“O Abutre” e o fim do jornalismo
16 de janeiro de 2015
Comentário sobre o filme “O Abutre” – Daniel M. Delfino
O filme “O abutre” trata do mundo do jornalismo policial sensacionalista. Ambientado em Los Angeles, retrata a ascensão de um cinegrafista amador, chamado Louis Bloom, que começa de maneira improvisada vendendo vídeos para uma emissora local, e aos poucos se torna uma espécie de pequeno empresário do ramo. No início, ele aparece como um jovem desempregado, sem perspectivas, que vivia de bicos e pequenos delitos. Ao presenciar um acidente automobilístico e a ação de um cinegrafista “freelancer” profissional e já bem estabelecido, Bloom resolve ingressar na área e se tornar também cinegrafista.
Sua coragem para quebrar as regras, se aproximar das cenas, expor em detalhes os incidentes, chegar antes mesmo da polícia ou do resgate, o levam para um lugar de destaque no mundo das notícias. Suas filmagens são repetidamente exibidas como matéria de abertura do telejornal matinal de uma emissora local. A regra básica do jornalismo policial sensacionalista é exposta logo no início pelo veterano cinegrafista e concorrente de Bloom, com um poder de síntese que só é possível na língua inglesa: “if it bleeds, it leads”, algo como, “se tem sangue, tem manchete”. A audiência do jornalismo “mundo cão” depende de sangue, de cenas violentas, tiroteios, atropelamentos, incêndios, com as vítimas sendo expostas sangrando.
Quanto mais brutal, melhor. Louis Bloom aprende rápido, como ele mesmo diz mais de uma vez. Tanto que aprende a manipular os acontecimentos, para que sejam os mais espetaculares e cinematográficos possíveis. Para ser o melhor, ele não apenas retrata os incidentes, mas também os produz, nem que para isso tenha que colocar vidas humanas em risco e enganar a polícia. A ascensão de Bloom o leva até mesmo para o apartamento da diretora de jornalismo Nina, que se torna dependente dos seus materiais. A equação é muito simples: violência traz audiência, audiência traz dinheiro, dinheiro traz poder e poder traz sexo. O sexo traz compromisso e a exigência de mais dinheiro e poder, o ciclo do capital não pode parar.
Que o jornalismo sensacionalista não tem escrúpulos e seja levado ao cúmulo da desumanização pelo impulso da concorrência por cenas mais espetaculares, isso já é de certa forma conhecido. O mais interessante do filme, porém, não é a simples denúncia da falta de escrúpulos e de limites dos abutres que vivem às custas de expor a violência urbana. O que dá ao filme uma importância maior são dois elementos muito marcantes no seu pano de fundo: a demonstração impiedosa da função ideológica do jornalismo sensacionalista na luta de classes e também da degradação social dos Estados Unidos na era Obama.
A função do jornalismo: meias verdades que se tornam uma mentira
Numa certa passagem alguém diz que os programas jornalísticos dedicam 20 segundos para as notícias que dizem respeito à economia, política, questões sociais mais gerais, e 20 minutos para a violência urbana. Nessa proporção, qualquer possibilidade de estímulo a uma visão geral e crítica da realidade está impossibilitada já desde o início. O jornalismo sucumbe ao sensacionalismo, e o sensacionalismo transforma o jornalismo num ramo de entretenimento, com a função narrar uma história, cujo roteiro já está definido.
A finalidade do jornalismo sensacionalista, sua função como ramo da mídia, aparece por meio da personagem Nina. Como diretora de jornalismo, ela sabe o que interessa à audiência e ensina à equipe da emissora e ao cinegrafista Bloom. O critério ideológico para avaliar o que é notícia é bastante preciso. Há uma narrativa padrão que deve ser permanentemente reforçada. As histórias que interessam são as que mostram os brancos, bem sucedidos, de famílias de alta renda, que moram em bairros de classe média e de luxo, sendo vítimas de crimes cometidos por negros, latinos e asiáticos. Isso é notícia, o restante não é. Se os crimes acontecem nos bairros onde moram essas minorias, já não interessam à audiência, não são notícia.
A função da notícia no jornalismo sensacionalista não é expor a realidade, é enquadrá-la numa narrativa ideologicamente pré definida. Os brancos do segmento “WASP” (white, anglo-saxon, protestant – branco, anglo-saxão, protestante) são os mocinhos, as minorias são os vilões. Essa é a narrativa padrão que deve ser reforçada, e tudo o que foge dessa narrativa deve ser oculto. No principal incidente do filme, um traficante de drogas que mora num bairro de luxo é assassinado com a família. Para o jornalismo sensacionalista, o assassinato é a única parte da realidade que interessa. Mostrar que se tratava de um traficante não interessa. A descoberta posterior de que ele tinha grande quantidade de cocaína em casa não precisa ser mostrada, não é notícia, porque “estraga a história”. A história tem que ser sempre a mesma: brancos como vítimas, minorias como vilões.
O jornalismo policial sensacionalista parece estar mostrando uma realidade nua e crua, expondo em detalhes a violência urbana de uma grande metrópole. Na verdade, essa aproximação das lentes, essa exposição cirúrgica dos detalhes dos incidentes, das pessoas sangrando no chão das ruas, não está se aproximando da realidade, mas se afastando dela. A verdade não está no detalhe em si, mas na sua relação com o conjunto.
“A verdade está no todo”, dizia Hegel
Para entender a violência urbana, é preciso explicar a função política da proibição do consumo de drogas, o fato de que a humanidade sempre consumiu drogas, de que algumas são permitidas e outras são proibidas; de que o critério para a proibição não tem a ver com a letalidade das substâncias em si (afinal, álcool e cigarro, que são legalizados, também causam uma quantidade enorme de mortes, doenças, violência doméstica, acidentes de trânsito, etc.), mas com a história, a política e a luta de classes; de que o estado pode montar um imenso aparato policial e militar para reprimir as minorias, sob o pretexto de reprimir o tráfico; de que os lucros do tráfico são repartidos entre traficantes, policiais, juízes, banqueiros, políticos, etc.
A verdade sobre a violência urbana e sobre os incidentes mostrados no jornalismo policial sensacionalista está no contexto social que produz a violência, não no detalhe dos incidentes em si. Mas o que é exaustivamente mostrado são justamente os incidentes. A fragmentação da realidade e a falta de visão do conjunto e do contexto só servem para produzir medo e ódio contra as minorias, para reforçar estereótipos, preconceitos, discriminação, segregação e repressão.
Cumpre assinalar também que essa metodologia não é exclusiva do jornalismo policial estadunidense. Não se trata apenas de que a concorrência comercial obriga as empresas de mídia a exibir o que parece atraente para seu público, mas de que os dirigentes dessas empresas exercem conscientemente uma função ideológica. Seja em “O abutre” ou nos programas “mundo cão” da TV brasileira (cujo público, inversamente, está mais na própria periferia do que na classe média), o jornalismo policial sensacionalista cumpre a função política de mostrar a cada classe social qual é o seu lugar. A mídia tem o poder de fabricar uma narrativa que estabelece quem é digno de ser considerado humano e cuja vida possui valor, e quem não é.
Esse poder de apresentar grupos sociais como protagonistas e vilões é usado em favor da manutenção de políticas que reforçam a dominação de classe e os interesses globais e particulares da burguesia. Tal critério é aplicado, por exemplo, na cobertura jornalística internacional do processo de limpeza étnica e genocídio dos palestinos nas mãos do exército de ocupação sionista. As vidas dos palestinos não contam, podem morrer aos milhares, porque são parte de um povo “bárbaro”, “fanático” e “terrorista”. As vidas que contam são as dos israelenses, um povo “civilizado” e “democrático”. É o mesmo caso das “balas perdidas” que matam cidadãos da classe média carioca, e que motivam passeatas “pela paz”, enquanto que as mortes de Amarildos e Cláudias, que se sucedem aos milhares, não merecem sequer uma nota de rodapé.
A decadência social nos Estados Unidos da era Obama
Outro aspecto bastante marcante do filme “O abutre” é a crônica da decadência social nos Estados Unidos pós crise de 2008. Louis Bloom se apresenta como alguém que não teve muita educação formal, mas fez um curso “on line” de administração de empresas. Para progredir na carreira, Bloom contrata um assistente e o explora até o limite, reproduzindo a mesma exploração de que já foi vítima e que observa por toda parte. Ao longo do filme, ele repete exaustivamente para seu assistente os chavões e clichês do mundo da administração. As frases feitas dos gurus do “management” são uma espécie de religião para ele. Os mantras da gestão capitalista tomam uma feição sinistra e caricata ao serem repetidos sem parar por um personagem sem escrúpulos, e que confessa que não gosta das pessoas.
Na verdade, não é uma caricatura, mas a expressão de uma realidade social brutalizada. A crise econômica de 2008 produziu um empobrecimento drástico nos Estados Unidos, que é o país com o maior número de miseráveis e a maior desigualdade social entre os países ricos. A classe trabalhadora estadunidense foi penalizada com a crise, forçada a conviver com o desemprego e o subemprego. Há uma parcela imensa da juventude que não tem perspectiva, que vive de bicos e subempregos. É o caso do próprio Bloom e do assistente que ele contrata em regime ultra precarizado, como “estagiário”, com a promessa de que se houver suficiente esforço, será recompensado quando vier uma “avaliação de desempenho”.
Nos Estados Unidos, as relações trabalhistas não estão minimamente regulamentadas, não há um mínimo de proteção, é bastante comum que os contratos sejam verbais. Os patrões se comprometem oralmente a pagar uma certa quantia em dinheiro e ponto final. Em muitos casos, como entre Bloom e seu assistente, não há contrato de trabalho, contribuição para a previdência social, para aposentadoria, seguro desemprego, auxílio doença ou invalidez, etc. É o mundo do salve-se quem puder, a distopia do liberalismo em estado puro. No final das contas, a função do assistente (não por coincidência, um jovem de descendência árabe) é servir como mais uma vítima, e portanto matéria prima de mais uma superprodução sensacionalista.
Ficha técnica:
Nome original: Nightcrawler
Produção: Estados Unidos
Ano: 2014
Idiomas: inglês
Diretor: Dan Gilroy
Roteiro: Dan Gilroy
Elenco: Jake Gyllenhaal, Rene Russo, Bill Paxton, Riz Ahmed
Fonte: “The Internet Movie Database” – http://www.imdb.com/