Jornal 71: Eleições: repensando caminhos
2 de setembro de 2014
De tantos em tantos anos somos convocados para participar de um processo de escolha de representantes políticos. E, diante de tanta corrupção, de tantos desmandos dos políticos, de tanto descaso para com a coisa pública, de tanto cinismo, muitos se perguntam: vale a pena continuar votando? Vale a pena renovar sempre o crédito quando se constata que nada muda? Promessas sempre renovadas, em tempo de eleição, e sempre descumpridas depois de encerrado o processo. Haveria alguma alternativa?
Para quem entende que esta forma de sociabilidade – capitalista, necessariamente desigualitária, – é a melhor forma possível não resta nenhuma dúvida, trata-se de aperfeiçoá-la e, para isso, o processo democrático de escolha de representantes e de exercício do poder político é um dos elementos fundamentais. Não importa quantos e quão profundos defeitos tenha, é a melhor alternativa.
Para aqueles, porém, que admitem a possibilidade de construir um mundo livre das desigualdades sociais e que, portanto, não se iludem com a possibilidade de aperfeiçoar gradativamente esta forma de sociedade, participar ou não do processo eleitoral não é uma questão de princípio, pois não é a única alternativa. O importante é analisar a situação concreta e verificar se a participação pode ser um instrumento nessa luta pela transformação radical do mundo.
A situação concreta
1) Um pouco de história geral
Como resultado da trajetória histórica dos últimos cento e cinquenta anos, a luta pela transformação radical do mundo encontra-se, hoje, em uma situação extremamente difícil. Ao longo destes anos, muitas foram as batalhas travadas entre o capital e o trabalho. Infelizmente, não obstante vitórias pontuais do trabalho, o que predominou foram as vitórias do capital.
Porém, algo mais grave aconteceu. Ao longo dessa trajetória, a perspectiva do trabalho, que é a de superar inteiramente o capital, foi perdendo, cada vez mais, a sua especificidade, o seu caráter radicalmente revolucionário e se tornando sempre mais reformista.
Para os revolucionários socialistas, Marx à frente, era claro que a tarefa de mudar o mundo repousava sobre os ombros da classe trabalhadora1. Essa deveria organizar-se de maneira independente do Estado, lançar-se à luta e nesse processo ir criando uma consciência cada vez mais clara dos seus objetivos. Para eles, estava muito claro que a transformação do mundo seria obra da classe trabalhadora organizada e consciente e jamais do Estado. Portanto, que o eixo da luta revolucionária nunca poderia ser nem o parlamento, nem o Estado. O objetivo não poderia ser a tomada do Estado, para, por meio dele, conduzir a mudança do mundo. A luta pelo poder político seria apenas um primeiro momento, de fundamental importância, mas secundário, que criaria as condições para que a “alma social”, ou seja, as mudanças concretas nas relações de trabalho – a instauração de uma forma de trabalho comandada de modo consciente, livre e coletivo e universal pelos próprios trabalhadores – pudesse se manifestar plenamente2. Isto está claramente afirmado, por Marx, tanto nas Glosas críticas ao artigo O Rei da Prússia e a Reforma Social. De um prussiano, como em A guerra civil na França.
Os revolucionários socialistas sabiam que o Estado sempre seria, em essência, um instrumento das classes dominantes e que, portanto, jamais poderia ser simplesmente conquistado, reformadoe posto a serviço dos trabalhadores. Sabiam que, por mais desenvolvido que fosse o sistema democrático, ele só poderia admitir a participação dos trabalhadores na medida em que aceitassem os limites impostos pela propriedade privada. Sabiam, também, que o Estado não é composto apenas pelo legislativo e pelo executivo, mas também pelo sistema judiciário, administrativo e repressivo. Que, portanto, mesmo se houvesse a possibilidade de ocupar o executivo e ter maioria no legislativo, ainda assim, os trabalhadores estariam longe de ter efetivamente o poder do Estado em suas mãos. Sabiam, além disso, que o sistema político-eleitoral é a melhor forma de iludir e desmobilizar a população, pois a leva a acreditar que o poder está em suas mãos, quando, de fato, ele jamais escapa do controle das classes dominantes3.
No entanto, embora não tendo ilusões quanto ao sistema democrático burguês, os revolucionários socialistas tinham claro que a democracia burguesa é o melhor espaço para levar a luta do trabalho contra o capital até o seu fim. Por isso mesmo, para eles, a democracia jamais poderia ser suprimida pela força ou por decreto. A democracia só poderia extinguir-se quando entrasse em cena uma forma superior de liberdade, a liberdade do socialismo4. E esta seria, necessariamente, fundada no trabalho associado5. Assim como o trabalho assalariado é o fundamento do modo de produção capitalista, o trabalho associado é o fundamento da livre associação dos trabalhadores associados, outro nome para o modo de produção comunista.
No entanto, por um processo extremamente complexo e tortuoso, e tanto pela via reformista da social-democracia alemã, como pela via revolucionária soviética e depois pela chamada “via democrática”, o eixo da luta foi sendo deslocado da organização autônoma e independente da classe trabalhadora para o interior do Estado e do parlamento. Infelizmente, esse deslocamento continua, e de modo cada vez mais intenso, até os dias atuais. Os reformistas acreditavam que os trabalhadores poderiam, através da ampliação da sua participação no parlamento, aumentar cada vez mais o seu peso e assim tomar o poder do Estado para, por intermédio dele, realizar as transformações rumo ao socialismo. Os revolucionários, por sua vez, inicialmente na Rússia e depois em todos os outros países, se viram diante de uma situação na qual faltavam as condições essenciais para caminhar no sentido do socialismo (um alto desenvolvimento das forças produtivas e a universalização da revolução)6. Isto é, faltavam, exatamente, as condições para instaurar o trabalho associado, a “livre associação dos trabalhadores livres”, que, por sua natureza, deve ser universal. Por isso, entenderam que deveriam utilizar-se do Estado como esse instrumento capaz de dirigir a criação daquelas condições. Os reformistas da “via democrática” (eurocomunistas e socialistas democráticos, seguidos pela maioria da esquerda dos países capitalistas), por seu lado, acreditavam que o caminho da transformação do mundo passava pela ampliação da influência da esquerda na chamada sociedade civil7 e, depois, no próprio Estado. A ampliação gradual e constante da democracia e da cidadania seria o caminho que levaria ao socialismo, sempre respeitando as regras do “jogo democrático”.
Por todos esses caminhos, o campo de luta foi sendo deslocado, teórica e praticamente, do terreno da “fábrica”, isto é, do lugar onde se produz a riqueza material e por isso, onde se dá o embate fundamental entre o capital e o trabalho e a partir do qual se deve dar a organização e tomada de consciência da classe trabalhadora, para o terreno do Estado. E, mesmo quando as lutas extraparlamentares eram incentivadas, sempre se deixava claro que elas deveriam desaguar no Estado. O resultado disso é que a classe trabalhadora e, com o tempo, também a maior parte dos revolucionários, foram levados a acreditar que poderiam intervir decisivamente na transformação do mundo apenas depositando o seu voto nas urnas, assumindo, através de representantes, postos no aparelho estatal ou pressionando o Estado através de lutas parciais. Além disto, também foram levados a acreditar que a falta de atendimento às suas reivindicações estaria ora na corrupção, na malversação do dinheiro público, na má administração, na traição dos políticos e partidos, na falta de honestidade, na falta de recursos etc., jamais na própria essência das relações materiais da sociedade (as relações de produção capitalistas) e no Estado, como instrumento necessário para a reprodução dessas relações.
Passividade, desmobilização, alienação, acomodação diante da continuidade e até do crescimento das desigualdades sociais, perda completa da perspectiva de uma transformação radical do mundo e perda da consciência de que é ela, a classe trabalhadora que deve assumir o protagonismo dessa transformação, contra o capital e contra o Estado. Essas foram as consequências do deslocamento, realizado pela esquerda, da centralidade do trabalho para a centralidade da política8. Deste modo, os partidos ditos de esquerda passaram a comportar-se como típicos partidos burgueses, fazendo dos trabalhadores meras massas de manobra para a realização dos seus interesses.9
É instrutivo ver a maneira de atuar dos partidos burgueses. Os capitalistas sabem que a sua força não está no parlamento, mas lá onde se concentram a produção e a circulação da riqueza. Contudo, sabem, também, que o Estado é um instrumento indispensável para a manutenção e reprodução dos seus interesses. Utilizam-se, por isso, do processo eleitoral, e aí estão incluídos todos os meios legais e ilegais, para levar os seus representantes a ocuparem o poder do Estado. Mas, o que é importante: eles – os capitalistas – jamais deixam de ter o controle em suas mãos. Não são eles os instrumentos do Estado, o Estado é que é o seu instrumento. Esta é exatamente a forma de agir que convém à reprodução dos interesses das classes dominantes.
Ora, os partidos e outras organizações de esquerda, ao agirem desta mesma forma, desvirtuam completamente as tarefas que são próprias da classe trabalhadora. É uma enorme ilusão, gerada pela centralidade da política, pensar que bastam boas intenções e honestidade para escapar da armadilha do capital.
Ao contrário do capital, o trabalho não tem uma estrutura de comando centralizada. A produção da riqueza (o trabalho) é necessariamente social, ao passo que a apropriação é sempre privada, quer dizer, concentrada em poucas mãos. Por isso mesmo, a libertação da classe trabalhadora não pode ser obra de um pequeno grupo organizado, mesmo sob a forma do Estado. Tem que ser obra do conjunto da classe trabalhadora, consciente e organizada de forma independente e contrária ao Estado e ao capital. Em consequência disto, só faz sentido a classe trabalhadora participar do processo político-eleitoral se ela puder controlar os seus representantes. Mas, ela só poderá controlá-los se estiver consciente dos seus interesses e organizada para defendê-los. Este controle não é, de modo nenhum, uma questão jurídica, mas política. Ele mesmo só teria sentido em um momento em que a luta extraparlamentar, contra o capital e contra o próprio Estado, fosse o eixo da luta, o que caracterizaria, já, um processo revolucionário. Isso implicaria a revocabilidade do mandato e a capacidade das massas de obrigar os eleitos a executar as tarefas que lhes foram designadas. Importante acentuar: não se trata de controle dos representantes por partidos, mas pelas amplas massas conscientes e organizadas. Algo neste sentido foi realizado pela Comuna de Paris e pelos primeiros momentos da Revolução Russa. Se isto não acontecer, os trabalhadores se transformarão, inevitavelmente, em massa de manobra. Após eleger os governantes, eles não terão como exigir de seus representantes o cumprimento do que foi prometido, tornando-se, então, expectadores passivos e desorientados.
Um pouco de história do Brasil
Esta transformação dos trabalhadores em massa de manobra foi o que aconteceu no Brasil ao longo destes últimos vinte e cinco anos. O PT, à frente de alguns partidos que se diziam de esquerda, transformou a chegada ao poder em uma condição essencial para levar adiante o seu projeto. Projeto este que passou de um vago tom socialista inicial para um acento cada vez mais clara e inequivocamente reformista. Em síntese, este projeto tem por objetivo, aproveitando a crise que tem como epicentro os países mais desenvolvidos, tomar o caminho do desenvolvimento com distribuição de renda. Este seria o caminho para alcançar, gradativamente e sem acirrar demasiadamente as contradições sociais, em poucas décadas, o patamar de desenvolvimento em que se encontram os países mais avançados. Para isso, porém, viu-se obrigado a fazer cada vez mais concessões e alianças com forças que seriam, em princípio, inteiramente contrárias à realização de profundas transformações na sociedade brasileira.
Como se pode ver, isto não tem mais nada a ver com a análise marxista da sociedade e, muito menos, com a perspectiva da classe trabalhadora de superar radicalmente o capitalismo. Persegue-se, apenas, o aperfeiçoamento desta ordem social exatamente por supor que o socialismo é um sonho irrealizável.
É uma tremenda ilusão, que será paga com o crescente agravamento dos problemas sociais de toda ordem, pensar que a acumulação gradativa de reformas é o caminho para resolver os problemas da humanidade. É da natureza do capitalismo produzir desigualdade social e tornar cada vez mais bárbara a existência humana. Isto não é um defeito que possa ser sanado. E se, por um breve período, parece que o caminho da reforma é a solução, a médio e longo prazos ficará clara a sua inviabilidade. Mas, então, talvez já seja tarde para a humanidade!
Esse processo de reformização implicou, por sua vez, a burocratização dos partidos, pois a ocupação da máquina do Estado se transformou em meio de reprodução dos interesses dessa vasta camada de parlamentares e burocratas sindicais e intelectuais. Assim, o que era meio – a busca de postos no parlamento e no Estado para, supostamente, defender lá os interesses dos trabalhadores – passa a ser fim, ou seja, a reprodução dos seus próprios interesses. E, de novo, os trabalhadores passam a ser apenas massas de manobra para o momento da eleição e para a manutenção desse projeto. Em troca disto recebem apenas migalhas, pois as políticas econômicas, que são as mais importantes, implementadas por esses partidos, continuam a carrear as riquezas para as mãos dos capitalistas, nacionais e internacionais. Tudo isso, claro, recoberto com o discurso da mudança e da transformação e com a necessária concessão de pequenos benefícios para os trabalhadores.
O sentido do voto nulo
Por todos estes motivos, e considerando a obrigatoriedade do voto, a anulação do voto é, a nosso ver, a melhor opção.
Argumentam, muitos daqueles que defendem o voto positivo, que é da máxima importância votar positivamente, sustentando o atual governo, com seu projeto, pois o contrário seria ceder o lugar às forças mais reacionárias. Outros, contrários tanto aos partidos mais reacionários, como PSDB e DEM, como aos partidos que estão, atualmente, no governo (PT, PMDB, PCdoB, PDT e outros), argumentam que é preciso participar do processo eleitoral, com candidaturas próprias.
Entre estes últimos, temos, basicamente, duas posições. Uma, exemplificada pelo PSOL, pretende, através deste processo, colocar-se como uma real alternativa de poder. Pretende, portanto, tomar o Estado para, por seu intermédio, conduzir as transformações sociais em direção ao socialismo. Outra, esposada pelo PCB, pelo PSTU, pelo PCO e outros, argumenta que é preciso participar para poder fazer a crítica das propostas burguesas e defender a proposta socialista. Argumentam, ainda, estes partidos que, como a maioria da classe trabalhadora ainda acredita na via eleitoral, é preciso participar dela para poder desmistificá-la por dentro. Este seria o caminho para fazer avançar a consciência de classe revolucionária dos trabalhadores.
A crítica à primeira posição, aquela que defende a sustentação do atual governo, é muito simples. Mas, para isso, é preciso partir de um ponto de vista de classe. Se partirmos do ponto de vista dos interesses fundamentais da classe trabalhadora, que implicam a superação radical do capital e do Estado, então veremos que aquele é um projeto tipicamente burguês, cujo objetivo é o aperfeiçoamento do capitalismo o que, mesmo dentro de todas as limitações, só pode ser feito à custa da classe trabalhadora. Vale a pena sublinhar: o capital é incontrolável e, portanto, é ilusão pretender realizar esse controle através do Estado10.
A crítica às outras posições é um tanto mais complexa. No caso do PSOL, a proposta é a mesma do PT: tomar o Estado para, através dele, implementar determinado projeto que conduziria ao socialismo. A diferença, em relação ao PT, é que este projeto estaria mais voltado para a defesa de interesses nacionais em oposição a interesses internacionais. Ora, já dizia Marx, nas Glosas críticas marginais ao artigo O Rei da Prússia e a reforma Social. De um prussiano, que todo partido que luta para ser governo atribui àquele que está no governo a culpa por todos os problemas. Promete, deste modo, saná-los assim que assumir o poder de Estado. Este caminho foi desmentido centenas de vezes, exatamente porque o Estado (moderno), sendo expressão do capital e estando sujeito à sua lógica, não pode, em hipótese alguma, controlá-lo. Não importa quanta boa intenção se tenha. Não é de boa intenção que se trata, mas de quem detém, efetivamente, o poder. Ora, no capitalismo, a verdadeira sede do poder está na “fábrica”, ou seja, lá onde se produz o capital. O poder do Estado é apenas uma mediação para a reprodução dos interesses do capital.
No caso dos outros partidos entendemos que, neste momento, a participação positiva no processo eleitoral só reforça o que já está, em muitos casos, na cabeça das pessoas: a ideia de que este é o meio mais adequado para transformar a sociedade. Se o objetivo dos revolucionários é contribuir para a transformação radical do mundo, então sua prática não pode sinalizar para um caminho que é, necessariamente, reformista.
Mas, para isso, é preciso fazer uma crítica radical não só do capitalismo, mas também do Estado e de todos os caminhos reformistas e enfatizar a necessidade de uma ruptura radical com essa ordem social. E, além disso, deixar bem claro que essa ruptura tem que ser liderada pela classe trabalhadora e que não pode ser, jamais, atribuída nem ao Estado nem a nenhum partido. Para isso, evidentemente, a classe trabalhadora tem que reconstruir sua independência ideológica e política. Este é o cerne da questão.
É preciso lembrar: o que mais importa é o que se faz e não o que se diz. Independente do que se queira e se diga, a participação positiva no processo eleitoral contribuirá para que a classe trabalhadora pense que este é o caminho para mudar o mundo. Os poucos minutos de propaganda eleitoral e alguns comícios não serão mais do que uma gota d´água num oceano de alienação. A situação se agrava ainda mais se considerarmos que o ideário socialista foi profunda e negativamente afetado pelo fracasso de todas as tentativas revolucionárias, fracasso este que pareceu deixar evidente que o único caminho possível é o aperfeiçoamento desta sociedade.
Aproveitar o processo eleitoral para continuar a fazer aquilo que deveria ser a atividade cotidiana: denunciar o capital e o Estado como responsáveis pelos gravíssimos problemas da humanidade, fazer a crítica radical de todas as propostas de manutenção ou de reforma desta sociedade e esclarecer a respeito de uma nova proposta de sociedade, contribuindo, assim, para a independência ideológica, política e organizativa da classe trabalhadora. Este deveria, a nosso ver, ser o tom da participação no processo eleitoral. Daí ser a anulação do voto o melhor caminho.
As formas para essas atividades podem ser as mais variadas: tanto individuais como coletivas. O importante é que contribuam para mudar o foco da luta dos trabalhadores: retirar este foco da órbita do Estado para recolocá-lo no âmbito extra-estatal, mas com um claro sentido anticapitalista e antiestatal e socialista.
Contudo, o voto nulo embute um enorme perigo, porque pode ter dois sentidos. Pode ser simplesmente um voto de protesto. Vale dizer, a manifestação de um descontentamento com a forma da política burguesa e não com o conteúdo desta política. Pode significar a insatisfação com a corrupção, a desonestidade, a roubalheira, as falcatruas, o descaso com o interesse público que tem dominado a cena política. Isso significa, por sua vez, que não se está rejeitando a forma burguesa de fazer política, com todas as suas consequências, mas, apenas, que se gostaria que dar um “recado” para que a vida política fosse reformulada no sentido da honestidade e da preocupação com o interesse público. Quem não lembra do refrão: ética na política!
Esta é, muito provavelmente, a preocupação predominante entre aqueles que se dispõem a anular o seu voto.
Nisso reside um enorme perigo, pois dessa maneira não se faz avançar, de modo nenhum, a consciência revolucionária.
É preciso compreender que o problema não está na honestidade ou na desonestidade dos políticos. A política burguesa implicará sempre, em menor ou maior grau, de forma mais aberta ou mais velada, a corrupção e a predominância do interesse particular sobre o interesse público. Se o poder político, numa sociedade capitalista, é a expressão, ainda que mediada, dos interesses econômicos, que são particulares, isso não poderia ser diferente. Será preciso lembrar os recorrentes escândalos de corrupção que vem à tona em todos os países, inclusive os mais democráticos? Mas, isso é apenas a ponta do iceberg.
A questão, pois, não é de honestidade, mas do que se pretende fazer e do compromisso efetivo, provado na vida diária, com um programa de transformações radicais da sociedade. Há políticos burgueses que são honestos. Nem por isso estão comprometidos com os interesses dos trabalhadores. Para a classe trabalhadora, isso significa que ela precisa estabelecer claramente, através de um processo de lutas, que leva à tomada de consciência e organização, quais as propostas que quer ver realizadas. Propostas que sinalizem claramente na direção de uma confrontação radical com o capital e com o Estado.
Por isso mesmo, a nosso ver, o voto nulo só significará um avanço na medida em que expressar a clara intenção de recolocar a perspectiva do trabalho, e não da política, como norteadora de toda a luta. De recolocar a perspectiva do trabalho em primeiro plano, isto é, de priorizar as lutas extraparlamentares com um acento cada vez mais anticapitalista, antiestatal e socialista. Além disso, implica a tomada de consciência e organização independente da classe trabalhadora, a conscientização de que é ela o sujeito fundamental das transformações sociais, de que não é através do processo político-eleitoral que se realizarão as transformações que lhe interessam.
Voltamos a enfatizar: não se trata de rejeitar, para sempre e por princípio, a participação no processo eleitoral. Mas, de ter claro que esta participação só atende os interesses da classe trabalhadora, quando esta, através do processo de lutas, estiver consciente e organizada para fazer valer os seus interesses.
Por isso mesmo, na medida em que essa consciência e essa organização estão, hoje, muitíssimo debilitadas, o principal investimento do trabalho político deveria estar voltado na direção da mudança do eixo da luta da classe trabalhadora com o objetivo de escapar do círculo de ferro, imposto pelo capital e aceito pela esquerda, que limita a luta ao interior do processo político-eleitoral e do “jogo” institucionalizado. O objetivo principal deveria ser levar os trabalhadores a reassumir o protagonismo das transformações sociais que apontem, em última instância, para a total superação do capital e do Estado e para a construção de uma sociedade socialista.
O objetivo é claro, mas não há receitas para alcançá-lo. Penso que será ao longo deste processo que se construirão os instrumentos organizativos sem os quais nenhuma revolução é possível.
Referências bibliográficas
CLAUDÍN, F. A crise do movimento comunista. São Paulo, Expressão popular, 2013.
LENIN, V. I. O Estado e a revolução. São Paulo, Hucitec, 1978.
LESSA, S. e TONET, I. Proletariado e sujeito revolucionário. São Paulo, Instituto Lukács, 2012.
MARX, K. Glosas críticas ao artigo O Rei da Prússia e a Reforma Social. Por um prussiano. São Paulo, Expressão Popular, 2010.
_____, A guerra civil na França. São Paulo, Boitempo, 2011.
MARX, K. e ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo. Expressão Popular, 2009.
MÉSZÁROS, I. Para além do capital. São Paulo, Boitempo, 2002.
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TONET, I. Trabalho associado e revolução proletária. In: Novos Temas. V. 05/06, 2012.
_____, Trabalho associado e extinção do Estado. In: www.ivotonet.xpg.com.br
_____, Sobre o socialismo. São Paulo, Instituto Lukács, 2012.
TONET, I. e NASCIMENTO, A. Descaminhos da esquerda: da centralidade do trabalho à centralidade da política. São Paulo, Alfa/Ômega, 2009.
Maceió, maio de 2014
* Professor de Filosofia da Universidade Federal de Alagoas
* Vários companheiros/as contribuíram com valiosas observações para a elaboração deste texto. A todos eles, meus agradecimentos.
1 O conceito de classe trabalhadora é polêmico. Para compreender o sentido aqui utilizado, sugiro a leitura do livro Proletariado e sujeito revolucionário, de Sérgio Lessa e Ivo Tonet.
2 A esse respeito sugere-se ler, além dos textos abaixo citados, de Marx, também, de minha autoria: Trabalho associado e revolução proletária e Trabalho associado e extinção do Estado.
3 A esse respeito, vale a pena ler, de K. Marx, Glosas críticas ao artigo O Rei da Prússia e a Reforma Social. De um prussiano. Também, de V.I. Lenin, O Estado e a revolução.
4 Considerando as enormes deformações sofridas, tanto teórica como praticamente, pelo ideário socialista, sugere-se a leitura de Sobre o socialismo, de minha autoria.
5 Para evitar mal-entendidos, é importante precisar esta categoria. Trabalho associado não é trabalho cooperativo, trabalho voluntário ou economia solidária. Trabalho associado é uma forma de trabalho livre, consciente, coletivo e universal. Implica, portanto, o domínio, mais pleno possível, dos produtores sobre o processo de produção da riqueza material.
6 Sobre isso, ler, de K. Marx e F. Engels, A ideologia alemã.
7 Vale observar que, aqui, sociedade civil tem um significado inteiramente diferente daquele utilizado por Marx e Engels. Para eles, significava as relações que os homens estabelecem entre si na produção econômica. Aqui, significa uma contraposição entre os indivíduos, que se organizam das mais diversas maneiras, e o Estado.
8 Vale enfatizar: por centralidade da política entendemos a atribuição ao Estado, núcleo central da atividade política na sociedade de classes, da tarefa de conduzir o processo de transformação do mundo. Isso nada tem a ver com a desqualificação da política nem com a diminuição da importância da luta política para o processo revolucionário.
9 Sobre esse deslocamento da centralidade do trabalho para a centralidade da política, sugerimos a leitura dos livros: Descaminhos da esquerda: da centralidade do trabalho à centralidade da política, de I. Tonet e A. Nascimento; A crise do movimento comunista, de F. Claudín e Para além do capital, de I. Mészáros.
10 A esse respeito, sugere-se lerO sentido do voto nulo, de I. Mészáros, Para além do capital e A necessidade do controle social.