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“Eu? Eu não sou Charles!”


30 de janeiro de 2015

eu não sou charlie

Este texto é uma contribuição individual, que não representa a posição da organização Espaço Socialista, e por isso se encontra assinado por seu autor

Sergio Lessa

O único sinal de que nem todos estavam cegos à realidade era um solitário cartaz, “Moi, je ne suis pas Charles!”, na esquina da praça em que, na noite anterior, a prefeitura de Haia, na Holanda, promovera sua manifestação contra o “terrorismo”.
Menos de dois dias depois, uma multidão de franceses foi às ruas pela “unidade”ao redor do Estado contra o inimigo público número um: cidadãos franceses tidos por “radicais muçulmanos”. Todos eles filhos dos trabalhadores imigrantes que o capital francês trouxe da periferia de seu império para produzir a mais-valia absoluta de que necessita.Enquanto filhos imigrantes, são subfranceses. Deveriam não se revoltar, portanto, contra a condição a que são delegados: o maior desemprego, os piores trabalhos, os menores salários, as piores escolas, as piores moradias, os piores serviço públicos e – claro, de quebra, porque não há mal que venha só – a truculência das forças da ordem.
O que os eventos de Paris evidenciam é que há duas Franças: aquela que produz a mais-valia absoluta sem a qual o capital não se reproduz, e aquela outra, que parasita esta riqueza produzida também pelos imigrantes. Parte do proletariado francês, sua aristocracia acima de tudo, faz parte do bloco dos parasitas: daqui a posição da maior parte dos sindicatos e organizações dos trabalhadores. Quando não apoiam a repressão ao “terrorismo”, se escondem atrás de um revelador silêncio.
Uma expressão politicamente de direita da revolta dos trabalhadores miseráveis da Franca,o ataque à sede do Charles Hebdo, é aproveitada pelo Estado francês para promover uma gigantesca manifestação contra os mais miseráveis dos trabalhadores franceses.
Havia radicais muçulmanos a serem mortos antes das aventuras imperialistas francesas? Havia radicais muçulmanos a serem mortos em Paris atéterem trazidoimigrantes para serem explorados em solo francês? Os sub-humanos têm – ou não — o direito de serem elevados a humanos?
Não houvesse o imperialismo francês reduzido à misériasuas colônias e transferido uma parcela de seus trabalhadores para ser explorada na própria França, os chargistas do Charles Hebdoainda estariam vivos. Os reféns do supermercado não teriam sido sequestrados e os três jovens não teriam pego em armas. Os policiais também não teriam perdido suas vidas. Não fosse a França uma nação imperialista, todos estariam vivos. Qual é a causa? Qual o causado?
Os jornalistas do Charles Hebdo mereciam morrer? Claro que não. Mas também não mereciam os reféns, nem os policiais, nem os três jovens que pegaram em armas. O imperialismo francês matou a todos. Defender a morte de uns e condenar as dos outros não passa de hipocrisia: velar as causas, glorificar as consequências. Nesta disputa pela direita, o que decide não é a razão, mas a força! Aquele que ficar vivo por último, “muçulmano” ou parasita, ganhará também o direito (pela força, porque o direito sempre vem pela força) de dizer que “o outro” era aquele contrário à democracia…
As origem e essência do problema não se situam em um confronto civilizatório nem residem no “radicalismo” de alguns jovens muçulmanos. Estes são apenas as consequênciaspela direita do espectro político. Não haverá medida capaz de superar tais consequências se as causas não forem removidas. “Je suis Charles” é apenas expressão desta “unidade nacional” que toma as consequências por causas e que oferece como solução o aumento da repressão e da vigilância sobre os trabalhadores mais pobres.
Além disso, qual a democracia esta “unidade” defende? A verdadeira democracia! Aquela que garante eleições enquanto elas não ameaçam o status quo, aquela que promove Guantánamo e os centros de tortura secretos – aquela que impõe pela força do imperialismo, mundo afora, o que é imprescindível ao capital em sua crise estrutural.Hoje, na França, as restrições à liberdade de imprensa e de manifestações, já antes presentes, estão ainda maiores. Jornalistas e chargistas estão sendo processados por suas posições políticas à esquerda, um cidadão francês protestou em voz alta em frente a uma delegacia e pegou quatro meses de prisão, o “incitamento ao terrorismo” e interpretado pelo Estado francês de modo tão amplo que a fronteira entre a democracia e a ditadura vai se tornando cada vez mais tênue. Este é o conteúdo da “unidade” ao redor do Estado francês: fortalecer a repressão e legitimar a perseguição aos cidadãos franceses contrários ao status quo.
É por esta legitimidade que promovem o movimento “Eu sou Charles”. É por essa razão que nós não devemos ser Charles.