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O que ensinar


20 de abril de 2018

Este texto é uma contribuição individual que não necessariamente expressa a opinião da organização e por este motivo se apresenta assinado por seu autor.

Prof. Dr. Rafael Rossi1

Uma inquietação sempre presente entre estudantes de graduação em licenciaturas e, também, perante profissionais da educação já em exercício diz respeito ao que devem ensinar na atualidade, frente a um mundo cheio de tecnologias e informações. Inúmeras teorias educacionais contemporâneas e relativistas afirmam que se deve formar “integralmente os indivíduos” em seu aspecto cidadão, ético, moral, científico, artístico, cultural etc. Outras teorias, por sua vez, afirmam que o desafio está em os professores se apropriarem das novas tecnologias (lousas digitais fazem sucesso nesta área) para, supostamente, desenvolverem uma “aprendizagem significativa”. São verdadeiramente raras as teorias que discutem a educação em suas articulações com os limites e as possibilidades desta sociedade na qual vivemos. São raras, portanto, as análises dos “grandes” teóricos da educação que refletem sobre esta dimensão social em confronto com o processo histórico real em suas possibilidades concretas e seus obstáculos.

Cartas na mesa: vivemos na sociedade capitalista. Esta sociedade tem como objetivo maior – que subjuga todos os outros interesses – a produção do lucro a partir do processo de produção das mercadorias. As classes fundamentais, porém não únicas, são: 1) os capitalistas que possuem a propriedade privada dos meios de produção, ou seja, das máquinas, instalações, fábricas, fazendas, etc. e que possuem a sua riqueza fundada a partir da exploração do trabalho alheio e; 2) os trabalhadores, que vivem da venda de sua força de trabalho em troca do salário para sobreviverem, sendo que cabe apenas aos trabalhadores proletários a produção das condições materiais da existência social, isto é, vários trabalhadores vivem de seu salário, todavia, apenas os proletários produzem efetivamente os prédios, as máquinas, o asfalto, os combustíveis etc. Em outras palavras: apenas o proletariado realiza, de fato, o trabalho manual nesta sociedade capitalista.

Estas duas classes sociais fundamentais não vivem uma ciranda, não vivem em harmonia e paz. Justamente o contrário: vivem em luta. Os interesses de uma classe são antagônicos aos interesses da outra. Não se trata dos interesses deste ou daquele capitalista, deste ou daquele trabalhador, mas do interesse que se origina da natureza íntima da classe a que pertencem: se os capitalistas não tiverem como objetivo máximo a produção do lucro fundada com base na exploração do trabalho assalariado, deixarão de se manterem enquanto capitalistas. Com relação aos trabalhadores, seu interesse mais essencial é a abolição do sistema de assalariamento, a destruição do Estado e do sistema do capital que é a base do modo de produção capitalista. Não interessa à classe trabalhadora “melhorar” ou “reformar” o capitalismo, já que isso é absolutamente impossível. Interessa à classe dos trabalhadores a transformação radical desta forma de sociabilidade.

Tudo isto não é invenção de algum marxista qualquer. Trata-se, na realidade, de fatos reais, de relações que existem concretamente na sociedade! Perante este panorama geral e breve, cabe a pergunta: o que devemos ensinar nas escolas públicas? Em primeiro lugar é preciso dizer com todas as letras: precisamos refletir criticamente a respeito das respostas rápidas que nos aparecem cotidianamente na educação. A cada semestre surge um autor, um intelectual, uma metodologia “inovadora”, uma “técnica” etc. que prometem grandes soluções e, na prática, pouco ou quase nada resolvem.

Refletir criticamente é analisar os pressupostos – explícitos ou implícitos – dos diversos discursos e propostas pedagógicas que nos são apresentados e confrontá-los com o modo de funcionamento desta sociedade, com seus limites e seus obstáculos. Para isso, obviamente, é preciso, ao menos, dois estudos: um estudo de todo o processo histórico do processo em que o ser humano se forma enquanto membro da humanidade, como as distintas sociedades se estabeleceram e esfacelaram e, ao mesmo tempo, como a sociedade capitalista surgiu, como se constituiu, como funciona, quais as suas leis essenciais etc. Sem termos, ao menos, estes dois estudos como prática cotidiana para analisarmos e refletirmos criticamente aquilo que nos aparece como “grandes saídas e soluções educativas”, tenderemos a confundir uma série de questões que, ao fim e ao cabo, contribuirão ainda mais para a pobreza científica e intelectual que assola a maioria das escolas públicas hoje.

Os trabalhadores tentam, cada vez num ritmo mais frenético e insano, qualificar sua força de trabalho para uma vaga no mercado. Como já dizia Marx:

O trabalhador se torna tanto mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto mais a sua produção aumenta em poder e extensão. O trabalhador se torna uma mercadoria tão mais barata quanto mais mercadorias cria. Com a valorização do mundo das coisas aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens. O trabalho não produz somente mercadorias; ele produz a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e isto na medida em que produz, de fato, mercadorias em geral.2

Esta dinâmica social, cuja pobreza, miséria, desigualdades sociais, concentração de renda e destruição ambiental são expressões do seu movimento mais íntimo e da sua própria natureza, somente será superada – em sua totalidade – se os trabalhadores, com a liderança dos proletários, compreenderem criticamente (no sentido assinalado anteriormente) a estrutura da sociedade capitalista para poderem transformá-la essencialmente.

Desse modo, todos nós professores, devemos nos esforçar para:

  1. Ensinar com rigor e seriedade a especificidade da área em que atuamos. De nada adianta os filhos da classe trabalhadora – que frequentam as escolas públicas – debaterem sobre tudo na aula de matemática e, de fato, não terem se apropriado de nenhum conhecimento matemático. Isto vale para qualquer disciplina: de nada adianta falar do mundo inteiro e de todos os assuntos que se julgam relevantes se, nas aulas de geografia, física e química, por exemplo, não forem transmitidos conhecimentos próprios destas ciências.

  2. Refletir criticamente a orientação ideológica do ensino que estamos atuando. Isto quer dizer que a neutralidade e a imparcialidade são impossíveis. Toda aula, todo material didático, toda formação de professores, todo texto, toda palestra etc. estão imbuídos – de modo claro e direto ou não – de concepções de mundo, de ser humano e de sociedade que orientam a nossa prática social, isto é, estão imbuídos de posicionamentos ideológicos3. Aqui, também é importante o estudo da ideologia para além da sua contraposição simplista e positivista com a ciência. Refletir criticamente sobre a orientação ideológica do ensino que estamos realizando implica, deste modo, pensar qual a concepção de mundo, de sociedade e de ser humano que estamos transmitindo e para atender os interesses e as demandas de qual classe social.

  3. Transmitir o que de mais elevado a humanidade produziu no campo das artes, das ciências, da filosofia e história. Os trabalhadores não precisam de um conhecimento que se prende à imediaticidade da realidade social, à sua superfície, à sua aparência. Os trabalhadores precisam, para poderem transformar o mundo, de um conhecimento embasado cientificamente. Para isso é preciso transmitir estes conhecimentos mais elevados que a humanidade produziu ao longo da história e, para atingir isso, por sua vez, nós mesmos, precisamos nos apropriar constantemente deste patrimônio intelectual do gênero humano. Sem termos bases teóricas sólidas e respaldadas cientificamente, como iremos transmitir ciência aos nossos alunos?

  4. Compreender a especificidade da educação4. Não devemos romantizar a educação e entende-la como nossos sonhos ou utopias quisessem que ela fosse. Devemos entender a educação a partir de seu surgimento e desenvolvimento ao longo do processo histórico real. A educação, neste sentido, é uma dimensão da vida humana que possibilita a transmissão e a apropriação de conhecimentos, habilidades, valores, ideologias, comportamentos etc. que atendam os limites, as demandas e as possibilidades de uma determinada sociedade. A educação, por isso mesmo, muda os conhecimentos, por exemplo, a serem transmitidos e apropriados de sociedade para sociedade ao longo do tempo. Se continuarmos romantizando a relação educação e sociedade os livros de autoajuda continuarão a fazerem sucesso rápido e instantâneo perante aqueles que não querem ou não podem pensar seriamente a sociedade atual.

  5. Estudar a relação entre o Estado, o capital e a educação na sociedade capitalista. Muitos acreditam veementemente que quem controla as orientações e os rumos na educação é o Estado ou os próprios educadores em suas reuniões e reuniões para assinar papéis e mais papéis que, no final das contas, representam apenas um “novo remendo em roupa velha”. Quem manda na sociedade capitalista em todos os aspectos de nossa vida são os banqueiros, latifundiários, industriais, grandes comerciantes, grupos econômicos etc. Quem manda é o capital. O Estado não serve para ser colocado a favor dos trabalhadores. Muitos educadores ainda não estudaram seriamente este relacionamento e acreditam com todas as suas energias que precisam participar de reuniões nas secretarias municipais e estaduais de educação para lutarem por uma política pública assim ou assado, para lutarem por um currículo “x” ou “y” e se iludem nestes espaços e nessas reuniões. Ficam verdadeiramente encantados com a ilusão de que estão contribuindo nos rumos mais gerais da educação e do ensino. É preciso, novamente aqui, um conhecimento científico e histórico que mostre a origem do Estado e a sua articulação indissociável com o sistema do capital. Sem entender que há uma dependência essencial do Estado para com o capital, muitos educadores e intelectuais continuarão a se iludirem e a exigir da realidade algo que ela não pode oferecer.

  6. Lutar na educação e nas demais lutas sociais imprimindo-lhes um caráter contra o Estado e contra o capital. Os obstáculos que a sociedade capitalista nos coloca e que mutilam a nossa humanidade cada vez mais só serão superados não pela educação, mas pela transformação significativa da sociedade como um todo, acabando com qualquer tipo de exploração na realização do trabalho.

Portanto, vê-se que a questão sobre “o que ensinar e quais os obstáculos” se desdobra num aspecto teórico e prático. O aspecto teórico é indispensável para nos apropriarmos e transmitirmos os conhecimentos científicos mais elevados que a humanidade elaborou historicamente. Isto é um procedimento da mais absoluta importância para ser desenvolvido em todas as disciplinas com, cada qual, a sua especificidade. Engana-se quem pensa que é preciso discutir outros assuntos ou ter uma prática “inter, multi, pluri ou transdisciplinar” para garantir o compromisso político com seus alunos e com a educação. O compromisso político primeiro dos professores a favor da classe trabalhadora é se apropriar e transmitir a filosofia, ciência, arte e história mais desenvolvidos que os seres humanos criaram, pois é este patrimônio que possibilitará compreendermos criticamente a origem e o funcionamento desta sociedade e do processo humano em nos tornarmos membros do gênero humano.

Apenas” isso é extremamente raro na atualidade e extraordinariamente difícil em ser realizado. Jornadas exaustivas, condições de trabalho miseráveis, salários baixíssimos, escolas enlouquecedoras e alienantes etc. Tudo isso e muito mais colocam obstáculos e mais obstáculos para a realização da tarefa de apropriação e transmissão do patrimônio elaborado pela humanidade. Além disso, o próprio capitalismo e o capital não possibilitam que isso se realize de modo abrangente em todas as escolas. Não é esta uma possibilidade – em absoluto – existente na realidade da sociedade capitalista. Apenas pequenas experiências nesse sentido são possíveis.

Ao mesmo tempo também há uma tarefa prática em contribuirmos nas lutas educacionais e sociais num sentido contra o Estado e contra o capital, pois aí está o fundamento das desigualdades sociais e da exploração do homem pelo homem.

Todavia é preciso frisar mais e mais uma vez incansavelmente: se abandonarmos o estudo e o compromisso teórico em nossa própria formação, o comprometimento que teremos com nossos alunos filhos e membros da classe trabalhadora será nulo! Não será apenas baixo, mas nulo! Se a ciência não importasse aos interesses fundamentais da classe dos trabalhadores, bastariam ficar, então, com o senso comum. Entretanto, verificamos que os conhecimentos mais elevados que foram desenvolvidos e construídos pela humanidade historicamente são imprescindíveis para o entendimento crítico da sociedade e do mundo. Quem despreza a teoria, cai no imediatismo praticista irresponsável, quer dizer: cai em aventuras românticas, em ilusões e “saídas inovadoras” que apenas ajudam a confundir ainda mais a compreensão da realidade e, por isso mesmo, prestam um imenso serviço e um grande elogio ao capital e seus defensores!

Campo Grande – MS, 19 de abril de 2018.

1 Docente na Faculdade de Educação da UFMS em Campo Grande – MS. E-mail: rafaelrossi6789@hotmail.com Site: rafaelrossisite.wordpress.com

2 MARX, K. Manuscritos Econômico-Filosóficos. São Paulo: Ed. Boitempo, 2004, p. 80.

3 ROSSI, R. Educação e Ideologia: Uma análise Ontológica. Filosofia e Educação [RFE] – Volume 8, Número 2 – Campinas, SP, p. 141-166, 2016.

ROSSI, R. Ideologia: uma breve introdução. 2017 a. Jornal Espaço Socialista, n. 99. Disponível em: < http://espacosocialista.org/portal/?p=5078 Último acesso: mai. 2017.

4 A este respeito, ver os trabalhos de:

LEONTIEV, A. O desenvolvimento do psiquismo. São Paulo: Centauro, 2004.

ROSSI, R. Lukács e a Educação. Maceió: Coletivo Veredas, 2018.

TONET, I. Educação, Cidadania e Emancipação Humana. Ijuí: Unijuí, 2005.