Jornal 91: Materialismo dialético
7 de julho de 2016
No Jornal Espaço Socialista nº 84, tocamos no tema do materialismo histórico. Argumentamos, então, que a concepção materialista de mundo apenas pode se tornar superior às concepções idealistas nas novas condições históricas trazidas pela Revolução Industrial (1776-1830) e a Revolução Francesa (1789-1815).
Antes dessas duas revoluções, as sociedades de classe eram o meio mais adequado para o rápido desenvolvimento das forças produtivas e, por isso, as classes dominantes apareciam na vida cotidiana como as “verdadeiras” classes produtoras. Nas sociedades de classe, são elas, de fato (e não os trabalhadores) que organizam a produção, o Estado, a ideologia e o conjunto da vida social. Como, nas sociedades de classe, temos a separação do trabalho intelectual (isto é, aquele que organiza a produção e a sociedade como um todo) do trabalho manual (aquele que converte a natureza em toda a riqueza social) isso gerava – e ainda gera – a ilusão de que seriam as concepções e valores da classe dominante a base da vida material e, portanto, seria a ideia que organizaria a matéria. Na relação entre ideia e matéria, a primeira seria predominante. Esta a origem histórica dos grandes sistemas filosóficos idealistas, desde os gregos até Kant e Hegel.
Além de idealistas, estes grandes sistemas tinham, ainda, uma segunda característica importante: eram dualistas. Como a ideia não poderia vir da matéria, a ideia deveria ou ter sido criada por Deus (Agostinho, Tomás de Aquino) ou dada aos humanos pela natureza (os gregos, os pensadores do Período Moderno, etc.). Haveria, portanto, duas esferas distintas: a ideia, o espírito, de um lado e, de outro, a matéria. E, na relação entre as duas esferas, a ideia determinaria a matéria, a consciência determinaria a existência: o Mundo das Ideias em Platão, o Logos em Aristóteles, Deus dos medievais, o Espírito de Hegel, etc. – em que pesem as enormes e importantes diferenças entre esses pensadores.
Verdade que há, quanto ao dualismo, uma importantíssima exceção. No século 17, na Holanda de Rembrandt, Hugo Grotius, Vermeer e Erasmo de Roterdã, Espinosa elaborou um sistema bastante peculiar que, embora idealista, não era dualista. Sua ideia básica era a seguinte: apenas pode haver uma única substância no universo. Pois, se houvesse mais de uma substância, uma teria que ser a causa da outra e, como o que é causa de algo não pode ser também causado por este mesmo algo, deveria haver infinitas substâncias com infinitas causas: Deus não poderia ser a causa única de tudo o que existe. Portanto, raciocina ele, apenas pode existir uma única substância, Deus, que, por isso, coincide com tudo o que existe, com toda a natureza. Para ele, por isso, não haveria duas substâncias, matéria e espírito, mas apenas uma: “Deus que é a natureza”. Espinosa é idealista, contudo, não é dualista. Exceto esse caso importante, todas as ontologias (concepções de mundo) idealistas eram também dualistas.
Vimos, também no Jornal Espaço Socialista nº 84, que o materialismo marxiano rompe com esse dualismo e abre a possibilidade de uma forma superior, mais desenvolvida, de conhecimento de tudo o que existe, do universo ao ser humano. Pela descoberta do trabalho como a atividade humana que, ao distinguir os seres humanos da natureza, é fundante de toda a nossa história, Marx e Engels puderam argumentar como, do ser inorgânico, se desenvolveu a vida e como, dessa, surgiu o mundo dos homens. Puderam demonstrar que em cada passagem temos um salto de qualidade, um salto ontológico diriam Lukács e Mészáros, no qual a mesma matéria anteriormente existente se organiza em formas superiores, com propriedades e qualidades essencialmente novas. A vida é uma forma superior da matéria inorgânica e, o ser humano, uma forma superior da matéria orgânica. As ideias, os pensamentos, os sentimentos, os projetos idealizados, a subjetividade de cada indivíduo nada mais são que formas superiores de organização da matéria: daqui o materialismo de Marx e de Engels. Tudo o que existe é matéria no seu movimento de evolução histórica, como já argumentamos no Jornal nº 84.
Essa concepção materialista e unitária, que supera as concepções idealistas e dualistas anteriores, é também e ao mesmo tempo uma redescoberta da dialética. Por isso, com razão, muitas vezes o pensamento de Marx e Engels é denominado de “concepção materialista dialética”. Todavia – e voltaremos a isso mais abaixo – não raras vezes, desde os tempos de Kautsky e Lenin até os nossos dias, o materialismo histórico e o materialismo dialético são tratados como duas coisas distintas. Os conhecidos manuais stalinistas são ricos de exemplos semelhantes. Neles, a dialética é apresentada como se fosse as leis da lógica do bem pensar, algo mais próximo de Aristóteles e Bacon do que de Marx. O materialismo seria da história e a dialética seria apenas um modo correto de pensar, como se fosse uma “lógica” do pensamento, um método cuja aplicação garante a verdade. Veremos que essa separação entre a dialética (restrita ao pensamento) e o materialismo (restrito à realidade) é completamente distinta do que Marx e Engels descobriram.
Dialética e matéria
Voltemos ao princípio do princípio: com a expansão do universo temos a formação da matéria inorgânica tal como a conhecemos composta por elétrons, prótons e nêutrons, átomos, moléculas, etc. Essa expansão deu também origem a todas as propriedades da matéria inorgânica. Surgem assim os inúmeros processos da química e da física que compõem a história da matéria inorgânica.
Nessa evolução da matéria inorgânica já se manifesta a sua dialética. Evolui do simples ao complexo por processos químicos e físicos que, sempre, resultam em algo distinto ao seu ponto de partida. A molécula de água é o resultado da reação química que combina dois átomos de hidrogênio a um de oxigênio, o ácido sulfúrico ao reagir com o ferro resulta em sulfato de ferro e libera hidrogênio, e assim sucessivamente.
Esta evolução do simples ao complexo também é resultante de um segundo movimento dialético da matéria: ao se combinarem em uma totalidade (isto é, em um todo articulado no qual cada parte se relaciona com todas as outras partes) a interação entre os elementos termina por dar origem a algumas qualidades da matéria, que não existiam antes dessa interação. Tanto o ácido sulfúrico quanto o ferro, tanto a o hidrogênio quanto o oxigênio dos nossos exemplos possuem qualidades que sequer se aproximam das da água ou das do sulfato de ferro. Esse segundo movimento dialético é expresso dizendo-se que a “totalidade é mais do que a soma, é a síntese das partes em totalidade”. A totalidade do hidrogênio em interação com o oxigênio possui as qualidades da água que são distintas das qualidades desses gases isoladamente e assim por diante.
Esse movimento real, objetivo – que independe da consciência e da ação dos seres humanos para existir – faz parte da dialética da matéria inorgânica. A dialética inorgânica corresponde ao movimento real da matéria inorgânica. E, se quisermos refletir em nossa consciência esse movimento precisamos pensar dialeticamente, isto é, reproduzir na consciência o movimento da matéria real, que existe independentemente da nossa subjetividade. Veja, precisamos pensar dialeticamente porque o movimento da matéria inorgânica é a dialética do inorgânico.
Algo similar ocorre com a matéria orgânica. Uma determinada combinação dos átomos e moléculas produzidos pelo desenvolvimento da matéria inorgânica gera uma totalidade que produz uma nova qualidade, uma nova propriedade. Diferente das reações químicas e físicas que produzem sempre algo distinto do seu ponto de partida, agora temos a reprodução biológica que produz sempre o mesmo ser (manga, da mangueira que dá mangas etc.). A reprodução do mesmo requer processos que não existiam antes: na produção de energia no interior dos seres vivos, etc. surgem moléculas que não existiam antes (RNA, DNA etc.), o planeta Terra se cobriu de seres vivos em poucos bilhões de anos e a seleção natural passa a ser a lei mais geral da reprodução da vida.
Vejamos isso com mais vagar.
A matéria viva possui dois movimentos da matéria que não existiam no ser inorgânico. O primeiro movimento é a passagem do ser inorgânico à vida, isto é, o arranjo, em uma nova totalidade, capaz de reprodução biológica, dos processos inorgânicos e dos elementos inorgânicos surgidos pela evolução do universo. Essa passagem corresponde ao surgimento de uma nova essência: frente à essência da matéria inorgânica se desenvolve a essência da reprodução biológica. A vida não pode ser reduzida à matéria inorgânica (mesmo que, como vimos, seja formada pelos átomos e moléculas de origem inorgânica). O surgimento de uma nova essência é denominado “salto de qualidade” (Engels) ou “salto ontológico” (Lukács), como já mencionamos.
Além do salto ontológico, a evolução da vida possui ainda outra característica que não é encontrada na matéria inorgânica. Em larga medida, a eficiência maior ou menor das diferentes formas de vida em realizar a sua reprodução biológica determina sua sobrevivência na concorrência com os outros seres vivos: os menos eficientes vão sendo substituídos pelos mais eficientes em um processo denominado por Darwin de seleção natural. A seleção natural ao lado do salto ontológico, que é o nascimento e a morte dos organismos, são dois movimentos que a matéria orgânica possui de novidade em comparação com o ser inorgânico. Ou, para colocar em outras palavras, a dialética da matéria inorgânica, além vários de processos químicos e físicos que se originaram da evolução do inorgânico, possui ainda dois movimentos inéditos: o salto ontológico do inanimado à vida (o nascimento e a morte) e a seleção natural.
Obviamente, o fato de a vida surgir do desenvolvimento da matéria inanimada faz com que várias das propriedades desta última estejam presentes na vida. Também nos seres vivos temos reações de oxirredução, também neles a reação de ácido e base resulta em sal+água e assim por diante; também o fato de a totalidade ser a síntese (e não a soma) dos seus elementos é uma característica presente no inorgânico e na vida. E, além disso, de que tal como a matéria inanimada, também a vida possui a tendência de evoluir de formas mais simples a formas mais complexas.
Há, portanto, uma continuidade entre a dialética do inorgânico e a dialética da vida. Essa continuidade se realiza através de um salto ontológico – ou um salto de qualidade, o que se preferir – não é um paradoxo já que a vida apenas pode surgir por meio de um salto ontológico que é resultante do desenvolvimento da matéria inorgânica.
Dialeticamente (ou seja, no movimento da própria matéria) continuidade e ruptura (salto ontológico) se articulam como partes de um mesmo processo histórico, qual seja, a evolução da matéria inorgânica em uma matéria orgânica.
Em outras palavras, a vida não pode ser reduzida à matéria inorgânica e, não menos verdadeiro, não pode existir sem ter permanentemente por sua base a matéria inanimada. A dialética da vida não é redutível à dialética do inorgânico, ainda que não possa existir sem ter por base o inorgânico.
Uma vez mais: quando se trata de reproduzir na consciência as qualidades da vida precisamos reproduzir em nossas ideias a dialética da vida, a gênese e a evolução da vida. Precisamos pensar dialeticamente porque a dialética é o movimento da matéria. Ao fim e ao cabo, porque a existência determina a consciência.
Dialética e história da humanidade
A gênese da humanidade tem lugar quando um grupo de primatas adquire a capacidade de trabalho. Discutimos alguns aspectos importantes do surgimento do trabalho nos Jornais Espaço Socialista nº 83 e nº 84 e, por isso, seremos agora bastante breves.
Todo ser vivo precisa transformar o ambiente no imprescindível à sua reprodução biológica, o mesmo ocorre com os seres humanos. A diferença entre nós e todos os outros seres vivos é a forma pela qual realizamos essa transformação: pelo trabalho. Através do trabalho, ao transformarmos a natureza também transformamos nossa substância social e, deste modo, evoluímos da sociedade primitiva ao capitalismo de nossos dias.
A passagem da evolução da vida, determinada pela seleção natural, para a história da humanidade é, também, um salto ontológico ou um salto de qualidade. Agora, o movimento da matéria social é determinado pela reprodução social (que passa do modo de produção primitivo ao modo de produção capitalista, pela mediação dos modos de produção asiático, escravista e feudal). A história humana é o complexo processo de reprodução social que sintetiza (lembre-se: a totalidade é a síntese, não a soma, dos seus componentes) os atos humanos singulares nas tendências históricas mais universais.
Ou seja, com o surgimento da humanidade temos, uma vez mais, o surgimento de uma nova essência: o que irá determinar a evolução humana não mais será a passagem para formas superiores da matéria inorgânica, mas a passagem de uma forma de trabalho a outra mais eficiente, mais eficaz ao retirar da natureza aquilo que necessitamos. Do trabalho de coleta, passamos ao trabalho proletário dos nossos dias, pelas mediações todas da história (escravismo, feudalismo, etc.). A história deixa de ser a evolução biológica do gênero Homo e passa a ser a sucessão dos modos de produção da sociedade primitiva aos nossos dias, bem como dos indivíduos que os compuseram. Temos uma nova essência: da reprodução biológica, passamos à reprodução social.
Essa essência que se expressa na reprodução social possui três características fundamentais (o fato de serem fundamentais não significa que se apresentem de forma linear, não contraditória) que se desdobram ao longo de toda a história da humanidade.
A primeira corresponde a que, quanto mais desenvolvemos nossas capacidades, nossas forças produtivas, menos peso desempenham os fatores naturais na evolução das sociedades. O fato de termos por base um animal biológico (o Homo sapiens), de a reprodução biológica permanecer uma condição indispensável para a reprodução social, implica que os fatores naturais não podem ser eliminados de nossa história, podem apenas perder a importância que possuíam no passado. Essa primeira característica é denominada por Marx e Lukács de “afastamento das barreiras naturais”. Afastamento, e não eliminação, pelo fato de que a natureza permanece uma eterna base para qualquer reprodução social.
A segunda característica é o desenvolvimento de relações sociais que abarcam uma parcela cada vez maior da humanidade. De um ponto de partida formado por pequenos bandos, que viviam isolados um do outro; partindo de um início em que o sucedido em um continente nada tinha a ver com o que tinha lugar em outro, chegamos a um ponto da história em que a humanidade se unificou em uma única história. Desde o surgimento do mercado mundial, com as Grandes Navegações (1450-1650), até a “mundialização do capital” dos nossos dias, afirmou-se – com avanços e recuos, com contradições – a tendência à articulação de toda a humanidade em um único processo histórico. Hoje, nenhum dos grandes problemas da humanidade, do patriarcalismo ao desemprego, da destruição do planeta à crise estrutural do capital, pode ser enfrentado local ou nacionalmente.
A terceira característica importante é que tanto o afastamento das barreiras naturais e tanto o desenvolvimento das forças produtivas quanto a unificação da humanidade em uma única história requerem e possibilitam que os indivíduos desenvolvam cada vez mais as suas personalidades. Quanto mais diferenciadas as ações, as atitudes que o indivíduo precisa tomar no dia a dia, quanto mais complexas as escolhas que precisa fazer ao longo de sua vida, quanto mais o indivíduo precisa desenvolver suas sensibilidades, suas capacidades para pensar e avaliar o mundo em que vive tanto mais precisa desenvolver sua personalidade enquanto ser humano. A história dos indivíduos vai incorporando cada vez mais tanto o afastamento das barreiras naturais quanto possibilidades e necessidades que brotam da totalidade da humanidade. As possibilidades e as necessidades do desenvolvimento dos indivíduos não param de crescer desde o período primitivo até os nossos dias – em que pesem todas as alienações ao longo da história e mesmo que levemos em conta que é essa uma tendência plena de contradições e desigualdades. A consciência dos indivíduos, das classes sociais e da humanidade vai se aproximando cada vez mais do que o mundo objetivamente é: a forma superior de organização da matéria que é o ser social possibilita, pela primeira vez, que se tenha consciência do que o universo é de fato.
Contudo, de modo semelhante ao que vimos na relação entre a vida e a matéria inorgânica, também na relação do ser social com a natureza temos duas relações básicas: a sociedade não pode ser reduzida à natureza e, contudo, há elementos de continuidade que as articulam. Por exemplo, sem a reprodução biológica dos indivíduos não há reprodução social possível, sem os processos químicos e físicos não há humanidade, etc., etc.
Veja: as leis da dialética são a sistematização em teoria (um reflexo na consciência) das leis mais gerais do desenvolvimento histórico – tanto da natureza quanto da humanidade. Dessa sistematização se desenvolve a concepção de mundo dialética de Marx e de Engels: nada existe que não seja histórico e tudo o que existe é matéria. A dialética (as leis mais gerais da história) e o materialismo (nada existe que não seja resultante do desenvolvimento da matéria) são “determinações da existência” (Marx) de um único e mesmo mundo objetivo e, por isso, ao serem sistematizadas em teoria articulam-se de modo inseparável na concepção revolucionária de Marx e Engels. Aqui, contudo, se iniciam uma série de graves problemas.
A dialética contra a história
Admitindo-se muitas e importantes exceções, não é uma falsidade afirmar que, ao longo do século 20, boa parte (senão a maior parte) das teorias marxistas foi abandonando essa concepção materialista-dialética original. Há várias razões históricas para esse fato, desde o fato de as revoluções do século 20 não terem tido a possiblidade histórica de abrirem a transição ao socialismo e ao comunismo, até o fato não menos expressivo de o capitalismo ter propiciado o desenvolvimento da aristocracia operária e o aumento do peso social dos assalariados não proletários, ampliando significativamente a base social para as concepções reformistas de todos os naipes. É importante realçar esse aspecto: trata-se de um fenômeno ideológico e teórico tão generalizado, que envolveu uma quantidade tão variada de situações históricas e de indivíduos – e por tantas décadas – que o abandono da concepção originária de Marx e Engels não pode ser reduzido a fenômenos nacionais ou a uma ou outra individualidade.
Essencialmente (portanto, deixando de lado fatores importantes, ainda que não tão essenciais) porque para se defender como socialista ou como comunista a antiga URSS (ou mudando o que deve ser mudado, defender hoje como socialista a China, ou Vietnam ou mesmo Cuba) implicava no passado, e implica hoje, duas consequências. A primeira: revisar na essência o que Marx e Engels concebiam como socialismo e comunismo. Deveria ser recusada como utópica a concepção originária, segundo a qual o socialismo seria a transição ao comunismo e que esse seria uma sociedade sem classes, sem Estado, sem família monogâmica e sem a exploração do homem pelo homem.
A segunda: é que é preciso velar o fato de que na ex-URSS (bem como na China, Cuba ou Vietnam do presente) a economia se baseava e se baseia na exploração do trabalho e que, por isso, era uma economia fundada na propriedade privada. Era preciso velar que, por isso, tratava-se de uma sociedade de classe, ainda que um pouco diferente das sociedades burguesas porque as “personificações do capital” eram os burocratas e, não, os proprietários privados típicos da ordem do capital. Por fim, era preciso esconder que tanto lá quanto nos países capitalistas típicos a mercadoria (com seu fetichismo) era a relação social mais universal.
Foi por essa evolução que surgiu o “marxismo vulgar”, aquele “marxismo” que se converteu em instrumento de propaganda política (no sentido pejorativo) ao invés de cumprir a função e compreender o mundo para auxiliar a transformá-lo. Claro que esse marxismo nada tem a ver com o pensamento de Marx e Engels e, a seguir, de Rosa Luxemburgo, Lenin e Mészáros. Sua variante mais significativa é o stalinismo. Por essa via, a dialética vai sendo transformada. Deixa de ser o movimento da matéria, o desenvolvimento da realidade objetiva (que o pensamento deve se esforçar por refletir) e vai se convertendo em “regras lógicas” a partir da qual seria possível “deduzir” a história, ao invés de investiga-la.
É assim que em muitos manuais de marxismo dos nossos dias o materialismo dialético e o materialismo histórico são dissociados. O primeiro é uma “lógica do bem pensar”; o segundo, a história deduzida por meio dessas leis lógicas. Estuda-se, assim, a dialética apartada da história, como se fosse um conjunto de regras lógicas; a história, por sua vez, estuda-se como se fosse a encarnação em processos particulares das leis lógicas universais. História e dialética estão, nessa concepção, definitivamente apartadas e, por esse meio, a dialética passa a ser fundante da história.
Nada mais falso e mais distante da concepção dialética e materialista de Marx e Engels. Para eles não há materialismo histórico versus materialismo dialético, antes, o materialismo histórico é dialético e, o materialismo dialético, histórico. A dialética é a sistematização do movimento da matéria natural e da material social. A história é o movimento dialético da matéria natural e social. Não há, para Marx e Engels, dois materialismos (o histórico e o dialético), mas apenas uma concepção materialista-dialética de mundo.
Há aqui uma enorme questão que, agora, apenas poderemos mencionar, mas prometemos voltar a ela em um próximo texto: o problema do método dialético. Muito brevemente, o stalinismo e o marxismo vulgar (bem como muitos pensadores idealistas) concebem que o método seria o critério de verdade. Isto é, seguindo corretamente o método tido por correto, a verdade seria uma consequência natural da investigação. Para Marx e Engels (e para Lukács e Mészáros) isso é absolutamente falso. O método não é critério de verdade, mas apenas a sistematização do que, no passado, se revelou adequado no tratamento do desconhecido. Um método incorreto pode levar a resultados verdadeiros na ciência e na filosofia e, o oposto com frequência também tem lugar. Isso, contudo, deve ficar para um próximo artigo: como o marxismo vulgar converteu o método em algo que substitui a investigação do mundo real e, por isso, serve para velar a realidade e, não, para desvela-la.
Textos recomendados:
De Engels, Do socialismo utópico ao científico e de Marx, A miséria da filosofia são textos clássicos sobre essa questão. Sobre a conversão do marxismo em órgão de propaganda conferir, de Fernando Claudin, o capítulo “A crise teórica”, de seu livro A crise do movimento comunista (Expressão Popular). Como exemplo de manuais do marxismo vulgar, conferir Os fundamentais de filosofia, de G. Politzer e de Stalin Materialismo histórico e materialismo dialético. Por fim, para uma típica distorção da história pelo stalinismo, conferir História do PC(b) da URSS, um texto de 1938 reeditado no Brasil pelo PCR. Sobre a questão do método, ver de Ivo Tonet O método científico (Instituto Lukács).