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As Idas e Wandas da história


28 de fevereiro de 2015

idas e wandas

Comentário sobre o filme “Ida”, vencedor do Oscar de filme estrangeiro. Por Daniel M. Delfino

O filme polonês “Ida” está ambientado na década de 1960, portanto cerca de duas décadas depois do fim da II Guerra, em que a Polônia serviu como palco para a maior parte do Holocausto judeu. O filme mostra uma jovem noviça (chamada Ida) que, às vésperas de proferir seus votos no convento em que foi criada como órfã, recebe a notícia de que possui uma tia ainda viva, e junto com a notícia, a ordem da madre superiora de que vá visitá-la A tia, uma juíza chamada Wanda Gruz, lhe revela a sua origem judia e a leva para sua cidade natal, para que visite o túmulo dos pais e saiba como morreram. A tia na verdade sempre soube da existência da sobrinha, mas somente neste momento resolveu lhe contar a verdade, porque parece ser o momento em que resolveu também acertar as contas com o próprio passado. Nesse passado se esconde a tristeza de ter um filho morto ainda criança (juntamente com os pais de Ida).
A personagem Ida, teoricamente a protagonista, é o que há de menos interessante no filme, porque ela própria não se interessa por nada, e se comporta como uma mera espectadora dos acontecimentos. A revelação de sua origem judia não lhe provoca nenhuma comoção ou impacto. Em nenhum momento ela cogita em conhecer o passado de sua família e de seu povo. O drama do Holocausto parece ter acontecido em outro planeta. Ida está desconectada da história, e mesmo da história recente. Nem a história dos judeus na Polônia, nem o discurso ateu da tia, nem a sedução da vida fora do convento, seus prazeres, seus amores e suas dores, repetimos, nada lhe interessa além da fábula da religião. Ida é impermeável, parece bem adaptada ao tédio do convento, onde o silêncio só é quebrado pelo som dos garfos tilintando nos pratos na hora das refeições. No convento tudo é decidido pelos superiores e já vem pronto, sem requerer envolvimento existencial.
A atitude de Ida em face da história do país e seu entrelaçamento com sua própria história pessoal é bastante semelhante àquela característica dos dias atuais, que também parecem desconectados da história. As grandes questões humanas, os conflitos políticos, as guerras e revoluções, parece que nada disso faz algum sentido ou tem explicação. O sentido da tragédia que se abateu sobre o país, onde foi executado o maior número de judeus pelos nazistas (basta lembrar que o mais infame dos campos de concentração, Auschwitz, fica na Polônia), a luta para se libertar do invasor alemão, a ocupação pelo Exército Vermelho e a instalação da chamada “democracia popular”, são um pano de fundo tão distante que não aparece e não é questionado no filme. Os personagens são jogados de um lado para o outro pelos acontecimentos, é assim que a mentalidade pós-moderna do século XXI os vê. Tudo não passa de idas e vindas aleatórias, o contexto histórico parece indiferente, e é assim que a própria Ida vê a sua história pessoal.
A não ser por algumas referências e formas de tratamento, como o uso do termo “camarada”, o espectador não tem noção de que a Polônia foi durante algumas décadas do século XX um dos chamados países “socialistas”. O modo de vida das personagens, que passeiam, se hospedam em um hotel, vão a um salão de baile, onde uma banda toca John Coltrane, novidade “cult” da época, parece idêntico ao de qualquer outro país, capitalista ou não. O rápido flerte de Ida com o saxofonista da banda parece não avançar porque ele não tem nada de diferente a lhe oferecer a não ser, como ele mesmo diz, um casamento, uma casa, um cão, filhos, a “vida”, tal como ela é vivida em qualquer parte.
O verdadeiro interesse do filme esta na tia de Ida, a juíza Wanda Gruz. O movimento que desencadeia os acontecimentos da narrativa parte de sua iniciativa, quando resolve se dar a conhecer à sobrinha. Esse passo deve ser entendido na verdade como parte de um movimento mais geral de busca de seu próprio passado, como dissemos. Esse movimento, e o próprio filme, na verdade não têm um final feliz. E a única forma de entendê-lo, e entender a profundidade dramática do filme, é recorrendo à história, ou seja, à luta de classes.
As sinopses e o próprio aparato publicitário de divulgação comercial do filme vão citar suas apuradas qualidades estéticas, a bela fotografia em preto e branco, o uso peculiar da música e do silêncio (os personagens ouvem muita música – jazz, pop, erudita – mas não há quase trilha sonora), etc. E foi provavelmente em função dessas qualidades estéticas que o filme foi premiado com o Oscar para produções em língua não inglesa. Mas esse modo de apresentar o filme, tipicamente pós moderno, não permitirá entender o seu sentido profundo, as motivações da personagem Wanda e as razões do seu fracasso.
Em certo momento a tia de Ida se refere a si mesma no passado como “Wanda, a vermelha”, pelo que deduzimos que ela foi uma militante bastante ativa na juventude. Depois ficamos sabendo que ela teve um filho, a quem abandonou (e que acabaria sendo morto junto com os pais de Ida) para se engajar na guerra contra os nazistas. O tom com o qual ela se refere ao seu passado vermelho é de um certo deboche, como se a sua época de “vermelhidão” ardente fosse uma época de ingenuidade. Daquele passado militante ela manteve as características de uma mulher forte, dura, que toma iniciativa em tudo, mantém o controle em qualquer situação, características que ela emprega em sua função de juíza. Entretanto, apesar dessa força aparente, no geral Wanda parece uma mulher amargurada e até arrependida. O retrato da mulher militante acaba sendo desfavorável, como alguém que afoga as frustrações no alcoolismo e no sexo casual, sem muito propósito.
Essa é a conclusão que pode surgir sobre Wanda, mas a verdade profunda é outra. Wanda foi uma militante que dedicou a sua juventude a uma revolução socialista. Mas o que houve na Polônia não foi uma revolução, e sim a libertação do país da ocupação nazista pelo Exército Vermelho soviético, contando com o apoio de militantes locais. O Exército Vermelho impôs de fora para dentro e de cima para baixo um regime politico chamado “socialista”, que expropriou a burguesia, mas que não colocou a produção e as demais relações sociais sob controle da classe trabalhadora, e sim da burocracia do partido comunista polonês, satélite do governo soviético. Ou seja, o regime existente na Polônia (e em todo o leste europeu onde o processo se reproduziu), como o da própria URSS, não era de fato socialista, e sim o resultado de uma transição interrompida. Rompeu-se com o capitalismo, mas estacionou-se num ponto intermediário, que não tinha para onde avançar, e ao final retrocedeu para a restauração capitalista. O determinante para o fracasso dessa transição foi a falta de organismos de poder próprios da classe trabalhadora, onde os produtores associados exercessem direta e conscientemente o poder político e o econômico simultaneamente.
Na falta desses elementos para uma transição ao socialismo, os frutos da expropriação da burguesia foram colhidos pela burocracia “comunista”, que estabeleceu uma forma de exploração sobre os trabalhadores em benefício próprio. Essa forma bastarda de sistema econômico emperrou na sua própria ineficiência burocrática, na incapacidade de melhorar a vida dos trabalhadores e assim contar com sua adesão, e na impossibilidade de se subtrair à concorrência do mercado mundial e à vigência da lei do valor. Essas formas de transição interrompidas não tinham condições de se perpetuar e naufragaram décadas depois dos acontecimentos do filme, entre 1989 e 1991.
Wanda Gruz era uma dessas burocratas, exerceu o cargo de promotora, tornou-se juíza, mas experimentava um sensação profunda de tédio e vazio com sua função. Nós a presenciamos julgando causas insignificantes, picuinhas, perseguindo antigos opositores (como um réu contra o qual pesava a evidência condenatória de haver herdado do avô uma relíquia da legião do general Pilsudski). Isso é muito pouco para quem foi “vermelha” na juventude. Com a função que tinha, Wanda levava uma vida confortável, num país estacionado mediocremente acima da pobreza, mas isso não lhe trazia consolo. Reencontrar a sobrinha, confrontar o passado, a morte dos pais dela e de seu próprio filho, tirar Ida do convento e lhe apresentar o ateísmo e a liberdade sexual, nada disso acabou trazendo um novo sentido para a vida de Wanda, por isso, como dissemos, não temos um final feliz.
Felizmente, a história não acabou (ao contrário do que dizem os apologetas vulgares do capitalismo), a revolução não morreu, a luta de classes continua, a emancipação humana ainda está no horizonte, e temos que avançar para o socialismo, para não cair na barbárie. Ou nos conectamos com a história e aprendemos com ela para mudar o presente, ou não teremos futuro. O limbo cinzento da pós modernidade, da impermeabilidade e de pessoas indiferentes, dará lugar ao vermelho vivo de novas Wandas.