Nem Academicismo Burguês, Nem Praticismo Infantil
21 de setembro de 2016
Prof. Dr. Rafael Rossi1
Desconhecedores da história, mesmo da história
brasileira mais recente, os praticistas
são incapazes de um projeto estratégico.
Não lhes resta alternativa senão responder
aos acontecimentos correndo atrás dos fatos
como jumentos atrás da cenoura:
não há possibilidade de alcançá-la. (S. Lessa)
Muitos companheiros, alguns bem intencionados, colocam o velho problema da relação entre teoria e prática constantemente. Alguns deles chegam a afirmar que a teoria já está pronta e que é preciso “fazer na prática o que deve ser feito” e que a teoria, desse modo, supostamente até atrapalharia nessa tarefa. Gostaria de lembrar, sem arrogância alguma e tentando o diálogo com esses companheiros, que Marx certa vez afirmou enfaticamente: “A ignorância jamais ajudou alguém!”.
Nesse ponto, coloco a pergunta: Será que nós, direta ou indiretamente ligados à classe trabalhadora, sabemos, de fato, “aquilo que deve ser feito”? Todos nós temos conhecimento de qual a origem e como é o funcionamento desta forma de sociabilidade? Todos nós sabemos, efetivamente, a origem e a função social do Estado? Todos nós sabemos sobre qual o horizonte da luta dos trabalhadores rumo à emancipação?
Creio que por uma série de condicionantes materiais, nosso cotidiano inserido numa dinâmica maior dominada pelo capital, impede de várias, inúmeras e diversas maneiras com que possamos realmente compreender em profundidade essas questões que elenquei acima e muitas outras de absoluta importância para a luta socialista. De modo geral, é, na atualidade, o praticismo/voluntarista que domina as mentes e os corações de vários militantes e intelectuais:
Nos dias em que vivemos, há uma concepção teórica que é comum à maioria das pessoas que se propõem “revolucionárias”: ao tratar da relação entre a prática – para continuarmos imprecisos – “transformadora” e a teoria, a prática é fetichizada até se transformar na esfera produtora e resolutiva da teoria. Como se os problemas teóricos colocados pela prática revolucionária pudessem ser resolvidos no interior da própria prática sem nenhum esforço teórico […] Se dizemos que a teoria é importante e, contudo, não estudamos, é porque ela não é importante para nós. Nós somos o que nós fazemos, não o que desejamos ou pensamos que somos. Não é uma questão moral; há uma razão ontológica para esse fato (LESSA, 2014 b, p. 80 e p. 11, grifos nossos).
Para Marx a teoria, como diz José Paulo Netto, é “a reprodução ideal do movimento real do objeto pelo sujeito que pesquisa” e, por meio da teoria, “o sujeito reproduz em seu pensamento a estrutura e a dinâmica do objeto que pesquisa”. Esta reprodução será, com efeito, “tanto mais correta e verdadeira quanto mais fiel o sujeito for ao objeto” (NETTO, 2009, p. 776).
Vejam que, nesta abordagem do conhecimento teórico, está excluída toda e qualquer atitude perto do “academicismo burguês” que domina os ambientes universitários. Para o “academicismo burguês”, dentre vários outros aspectos, há 1) uma hipervalorização do indivíduo (e uma desclassificação, inclusive, da existência das classes sociais, que passam a ser encaradas enquanto “grupos”, “famílias”, “setores da sociedade” e outras baboseiras); 2) uma perspectiva irracionalista na compreensão e explicação do ser social e das diversas formações sociais específicas (abandonando pra bem longe do debate a categoria do trabalho que, para muitos, não é exclusiva do ser social, pois, para estes pseudointelectuais aranhas, abelhas etc. também trabalham!); 3) uma supervalorização da consciência/subjetividade (a realidade seria, para eles, fruto exclusivo do pensamento e que pelo próprio pensamento por si só é possível realizar grandes transformações como por exemplo as famosas campanhas de “conscientização”); 4) a defesa de uma essência humana imutável, essencialmente burguesa, mesquinha e concorrencial (com isso “naturaliza-se” as desigualdades sociais e a exploração do homem pelo homem, inclusive, com o argumento da insuperabilidade desta sociedade capitalista e do Estado).
Todo este movimento não está apartado da crise estrutural do capital que enfrentamos em nossos dias. Esta crise se diferencia de todas as outras, sendo bem rápido em nosso debate, em função de não ser mais possível ao capital deslocar suas contradições “explosivas” – como diria Mészáros – de um território para outro. Cada vez mais fica explícito de várias maneiras que esta crise estrutural afeta a totalidade da vida social. Não há um lugar, região, território, país ou continente que não sofra seus efeitos em todas as dimensões sociais. Isto também se faz presente na classe trabalhadora em sua formação ideopolítica e no âmbito da produção do conhecimento que, acentuadamente, rebaixa seu nível de compreensão do real a patamares cada vez mais transcendentais, mega idealistas e que se distancia da realidade a passos largos e velozes (MÉSZÁROS, 2002).
Marx, ao partir da análise da atividade primária essencial de constituição do ser social que é o trabalho, percebeu que entre a subjetividade e a objetividade há uma articulação – apesar se serem dimensões distintas – intrínseca. Para efetivar atos de trabalho, os homens devem refletir corretamente (por reflexo aqui não deve ser entendido nenhum “espelhismo mecânico”) as condições materiais da realidade objetiva. Este reflexo, ou melhor, este “conhecimento objetivo” – nas palavras de Lukács (1981) – é uma reprodução, a nível de pensamento, das dinâmicas que operam na própria causalidade natural. Sem este conhecimento objetivo é impossível que aquele fim previamente idealizado seja, com efeito, objetivado. O fim, a finalidade orientada é algo de suma relevância para a consciência humana deixar de ser um mero epifenômeno, como ocorre no mundo animal. Todavia, ela deve reproduzir idealmente a legalidade (no sentido de movimento próprio) da realidade social. Isso é evidente quando Lukács afirma que a finalidade possui origem numa necessidade social, portanto, humana, e ela deve realizar um conhecimento da natureza para que a própria finalidade não permaneça enquanto um “mero projeto utópico”, um “sonho, como, por exemplo, o voo foi um sonho desde Ícaro até Leonardo e até um bom tempo depois” (LUKÁCS, 1981, p. 18). Em razão disto que:
Uma vez que a pesquisa da natureza, indispensável ao trabalho, está, antes de mais nada, concentrada na preparação dos meios, são estes os principais portadores da garantia social de que os resultados dos processos de trabalho permaneçam fixados, que haverá tanto uma continuidade como, especialmente, um aperfeiçoamento na experiência laboral. É por isso que o conhecimento mais adequado que fundamenta os meios (utensílios, etc.) é, muitas vezes, para o ser social, mais importante do que a satisfação daquela necessidade (finalidade). (LUKÁCS, 1981, p. 19)
Deste modo, o essencial, no trabalho, está na transformação da natureza para a produção dos valores de uso e, ao mesmo tempo a transformação da própria natureza humana. Com o trabalho – única categoria de claro caráter intermediário2, no sentido de ser a única categoria que estabelece o intercâmbio orgânico da sociedade com a natureza – há o surgimento de novos complexos sociais que terão funções distintas no processo de reprodução social. Este processo de reprodução social será, portanto, sempre a criação do novo e não a reposição do mesmo como ocorre com a reprodução biológica (LESSA 2014 a). Na natureza, nos explica Lukács, “a consciência animal jamais vai além de um melhor serviço prestado à existência biológica e à reprodução e por isso, considerada ontologicamente, é um epifenômeno do ser orgânico” (LUKÁCS, 1981, p. 25).
No trabalho estão contidas – “em germe” – as determinações que constituirão a essência dos novos complexos no ser social (LUKÁCS, 1981). Entretanto, todo este processo só é possível se a finalidade elaborada idealmente conseguir captar, apreender, idealmente, no plano da subjetividade, a lógica e as tendências reais e operantes. Em razão disto que:
Para Marx, não há atividade humana que não seja uma síntese de pensamento e transformação do real. Toda e qualquer ação humana é, na concepção marxiana, uma transformação do real orientada por uma prévia-ideação. Em poucas palavras, a especificidade ontológica do ser social está na sua capacidade de teleologicamente transformar o real.
Tanto a atividade humana mais primordial, a transformação direta da natureza para a produção de valores de uso, como a atividade social mais desenvolvida, como a luta política ou a produção de obras de arte, são sempre e necessariamente sínteses de prévias-ideações com as determinações causais do mundo objetivo. A consciência, nesta medida e sentido, é órgão e médium decisivo da reprodução social: sem ela não há mundo dos homens (LESSA, 2014 b, p. 93, grifos nossos)
Isto também pode ser verificado, quando Lukács afirma que:
A descrição do trabalho, tal como a apresentamos até aqui, embora ainda incompleta, já indica que com ele surge na ontologia do ser social uma categoria qualitativamente nova com relação às precedentes formas de ser tanto do inorgânico como do orgânico. Esta novidade consiste na realização da posição teleológica como um produto adequado, ideado e desejado. (LUKÁCS, 1981, p. 23, grifos nossos)
Enfim, podemos dizer que o praticismo centra sua crítica numa “teoria que se descola da prática” e, portanto, é a prática a única que deveria ser levada em conta. Todavia, vimos como que, para Marx, a teoria não é um guia de verdades aéreas e incompreensíveis. A teoria é a reprodução, no plano do pensamento, do próprio movimento histórico e social da realidade objetiva. O próprio Marx já afirmou que as categorias são “formas de ser, determinações da existência” (MARX, 2011, p. 85). Aliás:
Trata-se, pois, para Marx, de partir não de ideias, especulações ou fantasias, mas de fatos reais, “empiricamente verificáveis”, no caso os indivíduos concretos, o que eles fazem, as relações que estabelecem entre si e as suas condições reais de existência, para então apreender as determinações essenciais que caracterizam este tipo de ser e o seu processo de reprodução. Vale a pena ressaltar que a palavra empírico tem, aqui, um sentido ontológico e não empiricista. Ou seja, quando Marx diz que estes pressupostos são empiricamente verificáveis, está enfatizando o caráter de realidade deles em contraposição às especulações produzidas apenas pelo automovimento da imaginação ou da razão. (TONET, 2005, p. 33, grifos nossos)
Portanto, o primeiro passo é saber qual nosso horizonte mais geral, se estamos preocupados a partir dos interesses – tenham eles consciência disso ou não – dos trabalhadores. Isto não é pouca coisa e exige muito de nós mesmos. Tanto individualmente para a compreensão destas temáticas, quanto em nossa atuação coletiva junto a outros companheiros que também estão comprometidos com o projeto revolucionário socialista.
Alguns camaradas compreendem que é necessário, por exemplo, a participação ativa e o engajamento prático dos intelectuais nas lutas sociais. Como nos lembra Tonet (2005), os trabalhadores efetuarão suas lutas com ou sem a participação dos intelectuais. Esta é algo imposto pela sua situação objetiva, ou seja, pelo local que ocupa no processo produtivo. Todavia, é justamente esta posição que ocupam no processo produtivo que – (por exemplo, no capitalismo, cabe aos proletários a produção do capital e da transformação da natureza nos meios de produção) – dificulta e impede significativamente que possam se dedicar à elaboração teórica. Cabe aos intelectuais, dessa maneira, a elaboração teórica e “quanto maior for a qualidade desta elaboração, vale dizer, quanto mais ela permitir compreender o processo real, tanto maior será a colaboração que o intelectual prestará às classes populares” (TONET, 2005, p. 132). Por isso é falso pensar que o compromisso político do intelectual se mede pelo seu engajamento prático num movimento social ou político. O “momento predominante”, no caso do intelectual, embora não seja o único, “que garante este compromisso, é a qualidade da sua produção teórica. Pois, de nada adianta àquelas classes que o intelectual exerça uma intensa atividade prática enquanto produz uma teoria medíocre” (TONET, 2005, p. 132).
Temos, decisivamente, que compreender que: “uma prática sem uma sólida teoria que a ilumine é uma atividade cega. O cego também pode realizar inúmeras atividades e poderá até iludir-se com a quantidade de coisas que faz. Contudo, sem um guia seus esforços resultarão inúteis. Este guia, no caso da prática, é a teoria” (TONET, 2005, p. 131). Os efeitos do reformismo praticista/voluntarista para o movimento dos trabalhadores é gravíssimo, com repercussões em suas concepções de mundo e, também e suas estratégias práticas de luta. Pouquíssimos são os que, realmente, se dedicam cotidianamente ao estudo revolucionário dos clássicos da história e do marxismo. Não é por um acaso que “desprovido Marx de seu fundamento ontológico, ele e Deus podem coabitar a mesma concepção de mundo!” (LESSA, 2014 b, p. 92). Sem ter claro qual nosso alvo e qual a nossa meta, muito provavelmente, continuaremos a tropeçar mais de mil vezes em nossos próprios pés reverenciando, durante a queda, a ordem burguesa vigente.
Referências Bibliográficas
LESSA, S. Apresentação. In: LUKÁCS, G. Notas para uma Ética. São Paulo: Instituto Lukács, 2014 a.
LESSA, S. O revolucionário e o estudo – Por que não estudamos? São Paulo: Instituto Lukács, 2014 b.
LUKÁCS, G. Il Lavoro. In: Per una Ontologia dell’essere sociale. Roma: Riuniti, 1981, p. 11-131. (Tradução Mimeo.de Ivo Tonet, 145p.)
MARX, K. Grundrisse. São Paulo: Boitempo, 2011.
MÉSZÁROS, I. Para Além do Capital. São Paulo: Boitempo, 2002.
NETTO, J. P. Introdução ao método da teoria social. In: Conselho Federal de Serviço Social – CFESS; Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social – ABEPSS. Serviço Social: Direitos Sociais e Competências Profissionais. Brasília – DF, p. 769-806, 2009.
TONET, I. Educação, Cidadania e Emancipação Humana. Ijuí: Unijuí, 2005.
1Docente do curso de Licenciatura em Educação do Campo, do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e do Programa de Pós-Graduação em Recursos Naturais na UFMS em Campo Grande – MS. E-mail: rafaelrossi6789@hotmail.com
2 Lukács (1981).