Jornal 94: Os autonomistas
13 de outubro de 2016
No Jornal Espaço Socialista anterior (nº 93) tratamos do tema da Ditadura do Proletariado. Argumentamos, então, que ela, a Ditadura do Proletariado, não é decorrente nem de uma concepção política de Marx e Engels, nem é uma invenção de Lenin ou dos revolucionários da Rússia de 1917 – ao contrário, é uma decorrência necessária e direta do que há de mais universal nas revoluções.
Argumentamos, então, que tanto nas revoluções burguesas (como a Inglesa, do século 17, ou da Grande Revolução Francesa de 1789-1815), nas revoluções proletárias, como a Comuna de Paris (1871), a Revolução Russa (1917-21), a Revolução Alemã (1918-22) quanto nas revoluções camponesas, como a Chinesa (1923-49) ou a Vietnamita (1926-1975), os revolucionários apenas podem tomar e, imediatamente a seguir, manter o poder, através de uma ditadura que imponha, pela violência, as medidas imprescindíveis para a instituição da nova ordem econômico-social. E esta necessidade presente em todas as revoluções decorre de que, uma vez derrubado o poder, as velhas classes dominantes farão de tudo para a ele retornar – o que, na enorme maioria das vezes, dá origem a uma guerra civil de grandes proporções.
O fato de as revoluções do século 20 terem sido derrotadas, o fato de que os processos revolucionários russo, chinês, vietnamita, cubano etc. não terem aberto a transição ao socialismo, são decorrências do atraso material em que se desdobraram (como já vimos no Jornal Espaço Socialista nº 79) e não de uma concepção política autoritária ou centralista.
O principal equívoco dos autonomistas está em desconsiderar este fato fundamental.
A Rússia Czarista
A corrente autonomista é uma decorrência direta da experiência soviética. Comecemos, pois, por ela.
A Rússia czarista não apenas era um país gigantesco (mais de três vezes o tamanho do Brasil!) como ainda gigantescamente atrasado. Trotsky, em sua obra prima, A Revolução Russa, narra com detalhes a dimensão desse atraso: uma enorme massa camponesa, mais de dois terços da população, analfabeta e miserável que se distribuía da Ucrânia mais desenvolvida, ao Cáucaso dos latifundiários e à porção asiática, que compreendia a Sibéria, com uma base agrária que se aproximava do modo de produção asiático e da pecuária dos antigos mongóis.
Cercada por esse atraso, um núcleo proletário importante, Petrogrado, com dois não tão importantes (Kiev e Moscou) e algumas regiões mineradoras e petrolíferas significativas, principalmente na região do Cáucaso. A concentração de operários em gigantescas plantas industriais favorecia a luta contra os patrões, mas a falta de experiência decorrente de ser uma classe operária recente, que há pouco ainda era camponesa, dificultava a luta revolucionária.
Um Estado autocrático e violentamente repressor era a coroação política desse atraso.
Nessas circunstâncias de carências e misérias, a transição ao socialismo era uma impossibilidade assumida por todos os revolucionários. Na produção teórica anterior a 1917 e nos debates políticos durante a revolução, a tese de que seria possível construir o socialismo na Rússia – a tese do “socialismo em um só país” – era considerada como absurda. Isso tanto nas forças mais moderadas do campo revolucionário (os mencheviques, os sociais-revolucionários etc.) quanto na sua porção mais à esquerda (os bolcheviques e setores anarquistas).
Nos debates em setembro-outubro de 1917 no Comitê Central bolchevique envolvendo a tomada do poder, duas posições predominaram. Aqueles favoráveis à tomada imediata do poder (Lenin, Trotsky, Kollontai etc.) e aqueles contrários à tomada imediata do poder (Zinoviev, Kamenev etc.). Lenin, nas famosas “Cartas de longe” (ele estava escondido na Finlândia), argumentava que a tomada do poder na Rússia seria a faísca que incendiaria a revolução europeia. Então, os operários europeus ensinariam aos russos como se faz o socialismo. Zinoviev e Kamenev argumentavam que a revolução europeia, em que pese o caos e a miséria do final da I Guerra Mundial (1914-18), ainda não estava madura. Tomar o poder seria um equívoco porque não haveria apoio do proletariado europeu à revolução na Rússia: os revolucionários seriam derrotados pela contrarrevolução tal como a Comuna de 1871.
Olhando de frente para trás, pode-se perceber que as duas posições estavam corretas e equivocadas. Lenin e Trotsky compreenderam que, naquele momento, sem a tomada do poder pelos bolcheviques, a contrarrevolução derrubaria o governo Kerensky e a revolução seria derrotada. Mas se equivocaram na avaliação da situação europeia: nisso Kamenev e Zinoviev tinham uma posição mais próxima à realidade. E ambas as posições partiam da correta avaliação de que a miséria russa não poderia servir de base para a transição socialista. Sem a abundância, a transição ao socialismo é uma impossibilidade completa (sobre isso, confira o Jornal Espaço Socialista nº 83, em que tratamos do fundamento histórico das classes sociais).
Por isso, ao tomarem o poder, os bolcheviques investiram todos os recursos materiais e esperanças intelectuais na revolução proletária europeia. A primeira medida do governo revolucionário soviético foi uma proclamação mundial propondo que os soldados nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial voltassem suas armas contra suas respectivas burguesias e construíssem a Internacional, um planeta sem patrões! Quando os primeiros sinais da Revolução Alemã surgiram no horizonte, Lenin enviou um memorando a Smilga ordenando a formação de um exército de um milhão de homens para apoiar os operários europeus – isso em um momento em que, literalmente, morria-se de fome aos milhares nas cidades e em que muitos operários começavam a retornar ao campo para meramente sobreviverem à miséria. Todas as fichas foram depositadas em uma vitória do proletariado europeu, sem ela, então ninguém duvidava, a derrota soviética seria inevitável.
O Comunismo de Guerra
Nos poucos mais de três anos que vão da tomada do poder em novembro de 1917, ao X Congresso do Partido Comunista, em março de 1921, os bolcheviques são obrigados a se confrontar com uma realidade inesperada. Nos primeiros meses do poder bolchevique, todas as esperanças estavam depositadas na Revolução Alemã, que dava seus primeiros sinais de vida. As medidas do novo governo possuíam, quase sempre, um caráter provisório: trata-se de manter o poder até que uma Europa socialista viesse em socorro.
Em meados de 1918, as coisas mudaram de figura. A Revolução Alemã estava tardando mais do que o esperado. E, ainda, tem início a Guerra Civil: com o apoio dos setores e classes contrarrevolucionárias russos, 17 países capitalistas invadem a Rússia (inclusive os mais poderosos, como EUA, Inglaterra e França). Para formar um exército capaz de enfrentar os invasores e a contrarrevolução interna, é implantado o Comunismo de Guerra (a Ditadura do Proletariado): o que fosse necessário para garantir um exército capaz de combate passa a ser máxima a prioridade. Não havia outro modo de manter o poder revolucionário até a vitória do proletariado europeu (que deveria vir em pouco tempo, lembremos).
A Revolução de 1917 contara com a iniciativa revolucionária de amplas massas de trabalhadores urbanos e camponeses para tomar o poder. Trotsky, na já mencionada A revolução russa, narra em minúcias como esta iniciativa foi essencial para a tomada do poder. Tanto porque desestruturou o exército e a burocracia que serviam à contrarrevolução e ao governo Kerensky, como ainda porque tomou diretamente o poder em muitas localidades.
Contudo, com a crise que se seguiu à tomada do poder, a maior parte dos soldados, que era camponesa, retornou às suas terras sem pedir permissão e sem reconhecer autoridade maior do que a proximidade do período do plantio. E, nas cidades, os operários famintos passaram a desmontar as fábricas paradas para venderem as ferramentas e metais. Não tinham alternativa para sobreviver. Não havia, além de comida, carvão para a produção industrial e para o aquecimento das casas. Victor Serge, em um texto magistral, registrou a miséria daqueles anos (O ano I da Revolução Russa).
Para enfrentar as invasões, os bolcheviques adotam algumas de suas mais polêmicas medidas. Fuzilaram a família real (pois, sem um rei, a contrarrevolução se divide em diversos pretendentes ao trono – o que, de fato, foi importante para a vitória revolucionária a seguir) e chamaram os antigos oficiais e generais do exército czarista para montarem um novo exército, o Exército Vermelho. Trotsky foi o grande artífice e o grande comandante da resistência revolucionária: em poucos meses conseguiu estruturar um exército que, com o apoio de setores importantes do campesinato e do proletariado, derrotou a contrarrevolução. Em meados de 1920, a vitória revolucionária contra os invasores já pode ser antevista.
No exército, vigora então uma nova hierarquia que tem, no seu topo, os antigos oficiais czaristas. Ao lado deles, os vigiando, foram colocados os “comissários do povo”. Mas, logo, estes também se inseriram na burocracia militar que se formava.
Nas cidades, principalmente nas fábricas, os antigos gerentes, diretores, quando não os antigos patrões, são convocados para colocar novamente a produção em marcha. Ao custo de se desestruturar os frágeis mecanismos de controle proletário na produção, pois implicava em tirar os trabalhadores do poder no local de trabalho. Os sindicatos foram reformulados para funcionarem como auxiliares do Estado na organização da produção.
Na esfera do Estado, a transformação mais importante foi a evolução da “Comissão Extraordinária” para espionar a contrarrevolução, criada ainda em 1917, em uma polícia secreta composta também por parte da antiga polícia secreta czarista.
E, no Partido, era exigido dos militantes a disciplina revolucionária para garantir um partido coeso em circunstâncias tão difíceis.
Até meados de 1920, ninguém defendia que tais medidas seriam mais do que emergenciais para uma situação desesperadora. Deveriam ser revertidas tão logo as condições permitissem: naqueles meses, dentre essas condições estava a vitória da revolução na Alemanha. O “Comunismo de Guerra”, com ficou genericamente conhecido esse conjunto de medidas, com suas práticas centralizadoras e aliança com parcelas das velhas classes dominantes (os generais, os engenheiros e donos de indústrias etc.), era apresentado como algo bastante provisório, medidas emergenciais para uma situação desesperadora na qual não era possível abrir a transição ao socialismo.
A Oposição Operária
No segundo semestre de 1920, a deterioração da situação revolucionária europeia, em especial na Alemanha, não mais permitia imaginar-se que o proletariado europeu viria em socorro da Revolução Russa no curto espaço de tempo. Ao mesmo tempo, a vitória sobre a contrarrevolução colocava sobre a mesa a urgente questão de como seria organizado o governo revolucionário até que viesse a revolução europeia.
Se a situação era desesperadora nos primeiros meses após a tomada do poder em 1917, em meados de 1920 era catastrófica. Além da crise econômica provocada pela I Guerra Mundial, além da ocupação da região mais desenvolvida da Rússia, a Ucrânia, pelas tropas alemãs, os exércitos da contrarrevolução, ao se retirarem, foram destruindo tudo o que encontravam pelo caminho: casas, pontes, cidades, minas de ferro ou de minerais, os poços de petróleo, as estradas de ferro, os portos e navios, diques, represas, canais de irrigação e de navegação, estrutura de telégrafos e comunicação etc. etc. Nada foi deixado inteiro pela contrarrevolução em seus estertores finais.
Havia que se decidir os próximos passos e, para isso, foi convocado o X Congresso do Partido Comunista para março de 1921. Duas plataformas, digamos assim, foram se consolidando. Uma delas, polarizada pela “Oposição operária”, tinha por centro a concepção de que dever-se-ia devolver o poder aos operários nas fábricas e sindicatos, aos soldados no exército e aos trabalhadores em geral nos locais de trabalho. Que o partido deveria reverter a centralização que vivera durante o Comunismo de Guerra e adotar um funcionamento mais decentralizado. Que os sindicatos deveriam ser representações dos trabalhadores junto ao Estado, e não “correias de transmissão” do Partido para com os trabalhadores.
A outra, polarizada por Lenin, Trotsky e Stálin – além da enorme maioria do comitê central de 1917 – afirmava que, apesar da vitória contra os invasores, a contrarrevolução não apenas não fora derrotada, como ainda contava, devido à paralisia econômica do país, com boas possibilidades de se levantar. Mais do que nunca, argumentavam, a manutenção do poder revolucionário dependia da estratégia de permitir que o mercado capitalista voltasse a organizar a retomada econômica desde que o poder político fosse ainda mais centralizado no interior do Partido Bolchevique.
O choque era inevitável e um movimento nas bases do partido bolchevique em direção às posições da Oposição Operária foi se tornando perceptível. Pela primeira vez a polícia secreta foi acionada para reprimir revolucionários e várias denúncias chegaram ao X Congresso de que delegados da Oposição Operária foram presos ou impedidos de viajar para o Congresso, de que votações em fábricas, em que fora vencedora a Oposição Operária, foram revertidas graças às pressões da política secreta ou da direção do partido etc. Mesmo assim, a Oposição Operária chegou como uma significativa minoria. Os debates no Congresso começaram tensos… e foram logo interrompidos.
Em meio ao X Congresso, os marinheiros de Kronstadt se rebelaram e formaram a Comuna de Kronstadt. Anunciaram que não reconheciam o poder dos comissários políticos enviados pelo governo.
A tragédia de Kronstadt
A situação tornou-se, então, ainda mais grave. Kronstadt era a principal base naval revolucionária e guardava o estratégico litoral do mar Báltico, próximo a Petrogrado. Desde março de 1917, os marinheiros de Kronstadt foram um apoio seguro para a revolução e estiveram na linha de frente da luta revolucionária em todos os momentos. Não eram aliados provisórios ou inseguros, mas membros do núcleo que a Rússia revolucionária tinha de mais seguro.
A recriação da velha hierarquia czarista na marinha – com a volta de muito dos odiados oficiais a postos de comando – fora aceita no período da guerra como uma necessidade, mas também como uma medida provisória. Os rumos do X Congresso anunciavam que seria uma medida mantida por um tempo indefinido. Para os marinheiros, isso era inaceitável: esse o principal motivo da rebelião.
O X Congresso convocou a todos os seus delegados a participarem da expedição militar que massacraria Kronstadt (Trotsky chefiou a ofensiva militar) – e os delegados da Oposição Operária, tragicamente, aceitam participar da ofensiva e, com isso, perdem toda a autoridade que poderiam ainda ter. Massacrado Kronstadt, o Congresso retomou os trabalhos e converteu muitas das medidas táticas do Comunismo de Guerra em medidas de longo prazo. Tem, então, início o período da Nova Política Econômica (NEP).
A essência da Nova Política Econômica é uma aliança dos bolcheviques no poder político com o que restou de capital e capitalistas. A ideia era que um Estado forte, centralizado, controlado pelos revolucionários, seria um antídoto adequado para se controlar o capital que estaria se desenvolvendo na esfera econômica. A ilusão de fundo é que seria possível controlar por meios políticos o capital.
Sabemos no que deu e não é necessário prolongarmos a narrativa. O enorme sucesso econômico e social da NEP e, de sua cria direta, os planos quinquenais, elevou a União Soviética à segunda potência mundial em menos de quatro décadas. Para um povo miserável como era o russo, o desenvolvimento econômico, que garantia empregos para todos, associado às políticas públicas do Estado, que garantiam casa, escola, assistência médica etc., realmente e de fato, a todas as pessoas, era quase um paraíso na Terra. Que isso fosse realizado sob a feroz ditadura de Stalin apenas tornava, aos olhos desse povo, Stalin um semideus capaz da tarefa hercúlea de tirar aquele povo da miséria czarista milenar!
Os autonomistas e suas debilidades
Foi nesse contexto histórico que surgiu e se desenvolveu a tese autonomista. O seu núcleo mais essencial afirma que o descaminho da Revolução Russa está na eliminação da autonomia operária pelo autoritarismo e centralismo inerente à concepção leninista-bolchevique e, para os autonomistas mais radicais, à concepção de Marx e Engels.
Não fossem o autoritarismo e centralismo de Lenin (ou de Marx e Engels, dependendo de qual autonomista tratamos), o socialismo na Rússia teria sido construído graças às iniciativas inerentes à autonomia proletária. Ignoram, menosprezam ou mesmo negam (a depender de qual autor autonomista nos referimos) que as atrasadas condições russas impediriam a transição ao socialismo qualquer que fosse a concepção político-ideológica que viesse a tomar o poder naquelas circunstâncias.
Ao deslocarem todo o “problema soviético” à esfera ideológica e lá o isolarem, os autonomistas não fazem mais do que tomar a esfera da política como a fundante da sociabilidade (ao invés do trabalho) e, por essa via, caem no idealismo que é, sempre, incapaz de compreender a história.
A “solução” que os autonomistas apresentam ao “problema soviético” é duplamente falsa e desarma os trabalhadores na luta pelo comunismo. Em primeiro lugar, porque nega a necessidade da Ditadura do Proletariado como a forma de governo quando da tomada do poder pelos revolucionários. Em segundo lugar, porque propõe uma “democracia proletária” como contraposição à Ditadura do Proletariado que, na prática e de fato, significa enfraquecer a imprescindível defesa do poder revolucionário recém surgido da sanha da contrarrevolução. Não há, nessa esfera, praticamente nada que os autonomistas possam trazer de contribuição à teoria revolucionária.
Os autonomistas e os stalinistas
Hegel, o grande filósofo idealista alemão, dizia que a história (a “razão”) tem sua “astúcia”. Ainda que aparentemente opostos absolutos, os autonomistas e stalinistas são frutos da mesma situação histórica e compartilham vários pontos em comum. Esse não é um fato tão raro.
Na história dos partidos políticos que duas posições antagônicas, surgidas das mesmas circunstâncias, terminem compartilhando de pressupostos e concepções muito semelhantes ocorre com mais frequência do que seria imaginável em um primeiro momento. Um dos exemplos mais conhecidos é o da relação entre os autonomistas e os stalinistas. Essa afirmação, contudo, requer um esclarecimento preliminar.
Tanto o stalinismo quanto os autonomistas compõem antes um campo político do que uma doutrina teórica ou ideológica bem delimitada. No interior do campo stalinistas, encontraremos diversas posições e várias personalidades que não se enquadram no que iremos abaixo tipificar. O mesmo, para os autonomistas. Várias de suas personalidades e algumas de suas correntes não se reconheceriam nas linhas abaixo. Ressalvado, portanto, que há exceções importantes ao que vamos afirmar, elas não cancelam a validade do que se segue.
Para os stalinistas, a propriedade dos meios de produção nas mãos do Estado significaria a superação da propriedade privada na medida em que ela seria estatal e, não mais, privada. A posse pelo Estado dos meios de produção definiria o caráter socialistas da produção. A relação de apropriação do trabalho excedente pelo Estado não era considerada uma exploração pela razão de que o Estado não mais seria um instrumento da burguesia, mas estaria nas mãos dos trabalhadores. Daí a definição stalinista de que o Estado soviético seria um Estado proletário socialista (e, também por esta razão, a definição típica de Trotsky de que seria um Estado proletário deformado). A posse do poder do Estado, portanto, a esfera da política, era o que asseguraria ser o Estado soviético um Estado socialista – e, não, a relação concreta de produção que, no caso soviético, tinha por essência o trabalho abstrato e a exploração dos trabalhadores pela mediação do Estado. Cancelar as relações de produção concretas como critério de definição do modo de produção e substituí-las pela esfera da política é uma das principais características do politicismo (isto é, tomar as relações políticas como fundantes do modo de produção) stalinista.
Um politicismo de sinal trocado está presente entre os autonomistas. Para eles, a repressão política ao movimento operário, a devolução do poder político que, na revolução, as massas conquistaram através dos sovietes, para o Estado, definiria o caráter não-socialista da União Soviética. Se, para os stalinistas, era a concentração do poder econômico e político no Estado que definiria o socialismo, para os autonomistas seria precisamente essa característica que negaria o caráter socialista da ordem soviética.
Se, para os stalinistas, era a posse do poder de Estado pelo Partido Bolchevique que definia a URSS como socialista, para os autonomistas seria a usurpação do poder das massas pelos bolcheviques que teria destruído a possibilidade do socialismo na URSS.
Tanto para os stalinistas, quanto para os autonomistas, era completamente estranha a questão de que a passagem do capitalismo ao socialismo requer, imperativamente, a transição do trabalho proletário ao trabalho associado, a transição da produção de valores de troca pela produção de valores de uso. Para ambos, a questão seria essencialmente política: respeito ou destruição da autonomia operária.
A importância dos autonomistas
Em que pesem essas e outras debilidades, os autonomistas cumpriram ao menos um papel importante para a história das revoluções. Suas próprias concepções, suas próprias posições políticas serviram de poderoso estímulo para que desenvolvessem pesquisas e mais pesquisas acerca do controle do Estado soviético sobre o movimento dos trabalhadores. Suas pesquisas nessa área revelaram dados e fatos históricos da maior importância que ajudam a explicar o fenômeno soviético ao menos em um detalhe importante: as mediações pelas quais, na esfera da produção, se reafirmou o controle do capital sobre o trabalho nas condições pós-revolucionárias. Enquanto historiadores do avanço do Estado soviético sobre a autonomia operária, os autonomistas estão, até hoje, entre os mais importantes.
Além desse importante serviço à teoria revolucionária, os autonomistas também se converteram em ferozes opositores da submissão dos sindicatos dos trabalhadores aos Estados capitalistas. Suas críticas a todo tipo de reformismo são, neste particular, também muito significativas.
Apesar dessas significativas contribuições, os autonomistas terminam desarmando o movimento operário e revolucionário, por um lado, pelo seu politicismo e idealismo e, por outro, pela sua negação “por princípio” da necessidade histórica da Ditadura do Proletariado.
Leituras recomendadas:
Para compreender os autonomistas, ler de Pannekoek, Os conselhos operários e, de M. Brinton, Os bolcheviques e o controle operário (há uma edição portuguesa) e de João Bernardo e a crítica ao controle estatal dos sindicatos, Transnacionalização do capital e fragmentação dos trabalhadores. Para a compreensão da situação histórica na Rússia revolucionária, além do já mencionado A revolução russa de Trotsky, a biografia por I. Deutscher de Trotsky (O profeta armado, O profeta desarmado e O profeta banido) e de Kollontai, A oposição operária.