Jornal 96: Agronegócio tenta melar o carnaval da Imperatriz
29 de janeiro de 2017
“O belo monstro rouba as terras dos seus filhos
Devora as matas e seca os rios
Tanta riqueza que a cobiça destruiu!”
(Samba-enredo da Imperatriz Leopoldinense em 2017)
Agronegócio tenta melar o carnaval carioca da Imperatriz Leopoldinense
Alex Brasil*
O senador Ronaldo Caiado (DEM) e ex-presidente da União Democrática Ruralista (UDR) declarou as suas intenções em propor no Senado uma sessão temática “para discutir, debater e descobrir os financiadores da Imperatriz Leopoldinense e os interesses em denegrir o agronegócio”. Acrescentou o fazendeiro Caiado que “com tantos problemas no país, que sofre com traficantes, bicheiros e facções, causa perplexidade uma escola de samba atacar o agronegócio, orgulho do País, que é o único setor que gera tantos resultados positivos”
No embalo das declarações do ex-presidente da UDR, as Associação dos Fornecedores de Cana de Piracicaba (Afocapi), Cooperativa dos Plantadores de Cana do Estado de São Paulo (Coplacana), a Cooperativa de Crédito Sicoobcocre e o Sindicato Rural de Piracicaba e Região (Sindirpi) manifestaram o seu repúdio ao enredo da Imperatriz, “Xingu – O clamor que vem da floresta”, samba composto por Moisés Santiago, Adriano Ganso, Jorge do Finge e Adriano Senna.
Caiado, líder de um expressivo segmento da classe dominante (os latifundiários), buscou responder aos interesses corporativistas deste setor. Aliás, a UDR, do qual foi presidente, entre 1986 a 1989, chegou, no auge das suas atividades, a um índice de assassinatos no campo brasileiro que redundou no número de 640 vítimas. Por isso que Caiado, quando candidato à Presidência da República em 1989 pelo Partido Social Democrático, foi expulso, em carreata que tentou organizar pela sua campanha no centro do Rio de Janeiro naquele período, à base de pedradas arremessadas por manifestantes populares aos gritos de “Arame farpado, na bunda do Caiado!”
Já o aparente “oponente” do agronegócio na polêmica em questão, Luiz Pacheco Drummond (patrono da Imperatriz e contraventor), em meio a imbróglio, afirmou que a escola de samba apresentou um enredo, de autoria do carnavalesco Cahe Rodrigues, que fala sobre a “rica contribuição dos povos indígenas do Xingu a cultura brasileira e tenta transmitir uma mensagem de preservação e respeito a natureza e a biodiversidade”.
Insistindo na defesa do enredo da escola, Drummond discorreu que os “relatos da própria população que vive na região do Xingu mostra que o povo ainda é alvo de disputas e constantes conflitos. A produção, muitas vezes sem controle, as derrubadas, as queimadas e outros feitos desenfreados em nome do progresso e do desenvolvimento afetam de forma drástica o meio ambiente, além de comprometerem o futuro de gerações vindouras”.
Para aliviar a polêmica com o agronegócio, acrescentou o bicheiro: “Esclarecemos que no trecho de nosso samba ‘o Belo Monstro rouba a terra de seus filhos, destrói a mata e seca os rios’ estamos nos juntando às populações ribeirinhas, às etnias indígenas ameaçadas, aos ambientalistas e importantes setores da sociedade que se posicionaram contra a construção da usina hidrelétrica de Belo Monte. Não é uma referência direta, portanto, ao agronegócio, como alguns difundiram”.
Um histórico da escola Imperatriz Leopoldinense, sob o comando do banqueiro do jogo do bicho Luizinho Drummond
Para muitos, com essas declarações, Luizinho estaria se enfrentando com o agronegócio. Muita calma nessa hora. Antes que os mais descuidados caiam nesse engodo midiático, é sempre bom lembrar que a escola verde-branco, que o “banqueiro” patrocina, se afirmou no carnaval carioca como “escola chapa branca”: ora, de uma pequena agremiação do subúrbio carioca de Ramos (produtora de sambas-enredos ontológicos, mas considerada escola “ioiô”, sobe e desce) a Imperatriz virou uma das potências do carnaval carioca do Rio de Janeiro.
Seu primeiro ensaio nesse sentido foi antes de Luizinho Drummond. O enredo de 1972 (“Martim Cererê”), com o extraordinário samba de Zé Catimba e Gibi, virou trilha sonora da novela da Globo “Bandeira Dois”, do dramaturgo comunista Dias Gomes. Ninguém percebeu a ironia de Dias, em mesclar um samba sobre o “Brasil Grande” (propaganda da ditadura militar) com o submundo dos bicheiros do subúrbio do Rio de Janeiro, protagonizados pelos rivais Turcão (Paulo Gracindo) e Jovelino Sabonete (Felipe Carone). A pequena agremiação chegou pela primeira vez entre os quatro primeiro lugares.
Porém, depois de ser novamente rebaixada, de 1980 a 2016, a escola de Ramos pontificou como uma das maiores forças do carnaval do Rio: conquistou oito títulos no carnaval carioca, só perdendo para a Beija-Flor em número de conquistas nesse período. Entre os sambas que possibilitaram essas conquistas, estão o belíssimo “Liberdade, Liberdade, Abra as Asas Sobre Nós!”, de Nilitinho Tristeza, Jurandir, Vicentinho e Preto Jóia, todo ele voltado, reacionariamente, para a História Oficial, ou seja, a “História dos Vencedores”.
Diga-se de passagem, que a grande rival da Imperatriz que a superou em conquistas (Beija-Flor), nesse intervalo de tempo, foi patrocinada pelo co-irmão de Luizinho Drummond e parceiro na Liga das Escolas de Samba (LIESA), Aniz Abrahão David, o “Anísio”. Também “banqueiro” do jogo do bicho, “Anísio” e sua família controlam os destinos políticos do populoso município de Nilópolis na Baixada Fluminense.
Foi também dentro desse período que a Imperatriz criou o conceito do “desfile tecnicamente perfeito”, ou seja, desfiles frios, que não aqueciam o Sambódromo, mas que não tinham falhas. Esses desfiles lhe deram um tricampeonato (1999-2001) e criaram suspeições sobre os corpo de jurados de que asseguraram essas vitórias da Imperatriz, que geraram muitas polêmicas.
A partir dessa última grande conquista, a Imperatriz amargou um longo jejum. E para superá-lo, a agremiação de Ramos, flertou com enredos patrocinados por governos (em 2014, sobre o estado do Pará), assim como temas de fácil apelo popular como o feito para o jogador Zico, grande ídolo da maior torcida do Brasil, o Clube de Regatas do Flamengo (2015). E, em 2016, o enredo da verde e branco dos subúrbios da Leopoldina foi sobre ídolos da canção sertaneja, financiados e colados com o agronegócio (Zezé di Camargo e Luciano).
O carnaval virou um grande negócio: frações burguesas em disputa?
Toda arte tem que ser livre de qualquer censura política, moral, religiosa ou econômica. Por isso, qualquer cerceamento à manifestação seja de um artista ou de uma agremiação cultural de massas como a Imperatriz Leopoldinense tem que ser rechaçada. Entretanto, outra coisa é se empolgar e tentar enxergar um referencial anti-agronegócio, ecológico e em defesa dos povos indígenas na agremiação de Ramos. Afinal, a mesma escola que hoje se contrapõe a essa ascendente fração burguesa já foi financiada por ela mesmo no ano anterior.
Enfim, já foram tempos em que as agremiações de massas como as escolas de samba produziam temas, sob o olhar da chamada “História dos Vencidos”. A última vez foi a sensacional disputa, em 1988, entre Unidos de Vila Isabel (“Kizomba, a Festa da Raça”, samba de Luiz Carlos da Vila, Jonas e Rodolpho) e Estação Primeira de Mangueira (“Cem anos: Liberdade, Realidade ou Ilusão?”, de Jurandir, Hélio Turco e Alvinho), os dois temas denunciando a farsa do centenário da Abolição, disputa vencida pela primeira escola.
Mas, naquela época, assim como o agronegócio apenas se encorpava, o “samba-negócio” engatinhava (sob a égide do Sambódromo) e ainda permitia-se espaços e possibilidades para um outro olhar da cultura popular, por fora de patrocínios, financiamentos etc. Coisas muito distintas do período atual, dominado por setores que lucram com a destruição da natureza, produção de transgênicos, exploração do trabalhador rural ou segmentos que ganham na indústria cultural de massas, destruindo, por interesses mercantis, uma manifestação popular como o carnaval.