Quem matou Marielle?
13 de abril de 2018
Este texto é uma contribuição individual que não necessariamente expressa a opinião da organização e por este motivo se apresenta assinado por seu autor.
Sérgio Lessa
Depende de de qual grau de verdade você deseja: os milicianos que estavam no carro, apenas aquele miliciano que puxou o gatilho; Temer e os “golpistas”; ou, ainda, o sistema do capital como um todo.
A execução de Marielle é uma decorrência direta da crise geral em que vive o país. A munição utilizada, as pessoas envolvidas, o “método” da execução, as circunstâncias de sua eleição e de suas denúncias contra os “milicianos”, a forma com se desenrola o post-festum (a política federal cede lugar para a política militar, Temer cancela viagem ao Rio para não ser hostilizado, Rodrigo Maia posa de defensor de uma investigação séria, Pezão fica calado no calabouço do Palácio do Catete, a forma da cobertura jornalística da Globo, do Estadão e da Folha de São Paulo, a reação do PT, do PSOL e do PCB etc.) – tudo se articula muito intimamente com os fundamentos da crise em que estamos engolfados. Portanto…
… de onde vem a crise?
De novo: qual o grau de verdade desejado? De fato, vem desde abril de 1500, quando Cabral aportou na Bahia. O Estado burguês chegou no Brasil antes que aqui houvesse qualquer burguesia, o capitalismo aqui chegou pelas mãos da burguesia europeia e as nossas classes dominantes desde sempre foram sócias minoritárias na exploração dos trabalhadores.
A forma de exploração da força de trabalho, as instituições político-jurídicas e ideológicas que dela brotam etc. variam com o tempo – segundo as necessidades do capital internacional, predominantemente e, secundariamente, segundo as necessidades das classes dominantes brasileiras. Nessa história, o Estado tem um peso descomunal. Pois, como a mediação política da direta subordinação das classes dominantes locais ao capital internacional, termina sendo importantíssimo na organização da economia. As suas “políticas econômicas” têm um papel central na produção de riqueza. Para citar alguns exemplos: o episódio Delmiro Gouveia no Segundo Império, a política de socialização das perdas na República Velha, os investimentos getulistas na infraestrutura como a Petrobrás e a CSN, os “50 anos em 5” de Juscelino, o financiamento estatal para a entrada das multinacionais no país e para a concentração de terras no período da Ditadura Militar para culminar, no período petista, no assim dito “desenvolvimentismo lulista”.
O estamento burocrático-político
Como resultado desse papel do Estado na economia, desenvolveu-se um estamento burocrático encastoado nas altas esferas estatais e nas altas esferas da política que tem um peso econômico e político que, se varia segundo o período histórico, tem sido sempre muito grande.
O funcionamento desse estamento político-burocrático está, hoje, escancarado. Os casos da Odebrecht e da JBS são típicos. O toma-lá-dá-cá entre esse estamento e o capital privado, milhões em corrupção é a contrapartida da transformação desses empresários de nacionais em “multinacionais” graças aos financiamentos ajeitados pelo estamento burocrático-político. Do “outro lado”, amealha-se a fortuna de milhões do filho de 7 anos de Temer! O pagamento de propinas se tornou tão organizado e racional que a Odebrecht criou até mesmo um departamento para cuidar das mesmas, o famoso “Departamento de Operações Especiais”. Estradas, dormitórios e estádios para as Olimpíadas ou Copa do Mundo, compra de material didático ou de remédios, merenda escolar ou equipamento bélico — tudo é “azeitado” pelas propinas, pela corrupção.
Hoje, em meio à crise, é possível delimitar os contornos desse estamento político-burocrático até os seus integrantes mais importantes: no Congresso, na ala mais tradicional, temos Cunha, Sarney, Jucá, Temer, os Maia (pai e filho), Moreira Franco, Carlos Marun ao lado dos novos integrantes, Lula, Aécio Neves, Genoíno, José Dirceu, Dilma, Garotinho, Cabral etc.; do lado do Estado, Guido Mantega, Palocci, Paulo Bernardo, Paulo Rabelo de Castro, Armínio Fraga, Graça Foster, a alta burocracia do BNDEs, do Banco do Brasil, da Caixa Econômica, dos Fundos de Pensão, do Banco Central etc. Com uma vasta ramificação que passa dos centros decisórios nacionais aos Estados e Municípios.
Essa ramificação se generalizou. Em plena “farra dilmista”, até a liberação do pagamento para as empreiteiras locais da construção das “minha casa, minha vida” em cidades pequenas dependia de pagamento de um “agrado” ao gerente da Caixa Econômica local! A construção da infraestrutura para as Olimpíadas e a Copa do Mundo, programas como “minha casa, minha vida” etc. possibilitaram a esses ramos mais distantes de Brasília acesso a um volume de corrupção que nunca tinham antes visto – exemplar, nesse processo, é o caso do Rio de Janeiro. O poder econômico e político do estamento burocrático-político nunca foi tão forte e ramificado pelo país afora.
Esta situação só se tornaria um problema depois que a crise de 2008. Mas, até lá, não se reclamava nem da corrupção nem da bandalheira”.
A genialidade política de Lula
Desde os últimos anos dos governos FHC, o Brasil foi se tornando um dos mais lucrativos investimentos para o grande capital. Com um governo “confiável”, uma classe operária “dócil”, uma vasta força de trabalho desempregada e submetida a uma elevada taxa de exploração e, além disso, com matérias-primas baratas e abundantes, energia subsidiada pelo Estado, terras virgens ainda a serem ocupadas etc. – com tudo isso o Brasil se converteu em um dos investimentos preferidos do grande capital financeiro.
A entrada desses capitais fez a festa dos governos petistas. Eram os anos em que planejavam permanecer no poder até 2028 (Lembram-se do plano? Depois de um governo Dilma, mais dois governos Lula?). Foi o apogeu do “desenvolvimentismo petista”: estradas, casas, usinas hidroelétricas, biocombustíveis, pré-sal, etc. Com duas consequências. A primeira, o apoio incondicional da parcela da burguesia que se locupletava (os Odebrechts da vida) e, a segunda, a adesão ao bloco petista da parte majoritária e mais forte do estamento político-burocrático que mencionamos acima. As propinas que as inversões do Estado propiciavam comprariam a adesão desse estamento aos petistas. Cunha, Temer, Renan Calheiros, Jucá, Sarney, os Maia (do Rio), Collor etc. passam a descobrir as virtudes dos petistas. (Tal como hoje Paulo Paim, deputado federal pelo PT, reconhece hoje os méritos de Collor).
O restante da burguesia, ainda que não diretamente favorecida pelos investimentos estatais, também apoiava o governo petista, por duas razões. A primeira, porque o aquecimento da economia também aquecia seus negócios. A segunda, porque isenções e mais isenções de impostos impulsionavam indústrias chaves, como a automobilística e a da “linha branca” (geladeiras, fogões etc.), a extração de minérios e a exportação de matérias-primas e assim por diante.
Como bem-vindo efeito colateral desse toma-lá-da-cá, o aquecimento da economia gerava empregos e melhorava a sorte de setores significativos da classe média. O bolsa-família e programas congêneres davam a impressão – falsa impressão – de uma distribuição de renda. O aumento dos salários dos professores universitários comprou o silêncio, quando não o apoio entusiasta, desse importante setor “formador de opinião pública”, etc., etc.
Foi assim que Lula se tornou o preferido de Obama, do conjunto do capital, do agronegócio e do conjunto dos trabalhadores. Era uma unanimidade nacional! Como duvidar que esse “simples operário” fosse, de fato, um “gênio da política”, um “estadista de porte internacional”?
Foi nesse clima de “felicidade geral” que os petistas acrescentaram ao estamento político-burocrático uma sua contribuição específica: a burocracia sindical. A aristocracia operária, base social e política da burocracia sindical, passou a ser sócia minoritaríssima na repartição da corrupção. Milhares de cargos para sindicalistas foram criados no Estado, os fundos de pensão passaram a ter nos sindicalistas diretores e dirigentes de peso, foi retirada a fiscalização do TCU das contas das centrais sindicais e, então, a farra sindical com dinheiro do Estado se tornou oficial.
Tudo parecia indicar que a estratégia petista daria certo: nada ameaçava a permanência de Lula em Brasília por mais tempo que Getúlio Vargas no Catete.
A crise de 2008 pôs tudo a perder.
Ao se instalar a crise, era notório que terminara a fartura de recursos do período imediatamente anterior. Quem pagaria pela crise?
Não dava mais para agradar a todos, alguém tinha que perder. A pressão subiu entre as camadas dirigentes.
A parcela da burguesia que não se reproduz “mamando nas tetas do Estado”, como diz Gaspari, passou a precisar do “apoio do Estado” para atravessar a crise. Tinha, para isso, que diminuir a parcela da riqueza abocanhada pelo estamento político-burocrático (os números não são seguros, mas fala-se que 46% do todos dos investimentos no país vinham do Estado e geravam propinas; alguns cálculos indicam que R$ 600 milhões passam diariamente às mãos do estamento político-burocrata via corrupção).
Frente à crescente pressão e avaliando equivocadamente que a crise seria passageira, os petistas cometeram seu maior erro estratégico. Decidiram privilegiar aqueles aliados que, julgavam, seriam os mais fiéis, pois mais dependentes do Estado. O estamento político-burocrático, evidentemente. Em seguida, os setores da burguesia mais dependentes das encomendas estatais (as grandes empreiteiras, a construção civil, uma parte do agrobusiness e o capital interessado nos grandes eventos). E, por fim, a burocracia sindical, a CUT e a central do PC do B. Avaliavam que, com esse “arco de alianças” garantiriam apoio suficiente no Congresso e entre o empresariado para sobreviver à crise que, repetimos, na avaliação deles, seria curta. Foi assim que Temer virou vice-presidente.
Erro mortal! Deixaram fora do poder todo o restante do grande capital. Metalurgia, eletro-eletrônica, papel e celulose, química, automobilística etc. etc. – ou seja, praticamente todo o grande capital industrial – mais a maior parte dos bancos, do comércio e uma parte do agrobusiness. A estratégia petista formou contra ela “um arco de alianças” impossível de ser derrotado. O fim do petismo era questão de tempo.
Intensificaram-se as denúncias de corrupção, a Lava a Jato entrou em ação com o apoio dos órgãos de imprensa mais importantes; Moro se tornou personalidade internacional e vários dos operadores-chave do estamento político-burocrático e vários dos empresários integrantes do “bloco petista” foram para a cadeia. A Fiesp, a Febraban, uma enorme quantidade de entidades patronais, entraram agressivamente em campo. Publicaram manifestos e manifestos contra o governo, organizaram manifestações, conspiraram o quanto puderam. A luta era pra valer entre estes setores da burguesia e o estamento político-burocrático.
Foi para desmontar o esquema articulado a partir do Planalto que veio o impeachment da Dilma. As “pedaladas fiscais” foram só o pretexto: o PT se tornara um elo decisivo da corrupção que concentrava os recursos no Estado no estamento político-burocrático e nos setores do capital eleitos pelos petistas como seus aliados preferenciais.
O desenvolvimento da crise política a partir de então foi marcado pela dissolução do “bloco petista” no poder. Os primeiros a abandonar o barco foram os “donos do Congresso”. Velhas raposas, burocratas e políticos de décadas, que conhecem as mazelas e os meandros do poder estatal, perceberam que era melhor negociar com o grande capital do que enfrentá-lo. Mas negociar a partir de uma posição de força, visando a sobrevivência do estamento político-burocrático. Temer, aliado de Cunha, ungido vice-presidente por Lula para “garantir” o apoio do Congresso, entrega a cabeça de Dilma para o grande capital.
Logo foram os “companheiros” da CUT e dos sindicatos que mostraram o quanto vale sua lealdade. Fizeram manifestações contra o impeachment na medida exata para que não fossem acusados de “cúmplices” dos “golpistas” e, também na medida exata para que as manifestações não inviabilizassem o impeachment da “companheira Dilma” (do mesmo modo como têm feito manifestações “contra” a reforma trabalhista e “contra” a reforma da previdência, em nossos dias).
Sobrou para o PT o apoio do MST apelegado e das pesquisas de opinião pública que colocam Lula como o favorito para as eleições deste ano.
A disputa no interior do estamento político-burocrático também se acentuou. Temer teve que pagar literalmente bilhões para os congressistas não entregarem sua cabeça à justiça. Alguns setores vão perdendo a disputa (por exemplo, a “sucursal” do Rio de Janeiro do esquema das propinas), mas quem é mais rapidamente expulso da festa é a burocracia sindical que, lembremos, foi trazida ao “poder” pelos petistas. A reforma sindical inclui o fim do imposto sindical e fala-se no retorno da fiscalização do TCU sobre as verbas transferidas às centrais sindicais pelo Estado.
A burocracia sindical sente o golpe e passa a negociar: promete se comportar não agitando as massas contra o impeachment da Dilma e, depois contra as reformas trabalhista e previdenciária. Topa perder, desde que não “em demasia”. Com isso dá um tiro em seu próprio pé: sem o apoio das massas nas ruas contra as reformas, também não tem força para negociar o que gostaria. Perde o imposto sindical não apesar, mas porque se “comportou” na defesa dos trabalhadores.
A “ofensiva” de Temer
Acuado, o estamento político-burocrático fez valer seu peso histórico. Através de manobras e contramanobras, de vais-e-vens, de alianças e traições, de delações premiadas e morte de testemunhas, de compras de falsos testemunhos e esquemas milionários, como o de Cunha, para manter peças chaves de boca fechada, etc., o estamento burocrático-político se reorganizou sob Temer e Rodrigo Maia (presidente da Câmara dos Deputados). Então, fez perceber aos do bloco “da oposição” que a única alternativa é a negociação.
Eles aceitam rifar o governo petista, através do impeachment da Dilma; topam reduzir o nível da corrupção (isto é, a parcela da riqueza nacional que fica com eles); topam aprovar no Congresso legislações impopulares — desde que não seja colocada em risco a sua própria sobrevivência. Aceitam até mesmo que alguns dos seus sejam presos (Cunha, Garotinho, Cabral etc.) desde que a estrutura de poder ao redor de Cunha, Temer, Maia, Jucá, etc. se mantenha mais ou menos intacta. Vão vendendo caro cada reforma que o capital necessita: desde a flexibilização da entrada de capital estrangeiro na Petrobrás e nos campos do pré-sal, no início do governo Temer, até a reforma trabalhista do ano passado.
A resistência do estamento político-burocrático teve efeito e, em alguns poucos meses, o grande capital começou a mudar a sua postura.
Logo após o impeachment da Dilma, discutia-se abertamente se não seria o caso de se botar Temer abaixo, também. Jornais como o Estadão e a Folha eram claramente simpáticos a essa tese. A resistência do estamento político-burocrático os fez enxergar a realidade: a não ser por um golpe, não havia como se livrar do Congresso tal como ele é hoje. As tentativas de impeachment do Temer não dão em nada, ele resiste às pressões… O Estadão é o primeiro a mudar de posição: se Temer é ruim, a alternativa de um golpe é ainda pior. Logo em seguida, o Estadão começou a defender a limitação da Lava-Jato e, num momento posterior, passa a atacar o judiciário no que este tem de calcanhar de Aquiles: os salários e privilégios. O mote do Estadão passa a ser: não é possível jogar todos os políticos nas prisões de Curitiba, isto seria ir longe demais. Há que se colocar um limite!
Foi então que estamento burocrático-político colheu sua maior vitória: todas as pressões do grande capital “de oposição” para que o Congresso aprovasse a reforma da previdência, fracassam! Os políticos e burocratas estão mostrando sua força e, a burguesia, arrega! Não se fala mais, então, em derrubar Temer, mas discute-se qual o candidato a substituí-lo a partir de 2018. Há, de fato, parece reconhecer o grande capital “da oposição”, que negociar com o estamento político-burocrático, derrotá-lo não seria possível.
A intervenção no Rio de Janeiro
Sentindo-se fortalecido , Temer decidiu passar à iniciativa. Promoveu a intervenção no Rio e se declarou candidato à eleição presidencial. Do alto de seus 90% de rejeição, sabe que o decisivo para as eleições não é o apoio popular. A intervenção, como disse alguém, foi um “golpe de mestre”. Temer posou de sheriff nacional contra o crime e trouxe para o seu lado o prestígio e o apoio da burocracia fardada. Como parte do acordo com os militares, Temer entregou a eles diversos cargos importantes no governo, inclusive o Ministério da Defesa, desde 1988 ocupado sempre por um civil.
A situação no Rio de Janeiro é apenas mais grave e aguda do que a situação no restante do país. Está longe de ser uma situação única e exclusiva. Desde há muito o poder do crime organizado e desorganizado constitui um dos importantes fatores da “governabilidade”: sem um acordo com o crime, não apenas o controle da violência, mas o controle do próprio crime torna-se inimaginável. Nem a Ditadura Militar conseguiu quebrar a força do jogo do bicho. De lá para cá, com as drogas e o comércio de armas, a situação apenas se agravou.
Ao longo dos anos foi sendo construído um modo de convivência: dentro de limites e em áreas geográficas delimitadas, o tráfico de drogas e armas, prostituição e jogo do bicho são permitidos pelos governantes. Mas a lógica não se interrompe aí.
Tal como o estamento político-burocrático que, a partir de seu poder no Estado, cobra sua taxa de corrupção, os policiais também cobram dos criminosos sua “caixinha”. Esta última nada mais é que a versão pobre do esquema de corrupção administrado pelos Temers e Cunhas da vida. Há dados que indicam que a “caixinha” era, há alguns anos, quase o dobro do total que o Estado do Rio de Janeiro então pagava de salários aos policiais.
Além disso, o capital envolvido nas drogas e armas precisa ser “lavado”: a conivência, se não a participação ativa, das altas autoridades da segurança e, por extensão, dos governos estaduais e municipais, é um pressuposto indispensável para esta lavagem. A qual, ainda, interessa a uma enorme quantidade de doleiros e alguns grandes banqueiros. Essa enorme base social – traficantes, policiais, burocratas de todos os escalões do Estado, banqueiros, doleiros e, não nos esqueçamos, de juízes e procuradores – possuem uma força de pressão considerável sobre os governos cariocas os quais, por sua vez, não se fazem de rogados em ceder a estas pressões desde que, claro, recebam sua parte do butim.
Esse esquema estadual apenas pode se manter com uma articulação com o esquema nacional. Os no poder em Brasília devem receber “o seu” para não apoiarem as forças de “oposição” no Estado, por sua vez os “de Brasília” devem, pela alocação das verbas federais, abrir oportunidades para que o estamento político-burocrático nos Estados se locuplete com a corrupção decorrente. O Pan-Americano e as Olimpíadas que não me deixem mentir. Garotinho e Cabral são apenas os casos mais emblemáticos dessa articulação entre a corrupção federal, a corrupção carioca, os traficantes e os milicianos.
Esse esquema se equilibrava precariamente, mas se equilibrava, até alguns anos atrás. Havia momentos de maior tensão e violência intermediados por outros de pacificação aparente. Mas nada semelhante ao que hoje vivemos no Rio de Janeiro. A crise econômica e o agravamento das tensões sociais é o pano de fundo desta explosão. A desarticulação do bloco petista no poder, as disputas no interior da burguesia e do estamento político-burocrático, a Lava-Jato e suas consequências etc. são fatores que também contribuíram para romper o antigo equilíbrio.
A causa imediata e direta desta explosão é a disputa entre os milicianos e os traficantes pelo controle de áreas inteiras da cidade. Em poucas palavras, grupos de policiais descobriram que podiam disputar com os traficantes o controle de áreas de periferia da cidade. Tal como os traficantes, a partir deste controle eles vendem serviços à população, vendem “segurança” acima de tudo e, ainda, podem cobrar pedágio dos traficantes para que “operem” nas áreas sob seu controle. Essa é uma atividade muito mais lucrativa que simplesmente a tradicional “caixinha”.
Além do conflito entre policiais e traficantes, agora surge um novo, mais agudo e violento conflito, entre os milicianos e os traficantes. Diferente do confronto policiais-traficantes, temos agora um conflito entre dois grupos armados ilegais e semiclandestinos: um conflito para além do Estado. As UPPs serviram de fachada legal para o estabelecimento das milícias – e não passaram muito disto.
A intervenção tem uma direção precisa: trata-se de combater o crime organizado e não as milícias. A corrupção entre as forças de repressão, desde juízes e procuradores até o policial mais modesto, não será alvo da ação das Forças Armadas. Afinal, direta ou indiretamente, eles são sócios e aliados do esquema de corrupção que articula, em infinitos canais, a podridão de Brasília com a violência nas periferias das grandes cidades.
Foi a intervenção que criou as condições para a execução de Marielle Franco.
A execução
No ambiente social do Rio de Janeiro, não há mais lugar para o meio-termo. Não por uma questão de radicalização das opiniões, mas pela radicalização da situação real. No conflito entre milicianos e traficantes, quem apoia os direitos humanos está ao lado dos traficantes contra os “de bem”, como os milicianos se autodenominam. E isto independente do desejo ou da inclinação das pessoas, tem um elevado grau de veracidade. Quem milita em uma favela como a Maré sabe muito bem que não é possível uma atuação qualquer sem a anuência do chefe do pedaço, traficante ou miliciano. Não é improvável que a vereadora do PSOL tenha recebido, sem que tenha solicitado ou que tenha negociado, o apoio eleitoral do tráfico da Maré. E, a bem da verdade, seja lembrado que a maior parte de seus votos veio das regiões mais ricas da cidade e não das favelas.
Com a intervenção, os milicianos entenderam o recado: é a oportunidade para ocupar as áreas que o Exército vai tomando do crime organizado, é o momento de se expandirem e, por isso, é também a hora de calar quem denuncia a expansão dos milicianos e as suas consequências. Os democratas e defensores dos direitos humanos não são apenas adversários ideológicos, são também aqueles que “atrapalham os negócios”. É, hora, além disso, de acertar velhas contas.
Quem executou Marielle? Temer com sua intervenção, para começo de conversa. Mas só para começo, pois o fundo do poço é muito mais embaixo. Não é por acaso que, mais de 10 dias depois, apenas se sabe que vieram da Polícia Federal as balas do crime. E nada mais!
Enquanto isso…
Enquanto isso, o “arco de alianças” na nossa pobre esquerda eleitoreira nada mais faz do que clamar por uma melhor a mais justa administração do único Estado que o capital pode nos oferecer neste país. Para essa esquerda, a solução não está em superar o capital, mas em administrá-lo com maior eficiência e justiça: elejam a nós que tudo isso será resolvido. Do PSOL ao PCB, do PC do B ao PSTU, do MST ao MTST, o clamor é um só: nos elejam!
Pobre essa esquerda que não consegue – nem nessas circunstâncias – ir além do horizonte eleitoreiro burguês. Mas há, para isso, uma razão de fundo: são também, ou gostariam de ser, financiados pelas verbas estatais. As mesmas verbas que servem à corrupção e, em outras mãos, executaram Marielle. Bem pesadas as coisas, são apenas a ala esquerda do Partido da Ordem – se é que o Partido da Ordem tem uma ala esquerda.