O caminho da Coreia do Norte
4 de julho de 2018
Recentemente ocorreu um encontro marcante entre os presidentes dos Estados Unidos e da Coreia do Norte.
A imprensa mundial, ao cumprir seu papel burguês e reacionário, fez uma cobertura considerando a Coreia do Norte “um país comunista“ e os Estados Unidos um garantidor da paz na região. Essas duas principais mentiras buscaremos desmontar para compreendermos o real significado desse encontro.
A divisão das Coreias
A Coreia do Norte, oficialmente República Popular Democrática da Coreia, está situada na Península do Leste Asiático. Faz fronteira com a Coreia do Sul, China e Rússia. Sua origem, enquanto Estado autônomo, ocorreu em 1945 no contexto histórico da Guerra Fria e da II Guerra Mundial/Grande Guerra.
Desde o início do século XX a Península da Coreia era colonizada pelo Japão, situação que impediu o desenvolvimento social, econômico e político do país e condenou o povo à miséria.
Com a derrota do “Eixo” (aliança militar da II GG que reunia, principalmente, Alemanha, Itália e Japão), no fim da II Guerra, o Japão se viu obrigado a render suas forças às tropas que ocupavam o território coreano: tropas da União Soviética ao Norte e as tropas dos Estados Unidos ao Sul.
No dia 15 de agosto de 1945, com a rendição do Japão, encerrou-se a II Guerra Mundial e foi declarada a independência da Coreia. No entanto, foi estabelecido o conflito e a divisão da Coreia em que os dois lados reivindicavam a soberania sobre toda a Península e em 1950 teve início a Guerra da Coreia. A guerra perdurou 3 anos e teve como consequência o armistício que estabeleceu o acordo de suspensão temporária de guerra (cessar-fogo), não o seu fim definitivo, através de um tratado de paz com zona desmilitarizada entre as Coreias que constituiu a fronteira entre os dois países.
O fim da Guerra da Coreia teve como pano de fundo a manutenção dos acordos de divisão do mundo, tendo por base os interesses geopolíticos e de mercado dos Estados Unidos e da União Soviética, em que Stálin se comprometeu a respeitar e implementar a chamada política de “coexistência pacífica” que envolvia o impedimento dos Partidos Comunistas, sob a influência da União Soviética, desenvolverem lutas que questionassem a influência dos Estados Unidos.
Naquele momento já havia o risco de uma guerra nuclear pelo envolvimento direto das duas grandes potências mundiais da época, sendo que o próprio governo estadunidense ameaçou usar armas nucleares, tal como fez no Japão, caso a Coreia do Norte não se rendesse.
Apesar da suspensão dos conflitos militares, a Coreia continuou e continua dividida e de lá para cá os conflitos se mantiveram, sendo que desde a suspensão do armistício, em 2013, as Coreias estão oficialmente em estado de guerra.
Contextualização da Coreia do Norte
A resistência ao domínio japonês sempre foi muito intensa na Coreia. Na primeira metade do século XIX, a Coreia passava por vários processos de resistência à dominação do Japão. Nesse processo foi forjado Kim Il-Sung o qual, fugindo da perseguição dos colonizadores da Coreia, lutou na China e na União Soviética. Foi no exílio que Kim Il-Sung desenvolveu seus aprendizados militares, principalmente servindo ao Exército Vermelho durante a II Guerra Mundial. Em 1945, com o fim II Guerra, Kim Il-Sung retornou a Coreia e já em 1946, com o apoio de Stalin, tornou-se o “Grande Líder” da Coreia do Norte.
Em 1949 é fundado o Partido dos Trabalhadores da Coreia, fortemente influenciado por Kim Il-Sung. Nesse contexto tem início um processo marcado por culto à personalidade e por medidas autocráticas que darão base à ideia Juche, que defende a autodeterminação e a independência tanto da população como do país como forma de garantir de sua soberania. Tem como principal base teórica e prática a ideia do “socialismo em um só país”, defendida pelo stalinismo durante o período considerado de deformação da Revolução Socialista Russa, que servia de base para manter a revolução dentro das fronteiras nacionais e que se tornou a linha política do Partido dos Trabalhadores da Coreia (PTC) e, consequentemente, a filosofia oficial da Coreia do Norte.
A oficialização da filosofia (e ideologia) Juche, como expressão da autodeterminação e da independência do povo é um dos dispositivos considerados estranhos ao comunismo. Por essa filosofia, a posição do homem no mundo é a base para forjar o seu destino, ou seja, a relação entre o homem e o mundo. Diferente disso apresenta-se o marxismo que busca uma relação entre a base material da sociedade e as ideias.
A burocracia coreana tal como se apresenta essa filosofia coloca-se superior ao marxismo, em sentido estrito. Citado por Gabriel Martinez, segundo Kim Jong Il, “Se o marxismo criou pela primeira vez a concepção revolucionaria de mundo da classe trabalhadora, a ideia Juche a aperfeiçoou, desenvolvendo-a a uma etapa superior”. Como consequência, o marxismo “genuíno” foi abandonado há muito tempo.
Apesar de expropriar a burguesia, desde o início a prática já demonstrava que o PTC dificilmente seguiria os caminhos do comunismo.
A restrição à participação da classe trabalhadora nos órgãos de discussão e decisão, o culto à personalidade e a constituição de uma forte burocracia política e militar são algumas características do regime que demonstravam que, na prática, a classe trabalhadora não controla(va) os meios de produção e os rumos do país. Hoje, a Constituição da Coreia do Norte, sequer cita os caminhos para o comunismo uma única vez.
A ideia Juche é uma filosofia própria dos coreanos de modo que também o stalinismo, reivindicado por esses como “marxismo-leninismo”, foi sendo abandonado e substituído ao longo da história da Coreia do Norte.
Essa filosofia é importante para compreender a Coreia do Norte, pois uma de suas principais características é o militarismo. Como a gestão do país é feita por uma burocracia sustentada pelo apoio de militares e pela constante ameaça de guerra, o militarismo é trabalhado junto à população como algo fundamental. É a chamada política Songun ou “militares em primeiro lugar”, em que as Forças Armadas ganham prioridade em todos os âmbitos das políticas de Estado.
Assim, torna-se um país isolado e com recursos extremamente limitados que priorizam a indústria bélica em detrimento das necessidades básicas da classe trabalhadora, inclusive de necessidades vitais como a alimentação.
Contudo, não é de se desconsiderar que a própria produção bélica e atômica exige um nível de conhecimento científico e tecnológico avançado, o que, por sua vez, significa que a Coreia do Norte não é um país de extrema miséria como faz parecer a mídia burguesa e como é a maioria dos países capitalistas (evidentemente, os periféricos). Até porque o fato de acabar com a propriedade privada permite o desenvolvimento social de um modo muito mais avançado que dos demais países.
É nesse contexto que podemos compreender o programa atômico da Coreia do Norte, situada numa região com vários países que possuem o domínio de bombas atômicas, com várias bases militares dos Estados Unidos no Japão e na Coreia do Sul, em que o militarismo é apresentado como a única forma de equilibrar as forças com os outros países e garantir a independência do país, mesmo que isso signifique o isolamento econômico.
A Coreia do Norte não é comunista e nem um “Estado Operário”
Como dissemos, a mídia burguesa, até mesmo como forma de desqualificar, tem vinculado o governo coreano ao comunismo. Um regime de “dinastia” em que a direção do Estado é passada por hereditariedade, isto é, sucessão de gerações de uma mesma família; que possui controle da burocracia sobre o Estado e que mantém partido único em que o mesmo oculta explicitamente o comunismo já são suficientes para negar ao regime coreano a caracterização de um país socialista e, muito menos, comunista. Está longe, muito longe, de ser parte histórica dessa definição.
Há correntes trotskistas que defendem a Coreia do Norte como sendo um Estado Operário deformado, caracterização que também não concordamos. Podemos apresentar brevemente três problemas: Primeiro não é a classe operária que controla os meios de produção e está no poder, mas uma burocracia estatal e militar. Como falar de um Estado Operário sem os operários no poder? Segundo é que o fato de mesmo a economia sendo estatização ou planificação, mesmo não havendo burguesia, a classe trabalhadora continua sendo explorada em proveito dos privilégios da burocracia. Nós marxistas defendemos a socialização dos meios de produção e um regime de plena liberdade para a classe trabalhadora decidir sobre tudo: o que, como, para quem produzir etc; Terceiro não se pode falar em Estado Operário porque houve a expropriação da burguesia, principalmente nesse caso onde as coisas ocorreram de cima para baixo, e não houve uma Revolução em que a classe trabalhadora desempenhasse o papel de sujeito social e político. São muitos elementos necessários ao debate, mas esses ajudam a compreender e desmontar alguns desses argumentos.
O comunismo será possível quando não houver mais exploração e nem burguesia. Quando a classe trabalhadora conseguir implementar a “democracia operária”, única democracia de fato, pois será realmente a maioria quem vai decidir sobre tudo, não a minoria como no capitalismo. Os desvios burocráticos serão controlados e eliminados porque a vida social será exercida pela maioria. Também não haverá corrida armamentista e, finalmente, teremos a paz entre os povos, pois cessará a disputa por mercados e a busca pelo lucro. Não haverá classes sociais e nem exploração de um ser humano por outro. E somente nesse estágio da sociedade não será mais necessário Estado (um organismo de dominação de classe).
Dessa forma, é fácil perceber, a Coreia do Norte não tem nada de comunista e nem de “Estado Operário”.
O discurso mentiroso dos Estados Unidos
Além do desenvolvimento das forças produtivas e de outras questões históricas e sociais um dos motivos dos Estados Unidos se tornar o que é hoje foi o bombardeio atômico e nuclear que fez em Hiroshima e Nagasaki, no final da II Guerra Mundial, matando centenas de milhares de civis para impor o terror sobre a população mundial e para se firmar como potência hegemônica.
Poderíamos citar dezenas de casos, mas esse caso é exemplar para mostrar o discurso dissimulado dos ianques de defesa da liberdade ao promoverem algumas das maiores barbaridades da história da humanidade, apoiando golpes militares em diversos Estados e sendo, inclusive, os únicos a ter usado armas nucleares de destruição em massa em combate.
Um pouco de conhecimento da História desse país é suficiente para mostrar as suas arbitrariedades. O país possui o maior arsenal bélico e nuclear do mundo e tenta desarmar um Estado embargado sob o discurso da “paz” e do “desarmamento”. Com qual legitimidade? Absolutamente nenhuma. Trata-se apenas de impedir qualquer tipo de projeção de países periféricos e mais ainda, no caso da Coreia do Norte, totalmente isolada como parte da política de Contenção, desenvolvida pelos Estados Unidos durante a Guerra Fria para evitar qualquer avanço dos países pós-capitalistas.
Cabe ressaltar que na sociedade capitalista, o arsenal bélico e as próprias bombas atômicas são muito relevantes no cenário da disputa de poder. Não por acaso os 5 países (Estados Unidos, Rússia, Reino Unido, França e China) com assento permanente no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) são justamente os países com as maiores reservas atômicas.
O contexto e os reais interesses dos Estados Unidos e da Coreia do Norte
Avaliamos que o capital vive uma crise estrutural, período em que a expansão do capitalismo encontra “obstáculos significativos” e que a tentativa (sempre frustrada e insustentável no longo prazo, por se tratar de uma crise estrutural) para contorná-los e exige grandes esforços, principalmente dos próprios Estados, instrumento direto da burguesia e de suas corporações.
Além disso, a crise sistêmica que vive o capital à época de sua crise estrutural tem levado a um período de intensos retrocessos para a classe trabalhadora mundial, sejam os países periféricos, direta ou indiretamente colonizados pelo imperialismo, sejam os países que viveram as benesses do Estado de Bem Estar Social na Europa, sejam os próprios países imperialistas em todos são intensos os ataques e a imposição de retrocessos.
Nesse contexto, ao buscar aprofundar o caráter de dependência e miséria dos países periféricos – como grandes fazendões fornecedores de produtos de baixo valor agregado e de mão de obra barata – a mínima “soberania” e “autonomia” voltam a ser diretamente questionadas pelas potências imperialistas, controladas pelas grandes corporações multinacionais. Dentre os “esforços” de recuperação das altas taxas de lucro também estão as guerras. Mas, diante da capacidade destruidora do império armamentista mundial, as guerras já não podem ser utilizadas de forma indiscriminada tal como foram no passado. Outro ponto é a conquista de novos mercados, em que empresas possam atuar livremente garantindo sua lucratividade.
A guinada do governo Trump em relação a Coreia do Norte se explica, em parte, pelo potencial econômico que esse país representa. Para as multinacionais estadunidenses produzir no território coreano com uma força de trabalho relativamente instruída e barata propiciaria custos muito mais baixos do que nos Estados Unidos. De quebra, aproveitaria o próprio mercado coreano “carente” de produtos eletrônicos e de alto valor agregado como celulares, carros, televisões, etc. Expandir o mercado é fundamental para os Estados Unidos se qualificar nas disputas do mercado mundial cada vez mais competitivo.
O potencial econômico, no entanto, é uma parte do pano de fundo da aproximação dos dois países, pois também parece estar em curso um processo de completa restauração capitalista, similar ao que ocorre em Cuba que, para o capital, significa expandir o seu domínio sobre todo o globo e, do ponto de vista político-ideológico, acabar com qualquer possibilidade concreta de se pensar uma alternativa política e societária distinta do capitalismo.
Para a burocracia coreana essa aproximação com os Estados Unidos tem também a utilidade de pressionar a China e buscar melhores condições de barganha nos negócios, principalmente com a política de expansão econômica e militar da China na região. A burocracia da Coreia do Norte sabe que se continuar pressionada pelo governo da Coreia do Sul e pelos Estados Unidos terá que aceitar as condições impostas pela China, a qual sempre foi a principal garantia da existência da Coreia do Norte e hoje é uma das principais interessadas nesse processo devido a questões estratégicas como o controle de rotas de comércio na região e os problemas de segurança com o Japão.
É preciso compreender essa situação dentro de uma política global em que a Coreia é só mais uma das frentes de batalha do imperialismo estadunidense contra os povos oprimidos no mundo.
Contra qualquer sanção, intervenção imperialista e/ou ingerência à Coreia
O imperialismo é, por definição, a exacerbação da expansão econômica e militar. É isso que os Estados Unidos fazem em cada parte do mundo. Como citamos, o Estados Unidos falar de paz e democracia é de um cinismo sem tamanho. Quando defendem o desarmamento de outros povos é apenas para facilitar a sua própria expansão imperialista. Como vimos, as Coreias já surgem dentro de uma disputa militar, os conflitos militares têm sido parte integrante da vida social, por isso é impossível afirmar, no plano do discurso, que a saída para o impasse coreano é pacífica.
A derrota da burocracia contrarrevolucionária deve se colocar também como um dos objetivos dos revolucionários, pois o importante para a burocracia é garantir os seus privilégios e não garantir a transformação de vida da classe trabalhadora. A definição de que a luta anti-imperialista tem como parte a luta contra a burocracia e a restauração do capitalismo é fundamental porque nos orienta para uma ação independente da burocracia.
Com todas as críticas que fazemos a burocracia coreana, mesmo a caracterizando como contrarrevolucionária e como um obstáculo ao socialismo e a ditadura do proletariado rumo ao comunismo, defendemos o direito da Coreia do Norte garantir a sua soberania e autodefesa. Assim, repudiamos as sanções e qualquer ataque do imperialismo ou ingerências de outros Estados nos problemas coreanos. Pode ser uma intervenção militar ou um embargo econômico, em ambos os casos as maiores vítimas são a classe trabalhadora e o povo coreano. Isso é importante porque defendemos que a burocracia coreana seja derrubada pela ação da classe trabalhadora e não pelo imperialismo que apenas mudaria o regime para continuar a exploração da classe trabalhadora.
Outro ponto importante nessa discussão é a reunificação, pois nem a burguesia do Sul, nem a burocracia do Norte têm interesses reais de reunificar o país. E se o fizerem manterão os seus privilégios, como ocorreu nas Alemanhas Ocidental e Oriental. Uma reunificação das Coreias com garantias para a classe trabalhadora somente poderá ocorrer sob bases socialistas que expropriariam as grandes empresas do Sul (Daewoo, Hyundai, Kia, LG e Samsung, etc) e derrubasse a burocracia do Norte, impondo o controle operário da produção e garantindo a transformação da vida e o bem-estar da classe trabalhadora coreana.