Jornal 99: Ideologia: uma breve introdução
6 de maio de 2017
Rafael Rossi
Um debate “quente” no âmbito da reflexão científica e, principalmente, no seio do marxismo, com certeza, diz respeito ao entendimento sobre a ideologia e sua relação com a realidade social. Não é nosso intuito expor de modo detalhado toda esta discussão mesmo no interior do marxismo. O objetivo é explicitar, mesmo que de modo extremamente breve, os fundamentos mais gerais que nos permitem compreender quando determinadas ideias exercem ou não o papel de ideologia. Para tanto, partiremos das pistas deixadas pelo filósofo húngaro Gyorgy Lukács e, também, do próprio Marx. Entretanto, é igualmente importante afirmar que não estamos escolhendo estes autores por mero “gosto” ou “preferência acadêmica”. Ao contrário, tais pensadores nos deixaram indícios de suma relevância para a compreensão do que é ideologia a partir de seu exame em confronto com a própria realidade objetiva em seu processo histórico e, desse modo, não trataram de “fantasiar” ou “construir” suas reflexões de modo especulativo ou transcendental, mas sim, a partir da análise real do próprio processo de reprodução social.
É muito comum observarmos posicionamentos que consideram a ideologia como sinônimo de falsa consciência e, nesse modo de encarar a questão, tudo que é enganador, que escamoteia as contradições da realidade e que é falso seria, portanto, ideologia. Todavia, se isto fosse real, como explicar aquele conjunto de ideias que orientam a prática social numa postura revolucionária e, com isso, com pressupostos científicos verdadeiros?
Pois bem. Estamos convencidos de que na investigação de qualquer dimensão humana devemos sempre realizar uma análise que procure evidenciar 1) a gênese; 2) a natureza e; 3) a função social que esta atividade humana possui no processo de reprodução social. Agora, se escolhermos entender determinada dimensão social como a ideologia, por exemplo, apenas escolhendo a definição que mais nos agrada, estaremos colocando a nossa subjetividade. Ou seja, o nosso querer acima daquilo que a própria realidade social demonstra em seu processo histórico.
Se procedermos do primeiro modo (buscando a gênese, a natureza e a função social) veremos que a ideologia já existia antes do surgimento das sociedades cindidas em classes sociais com interesses antagônicos e inconciliáveis. Nesse período, a ideologia se consubstanciava naquele conjunto de concepções de mundo que efetivamente orientavam a práxis social dos seres humanos. À medida que os seres humanos desenvolviam os atos de trabalho (no sentido da relação orgânica da sociedade com a natureza para a produção de valores de uso), uma série de comportamentos, habilidades, técnicas, conhecimentos, valores etc. foram sendo elaborados e contribuindo na formação do patrimônio material e espiritual da humanidade. Alguns conhecimentos, valores e concepções de mundo ofereciam orientações práticas à vida cotidiana e, precisamente aqui, podemos perceber a gênese da ideologia num sentido amplo.
Por volta de 12 mil anos atrás com a Revolução Neolítica houve o surgimento de uma categoria que nunca antes havia existido na história da humanidade: o trabalho excedente. Agora, o que o indivíduo produzisse era superior à sua capacidade de consumo individual. Porém, ainda assim, a soma de toda a produção social era insuficiente para atender às necessidades de todos os indivíduos. Isto representou um salto fundamental na humanidade, pois se tornava uma possibilidade real e concreta a exploração do ser humano por outro ser humano. Algumas tribos passaram não só a saquear outras tribos, mas também, a escravizar seus membros. Antes da Revolução Neolítica todos os indivíduos de uma determinada comunidade tinham que trabalhar para poderem garantir a sobrevivência do bando. Após este salto qualitativo essencial que a entrada em cena do trabalho excedente representou, abriu-se a possibilidade de colocar uma parte dos indivíduos para vigiar, por meio da violência, outros seres humanos em situação de escravidão.
Estamos assistindo o surgimento das classes sociais que estão umbilicalmente articuladas à introdução da propriedade privada (entendida aqui enquanto o fato de uma classe se apropriar privadamente do fruto do trabalho de outra classe). No âmbito das sociedades de classes (seja a sociedade escravista, a sociedade feudal ou a sociedade capitalista) a função social da ideologia passa a ser a orientação da práxis social perante um conflito social real entre as classes sociais fundamentais daquela formação social específica.
Relevante chamar a atenção para o fato de que uma vez que surgiram as classes sociais, são elas que se conformam no sujeito fundamental – porém não único – do conhecimento. Isso ocorre porque são as classes sociais que colocam determinadas exigências e interesses no que diz respeito à produção do conhecimento e, com isso, os indivíduos irão pesquisar de modo consciente ou não a partir destas mesmas exigências e interesses. Este processo nos indica a impossibilidade real da exigência de uma “neutralidade ideológica” na ciência ou na educação, por exemplo.
Em Marx, basicamente, verificamos a existência de dois sentidos de ideologia. O primeiro e mais famoso está presente no seu livro escrito com Engels intitulado “A Ideologia Alemã”. Nessa obra o pensador alemão denuncia a inversão idealista realizada pelos filósofos alemães que, de modo geral, não paravam para analisar a vinculação de suas ideias, discursos e teses com as condições materiais da existência social. Por isso, mesmo eles afirmaram que “totalmente ao contrário da filosofia alemã, que desce do céu à terra, aqui é da terra que se sobe ao céu”, ou seja, é a partir da realidade social e concreta que se analisa as concepções ideológicas.
Outro sentido de ideologia está presente em Marx no seu famoso “Prefácio de 1859” e, inclusive, é deste texto que Lukács parte para a consideração da ideologia como função social. Uma ideia ou uma teoria científica só pode se converter em ideologia, de acordo com Lukács, depois de terem se transformado em “veículo teórico ou prático” para resolver conflitos sociais.
Lukács cita como exemplo a astronomia heliocêntrica e a teoria do desenvolvimento da vida orgânica em que ambas se constituíram em ideologia apenas depois da atuação de Galileu ou Darwin, pois a partir de suas elaborações, outros puderam utilizar seus posicionamentos para travar combates “em torno dos antagonismos sociais” e, com isso, elas “se tornaram operantes” enquanto ideologias.
Em síntese, podemos entender a ideologia como uma forma específica de resposta prática às exigências e conflitos sociais desencadeados pelas classes sociais. Algumas ideologias podem se utilizar de conhecimentos científicos verdadeiros ou de falsidades para sua operacionalização. Todavia, como vimos, não é o critério de verdade ou falsidade que determina o que é ou não uma ideologia, mas sim, a sua função social em tornar a práxis social consciente e operante frente a um conflito social real e concreto.
Com o desenvolvimento do ser social, certamente, também ocorrerá o desenvolvimento e a complexificação da ideologia enquanto um complexo social. Teremos ideologias puras (pensemos na filosofia e na grande arte) e ideologias específicas (o direito e a política, por exemplo). De modo bem sucinto, as ideologias específicas estão voltadas para a ação direta sobre o complexo social da economia e as ideologias puras dirigem-se à percepção do indivíduo enquanto membro do gênero humano e, por isso mesmo, estão voltadas ao para-si.
O critério mais apropriado para a análise das ideologias deve ser a função que ela desempenha no processo de reprodução social e, portanto, a sua própria vinculação e interferência prática na realidade objetiva. A ideologia, nos dizeres de Lukács, é uma forma de “elaboração ideal da realidade que serve para tornar a práxis social humana consciente e capaz de agir”. Certamente o poder de influência e interferência prática da ideologia dominante é muito maior do que o de ideologias críticas e revolucionárias, já que o poder da ideologia não se justifica por si mesma, mas sim, emana do solo social e da classe à qual está vinculada.
Sugestão de estudos:
De Marx é fundamental a leitura de seu “Prefácio de 1859”. De Lukács, compreendemos que o estudo de sua Ontologia continua a ser tarefa indispensável para a práxis revolucionária hoje. De Sergio Lessa sugerimos seu livro “Para compreender a Ontologia de Lukács” e de Ivo Tonet seu “Método Científico: Uma abordagem ontológica”. De Ester Vaisman a sua tese de doutorado intitulada “A determinação marxiana da ideologia”. A respeito da articulação entre trabalho e ideologia na luta socialista, sugerimos nosso texto “Trabalho, Ideologia e Emancipação Humana” disponível em: rafaelrossisite.wordpress.com