prêmio. Ele acerta a pergunta final no chute, sem realmente saber a resposta. Com isso fica referendada a concepção de que o conhecimento, no seu aspecto acadêmico, formal, livresco, é algo supérfluo, e se pode “vencer na vida” sem ele. A cultura nesse caso aparece como algo que não é de fato necessário, que não enriquece a vida, que não recompensa aquele que se esforça para adquirí-la; enfim, algo que não é preciso conquistar e se pode viver muito bem sem tê-la.
O segundo problema está no próprio conceito do que significa “vencer na vida”, ou seja, ficar milionário. Reforça-se um ideal de realização em que o indivíduo não pode simplesmente ser o que ele é, ele precisa ser como os “vencedores”. Ou o indivíduo é parte da massa miserável, ou é parte da elite privilegiada. O favelado é festejado, mas apenas pelo fato de que ele “vence” e deixa de ser favelado para se tornar milionário.
O terceiro problema, resultante do anterior, é que se acaba referendando assim o culto ao dinheiro e aos bens materiais. É evidente que a miséria material é um mal, mas isso não torna automaticamente um bem a abundância de bens materiais. Especialmente quando tal abundância é resultante das mesmas relações sociais que produzem a miséria, o modo de produção capitalista.
O quarto problema está na idealização do amor romântico. Como numa novela da Globo, em que o final feliz é sempre um casamento (ou pior, vários casamentos), o filme indiano termina numa festa em que o casal de protagonistas fica junto. Ao contrário do que a indústria do romantismo para consumo popular insiste em dizer, o casamento não é onde os problemas terminam, é onde eles começam.
O quinto problema está na frase que encerra o filme, quando aparece a alternativa que responde à pergunta colocada ao espectador logo no começo: “estava escrito”. Isso quer dizer que o destino dos personagens já estava traçado. Com isso, reforça-se a idéia nefasta de que não é o homem que faz sua história, é alguma força sobrenatural que determina o curso dos acontecimentos. Sendo assim, não é preciso se esforçar para modificar a vida, basta se deixar levar. Nesse ponto, “Quem quer ser um milionário” coincide um pouco com outro concorrente do Oscar, “O curioso caso de Benjamin Button”, em que o destino e o roteiro determinam a vida do personagem, sem que ele tenha muita interferência e aprenda algo significativo através da luta.
Por último, e também mais grave, está o fato de que a solução para o problema do favelado é puramente individual. Com toda a ruptura que representa por conta da escolha de seu tema e do retrato humano que faz do personagem, o filme permanece prisioneiro da lógica do espetáculo. As narrativas da indústria cultural reforçam a crença de que “qualquer um pode chegar lá” e impedem o indivíduo de pensar em sua própria vida ao contemplar a vida dos “vencedores” que protagonizam o espetáculo.
Jamal fica milionário, mas a favela continua lá, com o esgoto a céu aberto, lixo, fezes, cadáveres em decomposição, ratos e moscas. Os favelados assistem pela TV e comemoram em toda Índia a vitória de um dos seus, mas continuam favelados. Aceitam assim a permanência de um sistema em que um em 1 bilhão pode ficar milionário, mas os restantes permanecem miseráveis. Um sistema em que um afro-descendente pode chegar a presidente dos Estados Unidos, mas os africanos sucumbem na barbárie das guerras tribais legadas pelo saque do continente realizado pelo imperialismo.
É tudo uma questão de sorte, de destino, de acertar um palpite. Se você for um pré-destinado, parabéns, pois se tornará um milionário. Quanto a nós todos, continuaremos na merda.
Daniel M. Delfino
15/03/2009