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Benjamin Button, uma vida ao contrário, e na direção errada


8 de fevereiro de 2009

 

            O diretor David Fincher e o astro Brad Pitt já trabalharam juntos no eficiente thriller “Seven” e em “Clube da Luta”, um dos melhores filmes da década passada. Nesses dois trabalhos anteriores, se expõe uma visão bastante crítica da experiência humana, para não dizer radicalmente negativa. Essa visão é de certo modo característica do restante da brilhante filmografia do diretor, que se coloca bastante acima da média dos realizadores comuns. Os dois repetem agora a parceria em “O curioso caso de Benjamin Button”, que narra a história de um homem que envelhece ao contrário.

            Tendo nascido com o aspecto de um ancião, encarquilhado, quase cego, surdo, com artrite e toda sorte de debilidades físicas que acometem os idosos, Benjamin rejuvenesce conforme cresce, tornando-se um homem velho, depois maduro, adulto, jovem, adolescente, criança, terminando seus dias como um bebê. Tendo sua mãe morrido no parto, ele é repudiado pelo pai, o rico dono de uma fábrica de botões, que o deixa nas portas de um asilo de idosos. Lá ele é adotado pela negra Queenie, que cuida dos idosos no asilo, e que não podia ter filhos.

            Nenhuma explicação direta é fornecida para o envelhecimento invertido de Benjamin, e de resto o bizarro fenômeno também não surpreende muito as pessoas que convivem com ele, nem provoca escândalo ou o transforma numa celebridade mundial, o que muito provavelmente teria acontecido em nosso mundo se seu caso fosse real. À guisa de explicação, faz-se alusão a um relojoeiro cego que projetou um relógio que corre ao contrário para ser instalado na estação ferroviária central da cidade. Com isso, o relojoeiro queria fazer retroceder o tempo e reverter a perda de seu filho, que tinha acabado de morrer na I Guerra Mundial. Não é apresentada uma relação direta entre os dois casos, apenas exposta a coincidência de que Benjamin nasceu nesse mesmo ano, 1918, e na mesma cidade, New Orleans.

            A capital do jazz foi assolada pelo furacão Katrina em 2005. É nesse exato momento que começa a narrativa. Às vésperas da chegada do furacão, uma idosa que está hospitalizada em estado grave pede a sua filha que leia o diário de Benjamin Button. É por meio da leitura do diário que a história é contada e que se conhece a relação das duas mulheres com Benjamin. O filme transcorre então como uma longa exposição do percurso de toda uma vida, do nascimento à morte.

            O percurso de uma vida bastante original fazem deste “Curioso caso” um filme extraordinário para os padrões da indústria. Isto, somado aos seus inegáveis méritos técnicos, a competência da direção, o bom trabalho do elenco, da maquiagem, etc., levaram a 13 indicações para o Oscar, prêmio máximo da indústria. Dadas as características do prêmio (o filme com o maior número de indicações é quase sempre o maior vencedor), “Benjamin Button” deve sair consagrado pela Academia. No deserto de criatividade em que se tornou o cinema comercial estadunidense, o filme de David Fincher é de fato excepcional. Tem a rara qualidade de provocar algum tipo de reflexão, de empatia e identificação do espectador com o destino dos personagens. Entretanto, isso não significa que o filme consiga dar conta de seu objeto satisfatoriamente.

            As fragilidades começam no esquematismo do roteiro. Assim como a pseudo-explicação fantástica para o envelhecimento invertido por causa do relógio, todo o restante da narrativa é construído por coincidências e paralelismos. Uma série de fatos convenientemente convergentes se articulam para direcionar o percurso da vida do personagem e sua formação. Vários fatos e contextos se combinam também para influenciar na interpretação que se pode tirar da moral da história. O fato de termos a presença de uma idosa intercalando a narrativa anuncia uma reflexão sobre a inevitabilidade da morte, que cedo ou tarde atinge a todos. Tal inevitabilidade é sublinhada pela presença do furacão Katrina, que nós espectadores já sabemos quão mortífero acabaria sendo, mas que as personagens ainda ignoravam. O furacão adiciona a devida dose de arbítrio ao lembrar como a vida humana é frágil e que não apenas os idosos morrem. Outro fato bastante conveniente é o de Benjamin ter sido criado num asilo, o que permitiu a ele não apenas receber os cuidados geriátricos adequados a sua “infância senil”, mas também partilhar do convívio com os idosos e sua sabedoria, e testemunhar a presença constante da morte.

            Diz-se que a infância de uma pessoa termina quando ela compreende que vai morrer. Benjamin testemunha desde cedo a desaparição dos demais hóspedes do asilo e experimenta o sentimento de perda que a morte traz aos que ficaram. Esse ambiente, somado à condição peculiar de alguém que nasceu idoso, teriam contribuído para que ele desenvolvesse algum tipo de percepção especial do percurso da vida. Logo que é acolhido no asilo e examinado por um médico, e antes que se pudesse perceber que ele estava na verdade envelhecendo ao contrário (rejuvenescendo), Benjamin era de fato tratado como alguém que tinha muito pouco tempo de vida, como os demais hóspedes do asilo. Ele teria nascido para morrer em pouco tempo, realizando em forma de piada a frase de Heidegger de que “o homem é um ser para a morte”.

            O fato de ter passado os primeiros anos de sua infância acreditando que iria morrer a qualquer momento, sem saber quanto tempo lhe restaria, deveria ter lhe inculcado muito precocemente o sentimento da precariedade da vida, acompanhado da percepção do quanto a vida é preciosa, que por fim se completaria com a lição de que todos os momentos deveriam ser muito bem aproveitados. Isso parece estar acontecendo ao longo da primeira parte do filme, quando Benjamin é uma criança e adolescente com aspecto de um velho, e desfruta todos os momentos e descobertas da vida como dádivas. Ao invés de crescer com a paranóia dos jovens, que querem apressadamente “conquistar o mundo”, ele cresce com a serenidade dos idosos, que apreciam os pequenos prazeres da vida, o sopro de uma brisa, o canto de um pássaro, o colorido de um por do sol. A essa primeira parte pertencem os melhores momentos do filme, como as divertidas reminiscências do homem que foi atingido sete vezes por relâmpagos. Aliás, em sua velhice, a única coisa que restou a este homem é a lembrança dos relâmpagos.

Entretanto, a profundidade da temática se desvanece conforme a narrativa avança e a vida de Benjamin se torna comum. Há uma grande dificuldade em mostrar o que ele aprende e o que tem a ensinar quando se torna ele próprio um idoso de verdade.

A temática do envelhecimento é estranha ao cinema hollywoodiano tradicional. A indústria cultural não contempla o fenômeno do envelhecimento e da morte natural nas suas narrativas. A morte, quando aparece, é quase sempre “heróica”, em nome de alguma causa, ou acidental, trágica. A morte pura e simples, como resultado natural do esgotamento da vida, é mantida ausente do imaginário coletivo. Há uma negação da morte natural na indústria cultural.

            A negação anti-natural da morte resulta em uma falsa afirmação da vida. O cinema esconde o percurso natural da vida no mesmo movimento em que comercializa a vitalidade exuberante de suas estrelas, a juventude, a beleza, o carisma, a sensualidade. Tudo isso é embalado nas narrativas fantásticas do amor romântico idealizado e devidamente arrematado pelos artifícios do final feliz e pelo mito do “viveram felizes para sempre”. As vidas de contos de fadas do cinema são concebidas para funcionar como um precário substituto e antídoto para a vida miserável da maioria dos seres humanos neste mundo bárbaro.

            Pensar na morte implica em questionar a vida. A filosofia nasceu com esse propósito, amparar o homem no confronto com sua inescapável finitude. Questionar filosoficamente a vida é uma atitude não muito bem vinda na nossa realidade atual. As narrativas adocicadas da indústria cultural induzem justamente à atitude oposta. O indivíduo compara sua própria vida com a vida idealizada do cinema, das telenovelas, dos romances, e percebe que há uma abissal diferença, mas considera que a causa da inadequação está na sua própria pessoa e não no mundo, e tenta se ajustar como pode.

            Aparentemente, Benjamin Button se coloca na direção oposta do cinema comercial, ao trazer uma narrativa que aborda o início e o fim da vida de um homem. Entretanto, o filme não escapa da armadilha de sua própria premissa. O homem que envelhece ao contrário acaba, na verdade, não envelhecendo. O Benjamin maduro, na imagem de um Brad Pitt adolescente, não é um homem maduro, mas um adolescente. Suas decisões e escolhas, sua psicologia e atitudes, sua moralidade não revelam nenhum conflito real, nenhum dilema, nenhuma cicatriz emocional, nenhum tesouro de sabedoria adquirido ao custo de doloroso aprendizado. A imagem prevalece sobre o conteúdo.

            O conto de Benjamin Button na verdade realiza a fantasia coletiva do rejuvenescimento. Ele é uma expressão radical do processo de rejuvenescimento dos protagonistas prototípicos do romance na narrativa cinematográfica. Os protagonistas dos grandes romances clássicos do cinema, como os de “E o vento levou” e “Casablanca” eram casais maduros. Os protagonistas dos romances do cinema atual são adolescentes, como os de “Titanic”. A indústria cultural rejeita a idade madura e busca refúgio na juventude.

Ao invés de ilustrar o envelhecimento como ganho de conhecimento, Benjamin Button retrata o desejo de juventude como fuga da realidade. Mesmo que essa não tenha sido a intenção consciente de seus autores, como muitas vezes não é no mundo da arte, o filme termina por expressar justamente a compulsão patológica pela juventude, a falsa afirmação da vida e a negação do pensamento e da morte que constituem o grosso da indústria cultural. A contradição do filme com a ideologia predominante na indústria é apenas aparente.

            A vida de Benjamin Button transcorre ao longo de todo o “breve século XX” (Hobsbawm), um dos períodos mais conturbados da história, atravessado por revoluções, contra-revoluções, guerras mundiais, guerras de libertação, movimentos, idéias e ideologias que empolgaram milhões de pessoas, transformações sociais, culturais, comportamentais. Nenhum desses acontecimentos o afeta realmente. Ele participa da II Guerra, mas o faz sem opinião própria, apenas porque o capitão do navio em que trabalhava decidiu se engajar na marinha. Ele experimenta as perdas e o drama da guerra, mas permanece quase indiferente.

            A História passa por Benjamin sem que ele se deixe afetar, sem que tome posição, sem que se comprometa com qualquer causa ou ideal, sem passar por uma sensação de vitória ou derrota. Benjamin é um ser a-histórico. Ele está tão deslocado do drama histórico da humanidade que resolve de modo também indiferente a questão mais básica para qualquer ser humano, a sobrevivência material. O adolescente/velhinho começa a trabalhar num barco apenas pelo prazer de realizar algo, mesmo que seja uma tarefa considerada degradante e rejeitada por todos os demais, como limpar o convés. O trabalho é uma atividade em si mesma gratificante, quando não realizado sob a compulsão da necessidade. Acontece que, nas atuais circunstâncias históricas, comprometidas pela divisão social do trabalho, ou seja, pela divisão de classes, o trabalho se concretiza como alienação, não como realização, para a quase totalidade dos seres humanos. Benjamin só pode se comportar assim em relação ao trabalho porque teve sua sobrevivência material convenientemente garantida no roteiro, seja pela Fundação filantrópica que mantém o asilo, seja pela herança da fábrica de botões.

            Entretanto, Benjamin se relaciona de modo atípico não apenas com as condições sociais e históricas, mas também com a vida pessoal. Nunca fica claro o que o atraiu para a relação com a mulher do espião na Rússia, e por sua vez, o que o tornou atraente para ela. Sua relação com Daisy também transcorre como um casamento convencional. A não ser pelo fato de que também não fica suficientemente claro o motivo que o levou a se afastar da família que havia constituído com a mulher que fora o amor de sua vida.

            No final das contas, a mensagem que se transmite não vai muito além daquela que se ouve em comerciais de TV ou livros de auto-ajuda: “nada dura pra sempre”, “viver um dia de cada vez”, “aproveitar cada minuto”. O filme fica nos devendo um personagem que tenha de fato aproveitado sua vida e que tenha algo a nos ensinar ao final de três preciosas horas do nosso tempo.

 

Daniel M. Delfino

 

08/02/2009

 

            Ficha técnica:

Nome original:  The Curious Case of Benjamin Button

            Produção: Estados Unidos

            Ano: 2008

            Idiomas: Inglês

            Diretor: David Fincher

            Roteiro: Eric Roth

            Elenco: Brad Pitt, Cate Blanchett, Julia Ormond, Jason Flemyng, Taraji P. Henson, Mahershalalhashbaz Ali, Elias Koteas

Gênero: drama, fantasia, mistério, romance

Fonte: “The Internet Movie Database” – http://www.imdb.com/