Argentina: crise política revela podridão do estado burguês
3 de março de 2015
Este texto é uma contribuição individual e não necessariamente expressa a posição do Espaço Socialista, por isso se encontra assinado por seu autor
Daniel M Delfino
Assim como o Brasil, a Argentina passa por um momento de questionamento de sua presidente. No Brasil, o questionamento tem sido levantado por conta das denúncias de corrupção na Petrobrás, que originaram uma campanha pelo impeachment de Dilma. Ainda que não tenha tomado as proporções de uma ofensiva real com o propósito de derrubar imediatamente o governo burguês de plantão, essa campanha segue vicejando nos meios virtuais, na mídia e nos bastidores como uma espécie de carta na manga ou plano B da burguesia.
Na Argentina o questionamento é bem mais profundo. A presidente Cristina Kirchner foi acusada pelo procurador Alberto Nisman de encobrir os culpados dos atentados de 1994 em Buenos Aires contra uma instituição judaica. Quatro dias depois da denúncia, em 18 de janeiro, o procurador é encontrado morto em sua casa. Não há provas conclusivas sobre as hipóteses de suicídio ou assassinato. A oposição burguesa, a mídia e setores do judiciário não perderam tempo e imediatamente colocaram a culpa da morte do procurador na presidente. O governo, por sua vez, denunciou o procurador por suas ligações com os Estados Unidos e Israel.
A guerra de acusações entre o governo e a oposição prossegue e já está enojando a população, ao expor as entranhas do aparato do Estado e a putrefação que reina nessas altas esferas. O certo é que não há nenhum inocente na disputa. A motivação politica da acusação do procurador Nisman tem a ver com a situação atual da Argentina, a deterioração da economia e a disputa pela sucessão de Cristina Kirchner, nas eleições de outubro. Mas para entender a trama dos acontecimentos é preciso retomar o fio da meada até os próprios atentados.
Os atentados de 1992/1994 e o pântano judicial
Na linha do tempo dos acontecimentos relevantes para o caso, o primeiro ponto se situa em 1991, ano em que governava Carlos Menem, equivalente portenho ao que foram os governos Collor e FHC no Brasil, aplicadores ferozes do neoliberalismo e entusiastas da globalização. Neste ano, Menem envia navios para a 1ª. Guerra do Golfo, como parte da coalizão que os Estados Unidos montaram contra o Iraque. Essa aliança militar simbolizava aquilo que o próprio Menem denominou de “relações carnais” com os Estados Unidos, ou seja, submissão completa ao imperialismo.
A resposta a essa adulação servil do imperialismo não veio do nacionalismo latino americano, mas de um atentado em frente à embaixada de Israel em Buenos Aires, em 17/03/1992, que deixou quase 30 mortos. A investigação do atentado foi conduzida pela própria Suprema Corte argentina, por se tratar de um alvo ligado a um Estado estrangeiro, e se concluiu em 1994, sem conseguir apontar os culpados. No mesmo mês da conclusão judicial, no dia 18/07, acontece outro atentado, dessa vez contra a Associação Mutual Israelita Argentina – AMIA, que deixou 85 mortos e mais de 300 feridos.
A investigação desse segundo atentado deu origem a um novo e gigantesco inquérito, cujo julgamento aconteceu entre 2001 e 2004. Esse julgamento se debruçou sobre três possíveis pistas, que incriminavam setores da comunidade islâmica radicados na Argentina e supostamente relacionados ao Líbano, Síria ou Irã. Mas o único condenado no julgamento foi o próprio juiz do caso, flagrado em vídeo recebendo uma propina milionária de um policial implicado em uma das linhas de investigação. O fracasso do julgamento levou o processo de volta à estaca zero. Houve então a substituição da equipe encarregada da investigação por um novo grupo, chefiado pelo procurador Alberto Nisman, recém falecido.
A reconstrução da governabilidade burguesa na era K
Acontece que esse novo ciclo de investigação dos atentados a AMIA se dá no marco de uma nova conjuntura nacional, a estabilização do país sob os governos de Nestor Kirchner e sua viúva e sucessora Cristina, a partir de 2003. O casal K, como são chamados os Kirchner na Argentina, assumiu a tarefa de reconstruir as instituições do país e salvaguardar a continuidade do capitalismo, depois do contundente clamor das ruas para “que se vayan todos”, que marcou a revolta popular do “Argentinazo” de 2001. A reconstrução das instituições do regime se deu com uma ampla reciclagem do pessoal que ocupava o aparato do Estado, substituído por figuras do escalão inferior, menos conhecidas e menos rejeitadas pelo povo. Mas ainda assim, foi uma continuidade, que se deu em todos os níveis, desde o executivo ao judiciário. O procurador Nisman fazia parte da equipe do juiz anterior do caso AMIA.
A era K, como os governos do PT no Brasil, garantiu a governabilidade capitalista de um país que havia sido pesadamente atingido pela crise mundial anterior (2000/2001), que resultou numa rejeição massiva ao modelo neoliberal. Essa tarefa foi facilitada pela conjuntura favorável de retomada do crescimento econômico mundial em meados da década, que resultou numa alta dos preços das “commodities” em que se especializaram os países latino-americanos (carne e trigo, no caso da Argentina). Esse momento favorável da economia na década passada permitiu a esses governos garantir os lucros da burguesia e do imperialismo e ao mesmo tempo fazer limitadas concessões às massas.
O esgotamento do modelo, a partir da crise de 2008, leva a dificuldades crescentes para o governo K na Argentina, culminando em derrota nas eleições parlamentares de outubro de 2013 para os partidos da oposição burguesa (ressalve-se que os partidos da esquerda classista, agrupados numa coligação eleitoral chamada FIT, também obtiveram uma boa votação). É nesse contexto de possível derrota eleitoral da presidente e fim da era K que se deu a acusação do procurador Nisman. A burguesia argentina e o imperialismo parecem dispostos a substituir o kirchnerismo por um governo burguês “normal”, sem qualquer tipo de fachada “progressista” ou concessões aos trabalhadores.
A conspiração do imperialismo e da oposição
A oposição interna e externa conseguiu cooptar o procurador Nisman (que havia sido apontado para a função de investigar o caso AMIA pelo próprio Nestor Kirchner) e orientá-lo para que acusasse a presidente Cristina. Foi adotada a pista iraniana, com base em depoimentos pouco críveis de dissidentes iranianos hostis ao governo daquele país. Ou seja, a incriminação de supostos agentes iranianos foi feito por pessoas declaradamente hostis ao governo daquele país, que teriam todos os motivos para faltar com a verdade e inventar insinuações.
Essas insinuações foram transformadas em prova judicial com a mediação do imperialismo estadunidense. Quando foram publicados no site Wikileaks em janeiro de 2011 os documentos das embaixadas estadunidenses e as ações de espionagem que elas encobrem pelo mundo inteiro, havia um capítulo argentino, que tratava exatamente do caso AMIA. Nesses documentos expunha-se o fato escandaloso de que o procurador Nisman submetia as peças jurídicas que redigia na investigação aos funcionários da embaixada, e somente depois das devidas correções da inteligência estadunidense elas eram publicadas como oficiais. Esse procedimento criminoso e servil foi denunciado amplamente nos livros “Argenleaks” de 2011 e “Politileaks” de 2014, do jornalista Santiago O’Donell. Apesar disso, Nisman foi mantido no cargo de procurador e na investigação do caso AMIA, como se nada tivesse acontecido!
Da mesma forma seguiram intocados os agentes do SIDE (Serviço de Inteligencia do Estado, herdado da ditadura militar argentina – 1977-1983), formalmente subordinados ao poder executivo e empregados por Nisman na investigação, muitos dos quais remanescentes da ditadura, uma das mais assassinas do continente. Ressalve-se que uma das frentes do marketing “progressista” dos governos K foi a punição de alguns dos agentes da ditadura, em especial nas Forças Armadas. As punições, entretanto, deixaram intocados os agentes da inteligência.
Esses serviços secretos, como em todos os países, acabam desenvolvendo interesses próprios, sem nenhuma lealdade aos governantes de plantão a quem estão formalmente subordinados, nem a alguma ideologia ou projeto politico. Formam um cisto no interior do Estado, protegido pelo caráter secreto de suas atividades, sem que se saiba sequer o nome real dos seus integrantes, o que fazem na prática, seu orçamento, etc. Na realidade, os serviços secretos servem apenas para realizar o trabalho sujo da burguesia, aquele que as instituições “normais” de policia e Forças Armadas não podem desempenhar (pelo menos não em tempos de democracia burguesa formal): espionagem, intimidação, tortura, desaparição, assassinato de opositores, especialmente de organizações dos trabalhadores.
Nenhum governo burguês pode prescindir de agentes para esse tipo de serviço sujo, mas ao mesmo tempo nenhum governo tem controle total sobre o que fazem, sendo forçado a tolerar os abusos que cometem em interesse próprio. De tempos em tempos os abusos vêm à tona e os serviços são formalmente reformados, mas sua essência permanece a mesma.
A geopolítica de uma acusação forjada
O resultado dessa conspiração foi a denúncia contra Cristina Kirchner, redigida em co autoria com a inteligencia estadunidense e assinada por Nisman. Em tal denúncia constava a acusação sobre a presidente e seu chanceler (ministro das relações exteriores) de negociar com o governo iraniano a retirada de pedidos de busca, formalizados na Interpol, contra agentes iranianos que teriam participado dos atentados, segundo a pista preferencial adotada pelo procurador. Em troca, seriam reabertas as negociações comerciais com o Irã (país isolado por sanções comerciais do imperialismo), visando sobretudo o fornecimento de petróleo iraniano à Argentina (que como o Brasil, vive uma crise energética).
Recentemente, o próprio governo Obama iniciou uma reaproximação com o regime dos aiatolás, notório integrante do “eixo do mal” desde a revolução de 1979, que foi materializada no “plano de ação conjunta” de novembro de 2013 sobre o programa nuclear daquele país. Aparentemente, o governo argentino, através do chanceler de Cristina, havia interpretado essa reaproximação como uma espécie de “autorização” informal do imperialismo para também normalizar suas próprias relações com o Irã. O imperialismo então usou o procurador Nisman para colocar a Argentina de volta no seu devido lugar, ou seja, o de uma semicolônia, que não pode dar nenhum passo em suas relações internacionais sem a aprovação de seus amos imperiais.
Que na denúncia apresentada pelo procurador não haja provas concretas não importa (as negociações entre Argentina e Irã de fato aconteceram, mas não foram suficientes para que a Interpol retirasse os pedidos de busca). O que importava era causar problemas para a presidente Cristina, em ano eleitoral, e desgastar seu projeto. A morte de Nisman, em circunstâncias ainda não esclarecidas (e que provavelmente nunca serão, assim como os próprios atentados) elevou a temperatura da situação.
As lições da crise
A população argentina está sendo bombardeada diariamente pela mídia com as idas e vindas do caso Nisman, com a acusação de assassinato sobre a presidente e de outro lado a denúncia da relação de Nisman e agentes de inteligência a seu serviço com os Estados Unidos. O governo contra atacou dissolvendo o SIDE, substituindo-o por outro órgão com as mesmas funções. No dia 18/02 aconteceu uma marcha convocada pela oposição pedindo justiça para o procurador Nisman. Segundo a imprensa burguesa internacional, sintonizada com o imperialismo, a marcha contou com 400 mil pessoas. Fontes da esquerda argentina, entretanto, independentes em relação ao governo e também à oposição burguesa, calculam o efetivo da marcha em 100 mil pessoas (ver por exemplo http://www.socialismo-o-barbarie.org/?p=4313). O certo é que a maioria da classe trabalhadora ignorou a convocação da marcha e não compareceu nem lhe deu muita atenção. Os participantes limitaram-se à hierarquia do judiciário, políticos burgueses e a classe média. Na vida real, que não passa na TV, a população trabalhadora está se cansando do escândalo e mais preocupada com os problemas da economia, inflação, desemprego, etc.
Desse processo em andamento no país vizinho nos ficam algumas lições:
– o papel subordinado e semicolonial dos países periféricos, como a Argentina e o Brasil, a sua completa falta de soberania real e a ação permanente de monitoração e controle da politica desses países pela rede de embaixadas/espionagem estadunidenses;
– o papel nefasto dos serviços de inteligência, o seu caráter de instituições intrinsecamente antidemocráticas e antipopulares;
– a necessidade da dissolução de todos os resquícios das ditaduras militares, seus serviços de inteligência e demais órgãos de repressão, todos ainda repletos de torturadores e assassinos, que por sua vez devem ser todos julgados e condenados, estejam na ativa ou já retirados;
– a necessidade da publicação de todos os documentos e negociações internacionais, que são tratados às escondidas pelos burocratas do Estado, como se fossem assuntos que não dizem respeito ao conjunto da população;
– a necessidade de investigações independentes, sem a presença de agentes suspeitos do Estado, sejam do judiciário ou do executivo, para esclarecer acontecimentos como os atentados à AMIA e o próprio assassinato do procurador. Essa investigação teria que ser assumida pelas organizações dos trabalhadores;
Pela sua profundidade, a crise na argentina afeta não apenas o governo burguês K, mas seus opositores burgueses, e boa parte das instituições, o judiciário, serviços de inteligencia, etc. Trata-se portanto de uma crise do regime. A saída dessa crise pode ser dada pela burguesia por meio da eleição de opositores do kirchnerismo. Isso, entretanto, não resolveria os problemas concretos do país, a crise energética que foi pivô do caso, a inflação, o desemprego, etc. Esses problemas só podem ser resolvidos com uma mobilização popular.
Em relação ao caso AMIA e Nisman, é preciso denunciar o caráter das instituições do Estado burguês, o seu papel de órgão a serviço da classe dominante e da exploração e opressão dos trabalhadores, colocando como palavra de ordem a mais radical das demandas democráticas, a de uma Assembleia Constituinte. Uma Constituinte arrancada pela mobilização popular traria a oportunidade de, entre outras questões, discutir as instituições de alto a baixo (o que traria a oportunidade de, dependendo do grau de mobilização, por abaixo o próprio Estado capitalista e substituí-lo por um poder dos trabalhadores, que encaminhe uma transformação revolucionária) e colocar em prática os ensinamentos listados acima.