Jornal 58: Maio/Junho de 2013
18 de maio de 2013
Versão em PDF do Jornal:
Versão em PDF do Encarte Alagoas:
Versão em PDF do Encarte teórico “A crítica radical da religião é a crítica do ateísmo” :
Ou leia as matérias online:
- Unificar as lutas contra os patrões e os Governos
- Redução da Maioridade Penal: a sociedade burguesa responsabiliza a juventude
- Direitos humanos: Marco Feliciano e a Homofobia
- Professores de São Paulo: uma greve qualitativamente distinta
- Com juventude que revoluciona, o capitalismo não funciona
- Debate: por que o Chavismo não é nem reformista?
- Eleições na Venezuela: com polarização, burguesia prepara o golpe
Encarte Alagoas:
- Capitalismo e violência
- A crise ambiental é, na verdade, uma crise do capital
- Para quê serve o discurso do envelhecimento da população?
Encarte teórico:
Por um dia nacional de paralisações: unificar as lutas contra os patrões e os governos
Já vimos em outras edições que a economia brasileira só vem se mantendo devido aos gigantescos aportes financeiros do Estado, do aumento da exploração do trabalho e do aumento do endividamento geral, tudo isso como forma de manter a alta lucratividade do capital e o funcionamento do mercado.
Essa política permanente de oxigenar o lucro do empresariado à custa dos trabalhadores envolve tanto as várias esferas do Estado (União, Estados e Municípios) quanto aos vários partidos (bloco PT/PMDB/PSB, etc.) e bloco (PSDB, BEM, PPS, etc.).
Uma das formas mais clássicas da burguesia aumentar sua exploração sobre o conjunto do proletariado é a inflação dos bens de primeira necessidade. O efeito é o mesmo de uma redução salarial imediata de 10% ou mais, diminuído violentamente a massa de valor que fica em poder dos trabalhadores. Os governos toleram o aumento dos preços dos alimentos, mas endurecem contra as lutas por reajuste salarial, afirmando que isso gera inflação!
Outro mecanismo é pagamento dos juros e amortizações da (mal) chamada Dívida Pública, que irá consumir 42%, quase metade do orçamento federal de 2013. Dos R$ 2,14 trilhões do orçamento, 900 bilhões (!) serão para o “pagamento de juros e amortizações da dívida pública. Enquanto isso, está previsto R$ 71,7 bilhões para Educação, R$ 87,7 bilhões para a Saúde, ou 5 bilhões para a reforma agrária”, informa Maria Lucia Fattorelli, coordenadora da Auditoria Cidadã.
A burguesia ainda é favorecida com a isenção de impostos, construção de obras e empréstimos a serviço dos empresários pelo BNDES, formas de direcionamento de montanhas de dinheiro público para o empresariado.
A privataria petista
A 1ª etapa de grandes privatizações foi impulsionada por FHC (PSDB) seguindo o receituário neoliberal dos anos 90. Naquele momento foram privatizadas empresas fundamentais para a soberania e desenvolvimento do país como todo o ramo de minérios, (incluindo a privatização da Vale do Rio Doce), das telecomunicações, dos bancos estaduais, de empresas de eletricidade, de transporte, rodovias e portos. Foram trilhões de reais em riqueza para o capital privado em operações fraudulentas.
Agora entramos em uma etapa de entrega de bens públicos para o controle e benefício da iniciativa privada. Rodovias, aeroportos, ferrovias e os portos com a Medida Provisória 595. Um plano de investimento de bilhões (só no setor de ferrovias serão R$ 133 bilhões em 25 anos) de dinheiro público para o setor privado ficar com o lucro.
Mas, o governo e o PT insistem em dizer que isso não é privatização, mas sim concessões, nome pomposo para o mesmo resultado: entrega de bens e serviços públicos para o capital privado. Para se ter uma ideia o tempo de concessão dos aeroportos é de até 30 anos e pela MP dos portos (595) a concessão será de 50 anos. Haja privatização!
A essas “concessões” acrescentam-se ainda as reestruturações que bancos públicos, como a Caixa e o Banco do Brasil, estão realizando com o objetivo de reduzir custos para intervir ainda mais na lógica do mercado. Há muito esses bancos perderam o pouco caráter público que tinham.
Todos se lembram das eleições de 2010, quando Dilma e o PT acusavam o PSDB de privatização e se apresentavam como defensor do público. Esse é só mais um passo à direita do PT e do modelo neoliberal que aplicam desde o primeiro dia de governo.
São privatizações que atacam o poder aquisitivo dos trabalhadores. Viajar ou ir trabalhar fica mais caro. Os alimentos, pelo aumento de custo nas rodovias, também ficam mais caro.
Gestão do público sob a lógica privada
A privatização não se dá apenas pela venda direta de empresas ou concessão de serviços. A introdução da lógica privada nas esferas públicas tem sido uma constante, com a criação de regimes de contratação precários e formas de avaliação individualizadas, visando cobrar e culpabilizar individualmente os funcionários públicos, ameaçando até com a perda da estabilidade e possível demissão. O objetivo claro é de dificultar as reações ao aumento da intensidade do trabalho, ao mesmo tempo em que se congelam os salários e se cortam direitos.
Em nível de gerenciamento uma coisa que chama à atenção são os cursos e treinamentos nos órgãos públicos realizados pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), a porta-voz de modelos privados de gestão nos órgãos públicos. Nesses cursos são tratados de temas como de gestão de tempo, sistemas de avaliação em base a metas (independente da qualidade) no serviço público, gestão de pessoal, gestão operacional. Todos, em nome de melhorar o serviço público, introduzindo critérios e conceitos de gerência privada no serviço público.
Esferas e empresas estatais também passam a ter como referência o mercado capitalista, como a Petrobrás (que vem aumentando o preço dos combustíveis para que se iguale ao do mercado mundial) ou o Banco do Brasil (que tem reduzido os pisos salariais e colocado seus trabalhadores para fazerem papel de vendedor de produtos financeiros). Todas são formas de privatização, ainda que indiretamente, dos serviços e do funcionamento da estrutura pública.
Governo e PT mais e mais à direita
A diferença das privatizações do governo do PT com as do PSDB é apenas pela exigência de um nível de regulação do Estado um pouco maior, para que o poder e os privilégios da burocracia (como os cargos nos conselhos gestores das empresas) estejam minimamente preservados, ao mesmo tempo em que as formas e os ritmos de implementação do projeto sejam mediados e realizados de modo a provocar menos reação popular e dos trabalhadores.
Todas essas medidas vão ao sentido de propiciar ao capital condições mais vantajosas de lucratividade. As contradições na economia (endividamento das famílias, desindustrialização, balança comercial negativa, inflação, crescimento menor do que o esperado, etc.) são cada vez maiores e têm feito com que cada medida adotada para superar as contradições logo se esgote, obrigando o governo a tomar novas e novas medidas.
O acirramento da crise e de seus impactos no Brasil, ao mesmo tempo em que demonstram os limites das medidas do governo Dilma, aumentam a pressão para que o governo entregue de forma muito mais direta o dinheiro público (dos trabalhadores) na mão do capital. Dilma o faz sistematicamente e vai se assemelhando, cada vez mais, ao governo do PSDB, revelando mais claramente o caráter de classe de seu governo burguês e neoliberal, inimigo dos trabalhadores.
Na esfera política – depois do PMDB, de Maluf, dos ruralistas, dos evangélicos – agora é a vez do reacionário Affif Domingos (PSD) ocupar um ministério de Dilma. Antecipando a campanha do ano que vem, essa indicação já mostra a composição da chapa do PT. A direita fica até com inveja.
Por um dia nacional de mobilizações!
Refletindo uma nova situação na luta de classes do país, vem ocorrendo lutas importantes como as da construção civil em Belo Monte, trabalhadores das empreiteiras do polo petroquímico de Cubatão, as greves dos professores da rede estadual e municipal de São Paulo e a marcha a Brasília. No caso das greves de professores enfrentam o mesmo projeto de precarização e privatização do ensino, aplicado tanto pelo PSDB (Alckmin) como pelo PT (Haddad).
São lutas importantes porque além de lutar contra os baixos salários também enfrentam o aumento dos ritmos de trabalho e formas precárias de contratação. A inflação e o aumento do preço dos alimentos colocam a necessidade de apontar o caminho da construção de um dia nacional de lutas com atos e passeatas conjuntos, unindo os diversos movimentos sociais como os da luta pela reforma agrária, o movimento popular, o sindical, o estudantil. Um dia em que unificaríamos todas as reivindicações. Unir forças para enfrentar o governo e os patrões.
Também estão se aproximando as campanhas salariais do segundo semestre, como de correios, bancários, petroleiros e outras categorias importantes e que se vitoriosas podem mudar a correlação de forças em nível nacional.
A Marcha a Brasília foi importante como forma de denúncia e centralização da luta contra o governo Dilma, o ACE e a Reforma da Previdência. Mas agora é preciso que se avance para um dia nacional de paralisações, bloqueios e mobilizações em geral de modo que o movimento comece a tomar contornos de interferência mais direta nas estruturas, pois sabemos que apenas movimentos de superestrutura não afetarão os governos e patronal.
O Bloco Classista, Anticapitalista e de Base na CSP-CONLUTAS
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Após insistência do Bloco Classista, Anticapitalista e de Base (formado por Espaço Socialista, MR e independentes), que atua no interior da CSP- Conlutas, na última reunião da coordenação nacional da Central, foi votada essa necessidade, porém a direção majoritária se recusou a definir uma data.
Os vários movimentos precisam de um referencial unitário e claro de luta e isso exige a marcação desse dia nacional de paralisações e protestos. Os elementos centrais de programa são sem dúvida a reposição de todas as perdas salariais já e aumento real, o não pagamento da “Dívida Pública” e o investimento desse dinheiro nos serviços públicos que atendam aos trabalhadores, contra a privatização (seja por venda, concessões ou PPPs), contra o ACE e a reforma da previdência, reestatização das empresas e que sua gestão esteja sob controle dos trabalhadores.
Assim, mais do que impulsionarmos as lutas e a unificação dos trabalhadores, dos estudantes e movimentos populares, é preciso uma campanha constante junto aos trabalhadores no sentido de uma disputa política e ideológica contra burguesia e as ilusões no governo Dilma.
Cabe aos sindicatos e centrais de luta (CSP-Conlutas e Intersindical) realizarem uma campanha pública de denúncia permanente contra o projeto burguês que está em curso no país. É preciso demonstrar a ligação entre cada um dos problemas enfrentados pelos trabalhadores e o sistema capitalista com seus interesses de lucro e de exploração dos seres humanos e da natureza. Como parte dessa denúncia devemos responsabilizar o governo Dilma e os estaduais, bem como o Congresso, a Justiça e as Forças Armadas de modo a demonstrar a necessidade dos trabalhadores irem às lutas e de apontarem um projeto alternativo (socialista) para o país.
Essas entidades têm arrecadação para realizar campanhas desse tipo com milhões de panfletos nas estações, fábricas e universidades, carros de som nos bairros e centros urbanos, vídeos pela internet, etc.
É preciso superar essa limitação do comodismo do possível. O possível também é (pelo menos em parte) resultado de um trabalho prático e de consciência. É uma construção, não está imediatamente dado na realidade, depende da ação humana. Essa negativa em ir além da acomodação e a dificuldade em ter uma política independente das direções burocráticas e governistas têm feito com que a CSP-Conlutas e a Intersindical percam a oportunidade de se transformarem nas grandes referências de luta que os trabalhadores necessitam e isso por responsabilidade de suas direções majoritárias (PSTU e PSOL).
Isso coloca cada vez mais a importância da construção e expansão do Bloco Classista, anticapitalista e de base como forma de apontarmos um novo rumo para a CSP-Conlutas, para que possa ser a grande referência, juntamente com outras entidades de luta, para apontar um caminho de transformação socialista dos trabalhadores.
Redução da maioridade penal: a sociedade burguesa responsabiliza a juventude
Marcio e Thais
Nas últimas semanas, tem havido um debate sobre a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos. A justificativa são os homicídios cometidos por crianças e adolescentes. De acordo com o ECA, já podem ficar até 3 anos presos. Mas, a mídia burguesa tem influenciado a opinião dos trabalhadores ao alegar que esse “pouco tempo” gera a certeza de impunidade e é estímulo para o cometimento de mais delitos.
No entanto, segundo a própria Fundação Casa, cerca de 85% dos adolescentes em privação de liberdade cometeram delitos relacionados ao tráfico de drogas e roubo. Apenas 0,6 % são casos de homicídios. Para além dos números, destacamos que o jovem marginalizado não aperta o gatilho sozinho, mas junto a um tipo sociedade. Isso se expressa na prática de abandono e do sucateamento dos serviços públicos, já que os direitos das crianças e dos adolescentes se tornam empecilhos para o capital. É preciso pensar, o que explica um adolescente ter ficha corrida de crimes mesmo antes da “maioridade”?
Juventude sem ensino e sem escola
Segundo o PNAD e o IBGE (2009-2011), o índice de jovens entre 15 e 17 anos analfabetos é de 20%, isto é, estão saindo da escola sem saber interpretar o que leem e elaborar um texto. E a quantidade de jovens entre 15 e 17 anos fora da escola, sem acesso ao ensino público de péssima qualidade, é de 12,3%.
Juventude sem emprego e/ou com emprego precarizado
O perfil do aluno de escola pública nos termos colocados acima é, de acordo com o Instituto de Analfabetismo Funcional (INAF) …“A baixa renda é outro fator relacionado ao grupo de analfabetos funcionais do País. Daqueles que têm renda familiar de até um salário mínimo 38% são considerados analfabetos funcionais, (…)” – Isto é quase a metade de filhos e filhas de trabalhadores!
Estudantes com esse nível de ensino são absorvidos pelo mercado de trabalho em funções de baixos salários e direitos. Dados do Governo Federal (juventude.gov.br/conjuve) … “dos jovens de 16 a 24 anos que trabalhavam em 2011, 43% tinham rendimento inferior a um salário mínimo, sendo que somente 13% percebiam renda superior a dois salários”. Além disso, o número de jovens sem emprego é de 12,8%.
Falta de ensino de qualidade, falta de emprego e falta de salário marginalizam a juventude
Observemos os números do Conselho de Direitos Humanos da ONU sobre o sistema prisional brasileiro em 2012: “(…) a população carcerária brasileira tem perfil preponderantemente jovem, masculino, negro e de baixa escolaridade. Em 2011, 53,6% da população no sistema penitenciário tinha entre 18 e 29 anos de idade, 93,6% eram homens, 57,6% eram negros e pardos e 34,8% eram brancos. Além disso, 45,7% da população do sistema penitenciário possuía ensino fundamental incompleto, enquanto apenas 0,4% possuía ensino superior completo.”
Vejamos, agora, o perfil do adolescente “em conflito com a Lei”, de acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 2012: Em relação à estrutura familiar, o CNJ constatou que 14% dos jovens infratores possuem pelo menos um filho, apesar da pouca idade, e apenas 38% deles foram criados pela mãe e o pai. Além disso, 7 em cada 10 adolescentes ouvidos pela Justiça se declararam usuários de drogas, sendo este percentual mais expressivo na Região Centro-Oeste (80,3%).”
Por outro lado, diz a Constituição no… “Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. Na mesma linha vai o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Mas na prática, a juventude das periferias das cidades brasileiras sofre com o abandono do Estado em todos os aspectos e a consequente falta de alternativas. Para os mais sortudos há o emprego precarizado, aos menos resta o desemprego e as filas dos parcos programas socioassistenciais, aos menos ainda, resta a situação de rua, uma vida exposta à indústria das drogas e sua gama de violência, na vida do “se vira” o que resta… é a ilegalidade.
Nesse modelo de sociedade onde não há espaço para todos, a ideologia dominante tem a necessidade de reforçar alguns preceitos. O que vemos é geração após geração crianças aprendendo a “lei do mais forte”, a máxima que sempre diz “o mundo é dos espertos”, o culto à mercadoria e ao individualismo.
Mesmo assim, o discurso crescente é o de culpabilizar os pais pelos atos infracionais das crianças, pais estes que foram e ainda são crianças também sem garantias. O mesmo estado que nos desumaniza, quer cobrar humanidade de nossas crianças.
A solução proposta pela direita é sempre resolver tudo da forma mais econômica para os cofres do Estado e que mais favoreça o fortalecimento de sua ideologia de controle das massas. A proposta de redução da maioridade penal para 16 anos está longe de querer resolver o problema da criminalidade juvenil.
Além da superlotação das penitenciárias, a consequência será o encarceramento de seres humanos em pleno desenvolvimento e o aprofundamento da destruição de suas vidas. E não tratamos aqui dos filhos da classe média e alta, mas sim daqueles que nunca tiveram a chance de não serem marginais. A redução da maioridade penal de 18 para 16 anos desconsidera não só as especificidades de um indivíduo em desenvolvimento e que deveria ser cuidado, mas também as causas que levam uma criança a cometer um ato infracional, propondo uma solução imediata e supostamente milagrosa para um problema que nada mais é que a expressão mais latente do que o capitalismo reserva para o setor mais miserável da classe trabalhadora: miséria e criminalização.
O capital como força motriz da ceifação da juventude
A sociedade burguesa não pode garantir as condições para o desenvolvimento de uma juventude educada, sadia e com perspectivas, pois, para isso, teria que questionar o próprio capital. Prova disso é o gasto com pagamento de juros da dívida e o quanto gasta com programas sociais voltados para a juventude, como Saúde e Educação, conforme Orçamento de 2012: Juros da dívida pública – 47,19%; Saúde – 3,98%; Educação – 3,18%; Cultura – 0,09%; Desporto e Lazer – 0,12%; Transporte – 1,21%; Assistência Social – 2,55%; Habitação – 0,05%.
As necessidades humanas precisam estar em primeiro lugar
Se a juventude está sendo condenada a marginalização para que a lógica do capital se imponha, é necessário subverter essa lógica e colocar as necessidades humanas em primeiro lugar. A sociedade tal como está hoje só aprofundará mais a marginalização da juventude e a proposta de redução da maioridade penal é uma prova disso.
A sociedade capitalista é assim para garantir que meia dúzia de patrões receba recursos públicos por meio de pagamento de juros da dívida pública (sem considerarmos os recursos do FGTS, FAT, desonerações de folha de pagamento, isenções fiscais, etc.). Ou seja, a sociedade capitalista não resolve os problemas da “sociedade”, mas busca resolver os problemas dos capitalistas.
A solução é que o setor da sociedade que produz a riqueza tome o controle político do Estado e de forma coletiva e organizada coloque-a a serviço da Educação, Saúde e a moradia para os trabalhadores! Não ao encarceramento de crianças e adolescentes!
Marco Feliciano e a Homofobia
Pedro Guerra
Um novo desafio se apresenta às organizações de esquerda. Com a ascensão de Marco Feliciano – pastor-deputado notoriamente conhecido pela sua homofobia e declarações racistas – à presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, o credo religioso pode assumir ares institucionais, gerando políticas públicas. Conhecido pelas suas declarações discriminatórias pelas redes sociais, Marco Feliciano representa o que há de muito assustador: o fundamentalismo religioso. Suas ideias são fundadas na mais estrita passionalidade, na manipulação de fatos históricos, na confusão conceitual e numa teologia deformada. O que mais assusta nele é o fato de que, abertamente e sem receios, promove discriminação e preconceito contra homossexuais e negros. Uma pessoa preconceituosa minimamente cautelosa preserva-se, evitando emitir suas opiniões. Mas não é o caso do Marco Feliciano: a quem quiser ouvir, o pastor-deputado, ao invés de pregar o amor incondicional, a compaixão e a tolerância, incita seus seguidores a condenarem moralmente conduta alheia. O seu exemplo pode, desgraçadamente, ser adotado pelas pessoas comuns que nele se espelham. É um precedente perigoso a ser combatido.
Outro grande risco decorre da possibilidade de a discriminação e o preconceito se tornarem políticas de governo. A bancada evangélica do Congresso Nacional é representativa, sim, de uma significativa parte da população brasileira. Em que pese as campanhas pelas redes sociais – “Marco Feliciano não me representa!” –, infelizmente, há um público considerável bastante simpático às ideias discriminatórias, pois a quantidade de evangélicos é imensa no Brasil: acredita-se que em torno de 42 milhões de brasileiros, ou aproximadamente 20% da população, sejam evangélicos. Mas qual o peso disso? Todos os evangélicos brasileiros são extensões ideológicas de Marco Feliciano? Claro que não. São muitas as variações e nem todas professam preconceitos. Todavia, por questões teológicas e bíblicas, a homossexualidade é considerada um pecado, cabendo a condenação do ato, ainda que deva haver amor pela figura do pecador. O grande mal desse tipo de concepção é que se reforçam opressões sofridas no Brasil. Estatisticamente, homossexuais são grandes vítimas de diferentes tipos de violência e discriminação, e uma certa forma de fé que ampare isso “descriminaliza” a conduta dos homofóbicos. Especificamente quanto à figura do Marco Feliciano, o mais preocupante é o fato de que o mesmo exerce cargo público de grande notoriedade. Como deputado federal, sua palavra vai tão longe quanto a sua palavra como pastor, todavia, com um agravante: Feliciano pode tornar seus preconceitos em políticas públicas. A “cura gay” já foi proposta na Comissão de Direitos Humanos. Tumultuadas, as sessões não têm dado conta de discutir a questão, mas cedo ou tarde a pauta será debatida. Se aprovada – haja vista a predominância de religiosos na referida Comissão –, haverá a possibilidade de psicólogos oferecerem a “cura” para os homossexuais. O que seria uma manifestação sexual espontânea de cada um, será encarada como doença a ser enfrentada. É mais opressão sendo assumida pelo Estado!
Cabe aos trabalhadores e trabalhadoras refletirem profundamente sobre o sentido da homofobia. Opressão sexual, sim, mas não apenas. Como toda forma de controle social, a “cura gay” e outras medidas propostas pelo infeliz Feliciano, e que possam ser adotadas, recairão em peso sobre as classes trabalhadoras. Além de todas as demais formas de dominação, agora a classe trabalhadora terá que vigiar sua predileção sexual, reprimindo seus filhos e próximos. O capitalismo mostra bem sua face malévola: só mesmo num sistema social explorador para que novas formas de opressão contra as classes trabalhadoras surjam aos montes. Marco Feliciano evidencia bem a natureza ideológica do capitalismo, na qual a única liberdade verdadeiramente respeitada é a liberdade econômica. Outras formas de liberdade, como a liberdade de opinião, de expressão e sexual (bem específica da presente análise) são meramente formais, ou seja, exercidas de forma precária e enquanto não atingirem interesses capitalistas.
Marco Feliciano é a voz de um projeto político neofascista: para ele, a verdade é obtida não pela mediação do debate, da luta das ideias, sempre posturas ativas, que exigem dos seres humanos esforço intelectual. A triste verdade de Feliciano cavalga com as rédeas da ortodoxia religiosa, pouco reflexiva e sempre passiva. Suas verdades nada exigem das pessoas além da admissão passiva a certas ideias convenientemente elaboradas por profetas distantes da realidade popular. A orientação sexual, assunto de grande intimidade, passa a ser uma pauta pública com o propósito imediato de controle social, sempre bastante incisivo sobre os pobres e os trabalhadores em geral.
Tais ideologias religiosas de cunho bastante conservador reproduzem-se com grande facilidade, pois tais igrejas cumprem um papel ideológico ao qual as esquerdas de maneira geral não têm dado conta suficientemente. Tal papel pode ser genericamente denominado “utopia”, ou seja, a convicção – no caso, a crença – de uma vida melhor desde que algumas tarefas específicas sejam cumpridas. No que se refere às igrejas, de maneira geral, trata-se da submissão a uma série de deveres financeiros, com pagamentos de dízimos e outras doações, bem como a adesão a uma série de costumes e a uma certa moralidade. Em troca, o fiel recebe conforto espiritual, a “graça almejada”, normalmente a atenuação das dificuldades financeiras ou outras dores. No caso das dificuldades financeiras, quanto maior o enriquecimento, maior a salvação. Assim, existe uma espécie de contrato – uma relação de troca – entre Deus e os homens: a arregimentação de fiéis, a intolerância com os descrentes e as doações farão com que, divinamente, se aumente a riqueza material do religioso. Para seus ideólogos, as dores pessoais, como tristezas, doenças e, especialmente, as dificuldades econômicas são sinais da perdição que só serão resolvidos se o fiel se submeter às regras mencionadas. De que forma tal ideologia se aproxima das ideologias do capitalismo? Na sociabilidade burguesa, há uma troca entre os proprietários dos meios de produção e as classes trabalhadoras. Estes últimos entregam sua energia física, seu trabalho e o seu tempo para os primeiros, que em troca entregam uma pequena fração da riqueza socialmente produzida (o salário). Desprovidos dos meios de produção, os trabalhadores são coagidos a aderir a relações sociais de produção exploratórias, sem possuir, num primeiro momento, condições de reagir contra tal. Eis as semelhanças entre certas formas de fé e o capitalismo.
Quais as tarefas das organizações de esquerda e dos trabalhadores em geral diante de tal quadro? Devem disputar espaço contra as igrejas conservadoras. Combater tais ideologias conservadoras naquilo que possuírem de razões estruturais, naquilo que se mostrarem tão opressivas e reacionárias. Convencer os trabalhadores religiosos de que, sim, podem ter a sua fé, mas que compreendam que a verdadeira causa de suas dores e problemas pessoais não é transcendente, mística ou mágica. Muito pelo contrário: o inferno é bem mundano, terreno e humano, podendo ser identificado pela crítica social e não pela mística religiosa. Compreender a fundo a teologia cristã, aproveitando-se daquilo que lhe é mais nobre, como a solidariedade, a compaixão, a tolerância, o perdão, a alteridade para expor as contradições da mesquinhez ideológica de algumas igrejas evangélicas.
Mais uma greve de Professores? Uma greve qualitativamente distinta!
Bruno Monteforte – Núcleo de Professores
Com juventude que revoluciona o capitalismo não funciona
Iraci Lacerda e Larissa Evellyn
“Nós temos que lutar / citar nossas condições Nós temos que mudar / rever nossas direções”
(Planta e Raiz)
O que é viver em uma sociedade em que não se valorizam as pessoas como centrais em nossas vidas, mas se valorizam as coisas artificiais e rápidas? Quais as consequências disso nessa fase da vida, entre 15 a 24 anos, que chamam de juventude?
No Brasil (Censo 2010) somos 26,5% da população. A maioria, 62%, está numa tal de classe C e precisamos trabalhar para sobreviver.
Pensando no funcionamento da sociedade capitalista percebemos que não somos os responsáveis por chegarmos nessa fase da vida tratando com artificialidade e ligeireza as pessoas.
Considerando o sistema educacional brasileiro percebemos que nas escolas foram criadas algumas formas para que o nosso trajeto seja muito mais rápido. Em São Paulo, já há algum tempo, ninguém mais reprova. Mas, se isso vier a acontecer podemos, no ano seguinte, fazer apenas uma avaliação e tudo se resolve ou uma parcela sai sem saber ler e escrever mesmo. As faculdades à distância ou que oferecem curso superior em dois anos se alastraram para atender essa demanda com a ajuda do governo federal, através do Prouni.
Nesse tipo de Educação não recebemos uma formação que valoriza a totalidade das potencialidades do ser humano, que desenvolva a nossa capacidade criadora, artística, hábitos para a compreensão matemática, biológica e leitora. As matérias estão todas muito bem separadas, o que dificulta muito o estudo para entrarmos em uma universidade pública, que também segue esse caminho.
No mercado de trabalho brasileiro, segundo o IPEA-OIT (mar/13), tem entre 2 a 3 vezes mais desemprego entre os jovens do que entre os adultos. Os “bicos” são mais constantes. Os contratos têm, geralmente, curto tempo de duração e poucos ou nenhum direito trabalhista. E os salários também são mais baixos.
No ambiente de trabalho também não podemos dizer que há valorização do funcionário como pessoa, mesmo sendo jovem. É apenas mais um pronto para ser explorado, assediado e que deverá contar com a dada condição de trabalho sem ao menos reclamar.
Sentimos que tanto o mercado de trabalho quanto o sistema educacional contribuem para que pensemos a vida de forma superficial e com resultado imediato. No trabalho, a rotatividade. Na faculdade, a briga pela permanência.
Quando não, somos obrigados a pensar sobre os índices que encurtam a nossa vida. Segundo o Mapa da Violência (2012) a mortalidade entre os jovens subiu 40%. O assassinato de jovens negros subiu 135%.
Com isso, os nossos sonhos também vão se limitando. Sonhamos em viver, estudar, nos inserir no mercado de trabalho e nos deparamos com toda essa realidade. Teimosos, muitas vezes, seguimos. E aí vem o tédio.
Com esse tipo de sociedade…
Resta-nos casar ou ter filhos. E não é à toa que 23% das mães brasileiras são adolescentes com uma grande parcela dos pais também adolescentes. É a antecipação da fase adulta através da maternidade e da paternidade com todas as consequências disso para nós.
Resta-nos usar drogas, que nos dá prazer superficial e tem efeito imediato, igual ao funcionamento da sociedade capitalista. Mas que nos transforma em “problema social” e que esse tipo de governo criminaliza e interna compulsoriamente.
Resta-nos ir à igreja para acreditar que tudo está ou ficará bem, mesmo com a imensa desigualdade entre ricos e pobres e com a permanência da exploração. Dessa forma, permanecem sossegados os 1426 mais ricos do mundo (Terra 06/05/13) e os representantes das igrejas – como o Papa que vem ao Brasil pregar a paz impossível e o Feliciano que não se contenta apenas com a desigualdade e a exploração, mas procura reforçar também os seus desdobramentos como o preconceito, o racismo e a homofobia.
Resta-nos ir ao shopping. Ostentação exigida pelo ego para camuflarmos a nossa insegurança e que reforça o consumismo e o individualismo necessários ao sistema de exploração.
Pensando tudo isso junto, de forma combinada ou de forma isolada é fácil perceber que nada permite a transformação da sociedade a tal ponto que o ser humano tenha mais importância que a ganância e o lucro.
É, com esse tipo de sociedade em que o poder é do capital, resta-nos a miséria. Miséria que valoriza a violência. Que reforça a cultura da discriminação, da neurose e do individualista. Que cria um padrão para cada estilo. Que nos distancia da produção artística. Que ignora a natureza, o ser humano, a poesia e a arte. Que não concebe a sexualidade livre. E que o amor, em contradição com a sociedade que exige superficialidade e rapidez, integra o tédio, torna a pessoa propriedade privada, se realiza em um único ser e se materializa em costume, comodismo, ou em apenas uma palavra.
E diante dessa realidade “nós temos que lutar” para inverter essa situação de forma radical, intensa e que possibilite um ser humano novo. Ninguém “roubou nossa coragem”!
Com outro tipo de sociedade…
Num outro tipo de sociedade essa realidade estará transformada, mas isso não acontecerá se nós não revermos “as nossas direções” agora.
A humanidade, com suas histórias de transformação da realidade, realizou diversas experiências e conquistas até chegarmos aqui. Mas, a desigualdade (ricos e pobres; uns mandam outros obedecem) e a injustiça (uns têm e outros não) permanecem. E é isso que precisamos destruir.
Destruir para construir outro tipo de sociedade em que o central não seja o lucro e a ganância, mas o ser humano. Que a natureza não seja utilizada para a lucratividade, mas para suprir as necessidades humanas. Que toda riqueza produzida pela humanidade (alimentos, ciência, arte, tecnologia, transporte, formas de moradia, etc.) seja distribuída igualmente entre todos que a produziram. Que quem trabalha decida sobre o quê, quanto, como produzir e distribuir. E que o trabalho não represente destruição e mutilação individual ou coletiva. Que a verdadeira preocupação seja com a existência de relações humanas sadias: com tempo livre saudável; com dedicação responsável ao trabalho, ao conhecimento, à arte, ao lazer e ao sexo. Sem presa, sem medo, sem culpa e com a consciência de que é o melhor para si e para a coletividade.
Nesse outro tipo de sociedade deixaremos de sobreviver e passaremos a viver e a construir a nossa história de liberdade!
A decisão é agora
A história sempre dependeu das importantes decisões para as profundas transformações. E nesses momentos nós sempre estivemos presentes. A frase de Che Guevara “ser jovem e não ser revolucionário é uma contradição genética” é real. A juventude sempre teve coragem e criatividade para lutar.
E na atualidade o Brasil, o Chile, a Grécia, a Espanha têm vários exemplos do envolvimento de jovens na luta contra o aumento das passagens de ônibus, por Educação pública de qualidade, contra o aumento da exploração no trabalho, por emprego e tantas outras coisas.
Mas, ainda não lutamos para transformar de fato essa realidade, pois, muitos de nós ainda não se colocaram em movimento. Sair desse tipo de sociedade, a capitalista, e construir outro tipo de sociedade, a socialista, precisa de decisão hoje!
Assumir a luta no trabalho (através do sindicato), na escola (grêmio), na faculdade (DCE, DA, CA), nos bairros, nos movimentos sociais e organizações políticas é nossa obrigação. Unir todas essas lutas é nossa necessidade. Assumir nas mãos o caminho para transformação dessa realidade é a nossa revolução.
Porque o chavismo não é nem reformista?
Dalmo Duarte
Durante o período governado por Chávez a vida de muitos pobres mudou. Foram criados no período de Chávez 25 programas sociais que vão de distribuição de mantimentos a programas habitacionais. Programas educacionais possibilitaram que milhões de pessoas pudessem ir a escola e a universidade. O financiamento desses projetos ficou por conta das divisas do petróleo que é a principal fonte de riqueza venezuelana (que tem a maior reserva do mundo e as exportações do óleo correspondem a 30% do PIB).
De outro lado um salário mínimo de US$ 325, desemprego oficial próximo de 8% e emprego informal de algo próximo de 50% (notadamente camelôs), estatizações com indenizações ( na prática compra das empresas), uma reforma agrária que não se efetivou por falta de investimento público. O déficit habitacional continua alto e os pobres são, em 2011, 27% da população.
É evidente que o governo Chávez, mesmo com suas “meias medidas”, realizou um governo que atendeu muito mais os pobres, sobretudo os favelados. Como nenhum outro governo tinha algum programa social, Chávez torna-se o “pai dos pobres”. Mas, para um marxista do que se trata o chavismo? O seu projeto estratégico inclui o poder para os trabalhadores? Máduro é um governo que vai enfrentar o capitalismo – por via das reformas ou da revolução?
Muitos ativistas e militantes honestos veem o modelo chavista como uma alternativa e até mesmo como modelo de socialismo. Mesmo reconhecendo que houve avanços sociais, partindo do significado histórico do que é reformismo, não compartilho da caracterização do chavismo como uma corrente socialista ou mesmo de esquerda, pois a sua administração não teve e nem tem a intenção de pular as fronteiras de uma gestão capitalista. Busca, no máximo, uma –irrealizável- gestão humana capitalista. E isso não é reformismo.
E mesmo o seu anti-imperialismo, basicamente restrito ao estadunidense, se resume a denuncia e retórica, mantendo as mesmas relações econômicas de antes. Mesmo nesses aspectos, com o governo Obama o tom diminuiu bastante
O reformismo originalmente é uma corrente do movimento operário e para a qual a chegada ao socialismo ocorreria pelo avanço das lutas salariais e por reformas sociais, que levaria progressivamente ao controle social dos meios de produção. Pelas mudanças na legislação seria imposto restrições ao direito de propriedade dos capitalistas até que estes se tornariam meros administradores.
Pode-se questionar o idealismo desta corrente (a impossibilidade demonstrada historicamente causou inúmeras derrotas a classe trabalhadora), mas é inegável que viam nesta concepção um caminho para o socialismo. Segundo Rosa “Em resumo, os sindicatos, as reformas sociais e, acrescenta Bernstein, a democratização política do Estado, são os meios para realizar progressivamente o socialismo”.
Parte-se dessa breve conceituação para justificar a posição de que o chavismo, por ser uma corrente nacionalista burguesa, nem chega a ser uma corrente reformista. Suas medidas – que só parecem reformistas- representam paliativos, pois a situação do povo continua a mesma. Se comparadas com as de Nasser (Egito), Perón (Argentina) e Cárdenas (México) veremos quanto são limitadas essas medidas.
Sigamos nas comparações para entender os limites do “reformismo chavista”. O governo mexicano do general Lázaro Cárdenas (1934-1940) adotou medidas muito mais radicais, como a expropriação das empresas de trens privados, uma ampla reforma agrária, maior liberdade aos sindicatos, a nacionalização do petróleo e uma legislação com vários direitos sociais. Medidas que enfrentavam interesses tanto dos latifundiários quanto das empresas imperialistas do petróleo.
Em recente entrevista ao jornal francês “Le Monde” Maduro explicita o projeto do seu governo: abrir para investimento (leia-se extração de riqueza) nacional e estrangeiro no setor da indústria petrolífera e no campo (de 33 milhões de hectares de terras agrícolas somente em 3 milhões de hectares são utilizadas para produção agrícola) com as chamadas zonas especiais econômicas, (inspiradas na experiência chinesa) regiões em que o capital tem vantagens como redução e isenção de impostos.
O “reformismo atual” é na verdade um braço forte da burguesia para aplicar os planos do capital. Aplicam melhor porque em geral contam com apoio popular. Uma política reformista –para ser caracterizada enquanto tal- teria que realizar no mínimo as tarefas nacionais, enfrentando os interesses imperialistas e da grande burguesia – industrial e agrária- nacional. E em relação ao Estado deveria haver mudanças profundas em relação a participação popular. E o chavismo não chegou nem perto.
Para os que se contentam com medidas assistencialistas como “o possível de ser feito” é importante lembrar que o controle do Estado sobre as riquezas na Venezuela é muito maior do que em outros países uma vez que ele controla o petróleo. O Estado já tem o controle do capital necessário para fazer as concessões, nem precisa “retirar de uns para dar a outros”. Este contexto torna essas medidas chavistas muito mais tímidas.
O chavismo não vai a frente porque teria que romper com o setor da burguesia que o apóia. Para atender de fato as reivindicações dos trabalhadores e da população pobre, há que romper com a “burguesia bolivariana” e com a imensa burocracia civil e militar que controla o aparato estatal. Máduro não fará isso.
Por fim, mas não menos importante, Chávez sequer realizou as tarefas nacionais, aquelas que garantem de fato a independência nacional em relação ao imperialismo, como a nacionalização da economia. As medidas não colocaram em xeque a propriedade privada e poder político e muito menos as relações econômicas com Estados Unidos.
Se o reformismo de Bernstein visava melhorar a situação da classe trabalhadora e instaurar o socialismo por uma extensão gradual do controle social da economia, a crise estrutural do capital, momento histórico em que o Estado é efetivamente controlado pelo capital impossibilitando assim medidas de democratização política, derruba de vez a “hipótese reformista” de revolução por dentro do aparato burguês. Assim, a adoção de medidas sociais realmente de caráter reformista encontra obstáculo no poder que o capital exerce no Estado, permitindo no máximo políticas sociais paliativas sem questionar a ordem existente.
Cabe a necessária observação que a crítica marxista ao reformismo é que este se limita às reivindicações do programa mínima (por excelência reformista), ao passo que os revolucionários seguem adiante, avançando para o questionamento da propriedade privada e para o controle operário sobre os meios de produção, como dizia Rosa Luxemburgo, “a luta pela reforma social é o meio, a revolução social o fim”.
Mais uma observação: diante dos ataques do imperialismo estamos com os trabalhadores venezuelanos.
Eleições na Venezuela e os reflexos na América Latina
Muitos questionam porque nos preocuparmos com a situação política de outros países se não atuamos lá. Em tempos de mundialização do capital os vários aspectos da política e da economia de um país estão relacionados diretamente com outros.
Crescimento econômico ou recessão nos Estados Unidos influencia a economia de todo o mundo praticamente, principalmente, a dos países da América Latina. Em relação à política, também é assim.
A derrota do nazismo na II Guerra Mundial e a dos Estados Unidos no Vietnam deram forças à luta do proletariado do mundo todo. Assim como o golpe militar no Chile, em 1973, fortaleceu as forças reacionárias no Brasil.
Ademais, o capitalismo é, por essência, um sistema social internacional. As empresas multinacionais, as importações e as exportações decorrem diretamente de decisões políticas. Certos acontecimentos, em maior ou menor grau, extrapolam os limites nacionais.
A burguesia também pensa e age assim. ONU, Banco Mundial, FMI, dentre outros, são organismos da burguesia internacional que, além de terem uma leitura da conjuntura mundial, também atuam de forma coordenada com o governo de cada país para atacar os trabalhadores.
Como trabalhadores e militantes precisamos acompanhar a situação política mundial permanentemente. E esse é o caso da Venezuela. O resultado da disputa entre os chavistas e a direita golpista tem influência direta na situação política brasileira. Caso ocorra um golpe lá fortalecerá os setores mais reacionários aqui e, principalmente, nos Estados Unidos. Da mesma forma que precisaremos apoiar nossos irmãos trabalhadores venezuelanos contra qualquer ataque.
Chavismo perde força e aumenta a polarização
As eleições de abril, entre Capriles, da direita, e Maduro (escolhido no movimento chavista para suceder Chávez depois de uma disputa interna com o presidente do Congresso e os setores militares). Diferente da eleição de outubro, em que Chávez ganhou com mais de 2 milhões de votos, dessa vez a diferença foi de pouco mais de 200 mil votos.
Esse resultado mostra um enfraquecimento eleitoral do chavismo, o fortalecimento de setores de direita e refirma a tendência de que o chavismo perde apoio político de massas. E isso tem várias causas: a inflação, o desabastecimento de produtos alimentícios (o país importa boa parte dos alimentos que consome), a violência assustadora, o desemprego ou emprego informal (quase metade dos trabalhadores são informais), etc.
A isso se combina a sabotagem e a oposição da burguesia tradicional do país. Mesmo sendo parte de uma corrente burguesa é inegável que algumas políticas de Chávez afetaram setores da burguesia tradicional e, sobretudo, da pequena burguesia que vivia parasitando na PDVSA (empresa petróleo estatal). É esse setor que mais oferece resistência e sustenta politicamente a oposição de direita.
O controle sobre o parlamento, o judiciário e as forças armadas é a principal aposta de Maduro para se contrapor ao desgaste junto aos trabalhadores e à classe média. Capriles, por seu lado, aproveita a divisão e tenta aprofundar essa polarização. Busca mobilizar setores que o apoiam, a ponto de organizar manifestação no 1º de maio, dia de luta dos trabalhadores e não da burguesia.
Nessas condições Maduro tem duas saídas: Impor uma ofensiva contra a burguesia ou fazer concessões para os trabalhadores e para a classe média. Acreditamos que é pouco provável que enfrente a direita burguesa, pelo contrário, o governo chavista caminha para a conciliação. E a direita só tenta impor. Por outro lado, as concessões esbarram na crise econômica, em que suas margens são cada vez menores. Essa contradição deverá seguir até que um lado consiga se impor.
Um governo frágil
Uma coisa é Chávez. Outra é Maduro. Este além de ser muito mais frágil politicamente (o resultado eleitoral demonstra) não tem o mesmo carisma e prestígio que Chávez e precisaria aprofundar medidas sociais. Conseguiu unir os chavistas em torno de seu nome, mas não conseguiu o resultado que lhe desse força suficiente para impor o seu projeto.
A dívida externa em torno de U$ 100 bilhões (para a China são US$ 43 bilhões), o déficit fiscal, a fuga de capitais (pela desvalorização da moeda venezuelana) são parte de um problema que é, cada vez mais, estrutural. Administrar uma economia nos marcos do capitalismo é conviver com suas leis econômicas e seus limites. Ou paga a dívida externa ou promove políticas públicas.
Governo frágil e com prestígio ainda por ser construído junto aos trabalhadores fortalece a oposição burguesa a continuar pressionando para, na pior das hipóteses, conseguir um acordo vantajoso.
Mas, a fragilidade de Maduro é também um problema para a burguesia que o apoia. A continuidade de sua política vai provocar choques com os trabalhadores e a utilização da repressão como, por exemplo, na greve da siderúrgica Sidor em que, a luta, se nacionalizou.
Essa a situação política na Venezuela está marcada por uma profunda instabilidade.
Um golpe de Estado em curso
Com a instabilidade política, a fragilidade de Maduro, o fortalecimento eleitoral da direita, a crise econômica (inflação, desemprego, etc.) somados ao fato de que amplos setores da classe média começam a se mobilizar junto com a oposição burguesa entendemos está colocada a possibilidade real de um golpe na Venezuela.
Em seu discurso, Caprilles, com o resultado das eleições, chamou Maduro de ilegítimo, senha de preparação de golpe. A Casa Branca já sinalizou o apoio e até o momento o imperialismo estadunidense não reconheceu sua vitória, pois exigiu a recontagem dos votos. Deslegitimar um governo é uma necessidade para o golpe.
Uma vitória dos golpistas e pró-imperialistas fortalecerá os setores de direita do continente e, consequentemente, representará uma dura derrota aos trabalhadores com sérias consequências para todos nós. Por isso é necessário uma campanha internacional contra os golpistas. Tarefa que cabe a todos, mas, principalmente, às maiores correntes da esquerda latino americana.
Caracterizamos o chavismo como nacionalista burguês. Isso não nos coloca ao lado do imperialismo ou da direita venezuelana. Negociar com os partidos de direita, governar com e para a burguesia sempre levou a vacilos das direções. Enquanto conversam e fazem acordos, a direita prepara o golpe. Isso já ocorreu diversas vezes na história, um exemplo, ocorreu no Chile quando Pinochet jurou fidelidade a Allende e a preparação do golpe já estava avançada.
Qual política?
A complexidade do processo político venezuelano impõe a necessidade de uma política que responda a totalidade do processo: Contra a direita golpista e o imperialismo. De esquerda em relação ao chavismo. E, principalmente, voltada para a mobilização da classe trabalhadora de modo que possa se fazer presente nesse processo de maneira independente.
A luta contra os golpistas com a luta pelas reivindicações da classe trabalhadora deve ser combinada e deverá apresentar uma saída socialista para a crise. Os trabalhadores precisam tomar em suas mãos a tarefa de mudar a sociedade. Nesse sentido, a política deverá combinar as tarefas democráticas (contra o golpe) nacionais (não pagar a dívida externa), anti-imperialistas (aprofundar as nacionalizações) e socialistas que são as medidas de expropriação e construção de organismos de poder dos trabalhadores.
É preciso que Maduro se posicione ao lado dos trabalhadores. Rompa as negociações com a direita. Adote medidas punitivas aos partidos e instituições que participam de manobras golpistas. Exproprie as empresas que patrocinam os golpistas, inclusive as estrangeiras.
Também é fundamental que todas as divisas do petróleo sejam direcionadas para os programas sociais, em especial para o campo, a fim de garantir a produção de alimentos para os trabalhadores e a população pobre venezuelana. Para isso os 30 milhões de hectares de terras ainda não cultivadas devem ser colocados sob controle dos trabalhadores. Expropriação das grandes empresas e sob controle dos trabalhadores.
Organização de comitês operário-populares nos bairros, nos locais de trabalho e estudo para garantir a aplicação de medidas contra a burguesia, o imperialismo e enfrentar os golpistas.
Essa eleição representou o atual nível de consciência dos trabalhadores venezuelanos. Mas, o golpe representa a quebra, até mesmo, das regras da democracia burguesa.
Somente a luta dos trabalhadores organizados pode deter os golpistas e garantir que a riqueza produzida seja distribuída entre quem verdadeiramente a produz, a classe trabalhadora.
Encarte teórico:
A crítica radical da religião é a crítica do ateísmo
A Crítica Radical da Religião é a Crítica do Ateísmo
Thiago Lion e Thiago Calheiros
Em relação ao tema “religião”, a postura “mais avançada” dos críticos tem sido sempre a do “ateísmo”, se opondo ao fenômeno religioso. Essa postura de simples negação, porém, além de não compreender o próprio fenômeno religioso, apresenta limitações na compreensão da própria realidade que possibilita a existência da religião. Deste modo, o crédulo ateu não pode compreender que a própria realidade na qual ele vive é também metafísica, tão religiosa e incoerente quanto às religiões que combate. Deste modo, pretendemos demonstrar que a crítica radical de base marxiana constitui-se igualmente em crítica do ateísmo. Esperamos, com isso, retirar alguns preconceitos que se tornam um impeditivo a priori para a militância utilizar o que há de emancipador por debaixo do invólucro místico das religiões.
O “mecanismo” da religião
Pode-se dizer que o mecanismo básico de funcionamento da religião é a alienação, ou seja, a transferência para outro ser de seu destino, de seu controle, de sua essência. Este outro ser, a divindade, é, no entanto, criado pela projeção das próprias relações sociais entre os homens. Na religião, os homens acabam por substituir sua autoconstrução consciente por um ser criador de si mesmo. Até aqui em quase nada diferimos do ateísmo em seu sentido tradicional, vez que deus aparece até agora como algo subjetivo, que depende da subjetividade humana para existir. Este subjetivismo religioso se opõe ao mundo real, onde as coisas acontecem de fato e não apenas em pensamento, o que justificaria a caracterização da divindade como um mero delírio.
Tomando as religiões como mera alienação subjetiva, o ateísmo não consegue perceber que elas têm um sentido de desenvolvimento na história que vai de religiões mais simples para mais complexas no desenvolvimento do mundo dos homens. Como os ateus veem o divino como algo do pensamento e não da realidade (onde deus “não existe”), deixam de, por vezes, procurar na própria realidade a causa da formação de tal imaginação no cérebro e na vida do homem. Não compreendem assim como a própria religião é um fenômeno constituído e constituidor dessa própria realidade. Não percebem como essa mesma realidade é por si “religiosa”. A pergunta mais importante para o esclarecimento não é a clássica “Deus existe?”, mas sim a que, superando este ponto, acaba por questionar: Por que o homem se aliena? Por que ele acredita ter sido criado pela divindade que ele mesmo criou? Como uma idéia que ele mesmo cria “adquire vida”, torna-se relação social e passa a lhe dominar? A resposta para isso não pode ser dada a partir da constatação de casos individuais de conversão, como, por vezes, o senso comum busca fazer. Para entendermos a verdade da religião temos que recorrer à análise histórica, levando em conta a estrutura das sociedades que deram origem às diversas representações religiosas de mundo. A história das religiões é a história das formas de representação do mundo pelas sociedades; compreendendo o desenvolver das religiões, entende-se o desenvolver da consciência do homem, abrindo-se a porta para uma crítica do próprio caráter irracional da forma atual de representação do mundo, inclusive aquela que se apega ao ateísmo.
O processo de transformação das religiões
A divindade é criada na mente das pessoas, mas não na de uma só e sim nas mentes e relações sociais do conjunto das pessoas que vivem aquela realidade social. Em sua história, os homens quase nunca puderam escolher uma religião. A escolha livre de religião é um fenômeno tipicamente moderno. Isso porque nos tempos passados a dita “religião” é uma forma total de cultura, uma forma completa de entender o mundo que se articula como direito, como moral, como política, como economia etc. O considerado justo ou correto não era de acordo com algum tipo de lei que pudesse ser diferente da religião, pois a religião era a própria lei; aliás, só se pode falar de “uma religião”, como algo separado das outras esferas da vida, no próprio capitalismo, vez que só neste os vários aspectos da vida se fragmentam e se autonomizam. O mesmo fenômeno que no passado podemos atribuir o nome de religião pode igualmente ser compreendido com o nome de cultura, pois representa o todo indistinto da visão de mundo das pessoas em determinada sociedade e não uma opção de crença desvinculada de outros conjuntos da vida social, como hoje, que a religião é um aspecto tão subjetivo – e por vezes menos importante – que a escolha de um time de futebol.
Nos primórdios das sociedades humanas, quando o homem começava a desenvolver a linguagem e com ela a sua consciência, a representação do mundo era dominada por elementos que hoje consideraríamos místicos, ilusórios. Na infância da humanidade, para nossos ancestrais, cada ser vivo e cada objeto tinha uma anima (uma alma, uma vontade). Tudo tinha alma, pois o próprio jeito de entender a existência de algo era atribuindo-lhe uma; como hoje, ainda, para podermos transportar o significado de algo, precisamos de um nome. A mera atribuição de uma alma para cada coisa é um avanço da consciência que possibilita conhecer cada coisa em separado. Quando o homem entende que sua alma não é forte para vencer a alma da árvore, mas que quando unida à alma da pedra é possível vencer, ele estabelece uma relação de causalidade entre usar uma coisa (pedra) para derrubar outra (árvore). Assim ele significa e articula relações incompreensíveis para quem ainda não identifica todos os seres como portadores de uma alma, como “algo” que existe.
Quando uma tribo de coletores primitivos encontra cereais selvagens e os consome, devolvendo parte para a terra de onde o cereal brotou, percebem que mais cereal brotou na estação seguinte. Assim, formam-se os mitos ligados à origem da agricultura. Forma-se, assim, um ritual para os deuses da natureza, um ritual que a nossos olhos seria irracional, mas que representa um avanço geral na consciência do homem em relação aos estágios anteriores, articulando uma causalidade que permite o início da agricultura, abrindo as portas para o surgimento da civilização. A representação destes níveis de desenvolvimento cultural muito primitivos não são mera ilusão, mas são formas reais de conhecimento do funcionamento do mundo, a descoberta de uma causalidade antes não conhecida. Aqui não se pode caracterizar os mitos como mero delírio subjetivo, eles não são um conhecimento falso do mundo; os mitos representam a verdade deste próprio mundo dos homens, o que também é, por outro lado, um dado nível novo de esclarecimento sobre o funcionamento deste. Se, para os ateus, isso parece delírio é só porque eles estão tão crentes de sua verdade e de sua ciência que ficaram cegos. Esta cegueira, a cegueira do dogma, justamente a que pensam combater, os coloca no mesmo nível do cristão que critica o pagão, do jesuítico colonizador europeu que entendeu as crenças indígenas como absurdas. Esta cegueira impossibilita compreender como a própria realidade é até hoje metafísica, como ainda se sustenta por ídolos criados pelo próprio homem.
A forma de representação totêmica, existente nas sociedades mais primitivas em que o homem ainda está muito submerso na natureza, é substituída por outra forma de entendimento do mundo quando começam as primeiras civilizações. De uma tribo que produz coletivamente a sociedade adquire pouco a pouco uma forma hierarquizada onde há a exploração de uma classe social por outra. A produção de excedente então alcançada possibilita que surja toda uma classe social que sobreviva à custa de outra. As primeiras grandes civilizações do Egito, Mesopotâmia e China têm formações sociais com líderes despóticos, gerando uma nova forma de representação religiosa. Todo poder da comunidade, antes projetado no totem (uma árvore ou um canguru, por exemplo), agora é projetado em um homem e refletido secundariamente sobre outros integrantes de sua classe social. Há assim uma inversão, e o que é fruto do desenvolvimento social, do desenvolvimento coletivo, parece agora derivar de algumas figuras (pessoas) que se tornam deuses. O mundo passa a ser visto como um todo comandado por uma divindade encarnada na figura do rei – um faraó com um séquito de súditos igualmente sobre-humanos. Estas figuras em geral antropomórficas (corpo de homem e cabeça de animal), não escondem seus resquícios ainda não eliminados da época totêmica. Tais formas animais serão completamente apagadas quando os homens não estiverem mais submetidos a um único rei, mas quando as transformações sociais os impelirem a começar a produzir por sua própria conta para vender em um mercado onde possam exprimir sua vontade como comerciantes em pé de igualdade – colocando assim uma relação de identidade clara entre os homens e em oposição ao resto da natureza. Esta identidade entre homens é que então passará a ser projetada por sua consciência.
Com o começo da produção em pequenos clãs possibilitada pelo domínio da metalurgia do ferro, entre os gregos surge um panteão de deuses que reflete este novo avanço. Sua representação religiosa cria deuses com feições humanas, deuses que representam relações, desejos e atributos claramente humanos. É que a sociedade já se afastara tanto da natureza que não se identifica mais com o restante do mundo natural, e novos sentimentos, que se tornarão próprios da humanidade a partir deste momento, surgem projetados nos deuses. Estes sentimentos representados por deuses, no entanto, não deixam dúvida: são na realidade sentimentos que estão nascendo nos humanos, mas que estes só podem compreender vendo-os projetados na divindade. Na Grécia antiga, por volta do século VIII A.C, surge Diké, a deusa da justiça que representa a igualdade em oposição à divindade mais antiga, a Titã Thêmis, encarada como a justiça da nobreza, que se pautava por relações servis desiguais, guardiã do justo como tradição dependente da linhagem. Esta forma de luta ideológica projetada nos deuses é ela mesma a luta entre a classe dos camponeses e dos mercadores (que começa a surgir) e seu ideal de igualdade (dos quais o comércio depende) em oposição à antiga nobreza, que defendia seu privilégio, visto como algo divino.
O processo de desenvolvimento da religião é, antes de qualquer outra coisa, um processo de autoconhecimento do homem, no qual ele capta a realidade a partir da projeção de sua organização social. Quanto mais se desenvolve o homem, mais esta projeção das qualidades humanas pela identificação do homem com seu gênero, e não com a natureza, se torna nítida, e mais os deuses assumem formas humanas. No cristianismo, talvez a mais “desenvolvida” das religiões, este processo alcança um ponto em que se mostra de maneira ainda mais clara: a projeção da humanidade na divindade acaba gerando Jesus Cristo, um deus nascido de uma humana e que existe sob a forma humana de carne e osso. O homem se vê em Jesus, ele vê seu reflexo como humano, mas um reflexo ainda virado de ponta-cabeça, pois o humano lá revelado, ainda que de carne e osso, se projeta como Deus. No sacrifício de Cristo, se mostra simbolicamente a culpa que todos temos e pela qual ao mesmo tempo não somos responsáveis; a culpa gerada pelo fetichismo que nos controla e que, assim, fazemos sem saber. Amar o próximo como a si mesmo, tolerar, dividir o pão, essa é a boa nova que deve ser praticada e ensinada a todos para que sejamos salvos. Essa é a mensagem que deu origem no começo de nossa era ao comunismo cristão primitivo, e que, no essencial, desvencilhada do invólucro místico, não difere daquele que será o lema de uma sociedade emancipada “de cada um conforme sua necessidade, a cada um conforme sua capacidade”.
Conforme se vê, o fenômeno religioso, aqui, não é um falseamento da realidade, não é uma mera ilusão, antes é um avanço na forma de interpretação do mundo por conta dos avanços da própria sociedade – constituindo assim uma forma historicamente válida e real de conhecimento do mundo. É claro que, com novos passos de entendimento da relação da natureza, a manutenção de formas anteriores de entendimento torna-se uma contradição reacionária – e mesmo mera ilusão subjetiva, o que não eram no passado. O caráter progressista que pode ser atribuído ao ateísmo encerra-se na crítica desta contradição, pois num mundo onde o agir religioso se mantém pela emulação das práticas mercantis (numa verdadeira subsunção dos preceitos religiosos tradicionais à vida mercantil) ou mesmo numa sociedade em que o agir religioso tradicional praticamente já desapareceu (no sentido de uma vida de acordo com a religião e não meramente de ir às missas ao domingo) aparece o ateísmo como uma irracionalidade também gigantesca, quando o mesmo continua a se limitar a dizer “o deus metafísico não existe”. Isto é, por si, se colocar no mesmo âmbito “dos céus”, tal qual o religioso; quando que, verdadeiramente, o que deve ser feito é uma crítica “terrena da terra”.
A religião de nossos dias
Em nossos dias a religião se torna cada vez mais um fenômeno subjetivo, ligado às preferências individuais de cada pessoa. O caráter obrigatório anterior, com o qual as diversas formas de religião se originaram, já desapareceu. A vida prática é cada vez mais determinada pelo modo de funcionamento do capitalismo – as pessoas têm que ter um emprego, têm de obedecer às leis do Estado em cujo território estão, seguem uma forma lógico-sistemática de pensamento nos estudos, etc. Sobra para a religião o espaço na mente daqueles que “crêem”; a fé deixa de ser um fenômeno social imperativo e assume assim uma forma individualizada. Hoje, mesmo o mais fiel cristão não consegue cumprir um décimo do que a bíblia prescreve como modo de vida exemplar, e isso não porque não queira, mas porque é impossível sequer comer nos dias atuais sem estar diretamente conectado à prática capitalista em suas categorias básicas como dinheiro, trabalho, direito, ciência etc. O cristão já não é mais seguidor da mensagem libertadora de Cristo, mas da reinterpretação do que há de místico em sua figura a partir do imperativo capitalista do lucro. Não lhe importa mais a solidariedade, a tolerância, a divisão de seus bens com todos, mas sim enriquecer, acumular. Por isso, diz o filósofo e psicanalista Wilhelm Reich, que hoje, se voltasse à terra, quem assassinaria Jesus Cristo seriam os próprios cristãos.
A prática religiosa foi desbancada pela prática mercantil; mas como esta é a prática do individualismo, é possível manter a religião como algo individual – contanto que não atrapalhe o funcionamento do sistema econômico; ou seja, que fique restrita só ao pensamento ou mesmo sirva para manter e aprofundar o sistema então vigente. A crítica ateísta se preocupa em combater este pensamento que ainda se coloca como véu na mente de muitos, mas ela própria não se dá conta de que a prática religiosa em seu sentido tradicional já desapareceu e outra prática, igualmente incoerente, tomou seu lugar. Na luta contra a incoerência, que é a parte da religião criticada pelos ateus, o que realmente importa é criticar a prática que possibilita o individualismo e o capitalismo como um todo, que possibilita a manutenção da incoerência. É penetrar no que ainda há de religioso em nossa própria prática, mas não no religioso no sentido estritamente divino, e sim no sentido real de uma projeção social que gera uma alienação, um controle cego da nossa sociedade por algo que nós mesmos criamos inconscientemente. Aqui o ateísmo não tem nada a dizer, pois apenas declara a não existência daquilo que já não existe. É preciso trazer a descrença para a própria prática do ateu possibilitando perceber nela a alienação.
Na divindade o homem aliena o controle de sua vida para uma ideia que ele mesmo criou conforme seu convívio social; no capitalismo, um fenômeno muito parecido opera cotidianamente. As coisas que o homem produz com seu trabalho acabam, uma vez produzidas sob esta determinada forma, dominando o homem – do mesmo jeito que sua ideia antes o dominava. Isso se dá não apenas no sentido classicamente afirmado de que a máquina domina o homem – e assim o capital domina o trabalho, mas em sentido muito mais profundo. A relação social mercadoria é uma relação humana de comparação abstrata entre as coisas, efetuada por meio da troca, que acaba por projetar nestes produtos um valor, seu “parâmetro de comparabilidade”. O valor não é algo próprio da matéria, não é algo físico e nenhum cientista conseguirá vê-lo com um microscópio, pois ele é a projeção de um tipo de relação social sobre as coisas, que assim se tornam mercadorias. Em uma comunidade primitiva, o produto do trabalho não era trocado; assim, as coisas não se apresentavam como tendo um valor (uma certa quantidade de trabalho, representada pelo dinheiro). Com o comércio, inicia-se esta projeção que dominará toda a sociedade com a chegada do capitalismo; o capital (uma relação social caracterizada como utilização do dinheiro para gerar mais dinheiro) decide nosso destino. Pela própria prática das pessoas no mercado as coisas se tornam portadoras de valor e assim os homens se relacionam por meio das coisas, como se esta fosse a única forma possível de ser. De modo similar, relações sociais pré-capitalistas projetavam, pela própria prática das pessoas, a aparência de que o mundo era habitado por divindades que estabelecem o destino da sociedade. Nos dois casos, as relações sociais projetam uma forma de entendimento do mundo que serve justamente à manutenção daquelas mesmas relações, que aparecem como decorrências naturais, ou “justas”, mas que uma análise mais profunda revela como incoerentes.
Tentando ser mais claro: a alienação religiosa é a projeção das relações sociais na ideia de uma divindade, que aparece como se tivesse criado a humanidade – e não o contrário. A sociedade passa a ser dominada de fato por meio desta ideia que ela mesma criou, e passa a seguir rituais, sacrifícios (inclusive humanos) etc. No capitalismo, as relações de troca conduzidas pelos humanos, fazem as coisas terem um valor (uma propriedade que elas fisicamente não têm, senão por meio da própria ação humana) e gerar o “mercado”, que acaba por dominar toda a sociedade. O mercado, para o qual são produzidas todas as coisas, aparece como uma vontade independente dos homens, como se tivesse vida e até humor próprio. Salta aos olhos a cega ideia de que o mercado seja o promotor do “bem comum”, que em qualquer tempo ou situação assegurará o melhor a todos por meio de sua “mão invisível”, termo que por si já revela um dogma de perfil tipicamente religioso. Muitos, como os defensores de um “estado de bem-estar social”, percebem a irracionalidade do sistema neste nível, mas ao invés de criticá-la e avançar para construir algo novo que supere tal estado de coisas, advogam um novo tipo de ritual para agradar os ânimos do Deus-mercado – criar trabalho desnecessário, ou necessário apenas do ponto de vista da própria criação de valor abstrato. A tosca afirmação de que o modo atual de funcionamento da sociedade é derivado da própria natureza é só uma atualização do mito de que as coisas são como são por vontade divina – nos dois casos os homens afastam sua responsabilidade na construção de sua própria realidade, projetando-a para o exterior, seja para Deus ou para o Mercado.
O mercado e seu domínio abstrato não se limitam à própria economia. As decisões em todas as instâncias e áreas são baseadas nas “vontades” deste mecanismo abstrato, uma verdadeira divindade prática. Tudo em nossa sociedade é feito no intuito de gerar mais dinheiro e não de diretamente suprir necessidades humanas. Na relação social mercadoria, o produto da mão do homem passa a dominá-lo como se fosse de uma realidade independente da ação dos sujeitos, algo inescapável. Este fetiche que está na cabeça dos homens controla sua vida social, pois são suas próprias relações sociais, decidindo mesmo sobre a vida e a morte. Hoje mais de um bilhão de pessoas passam fome e única razão para isso é que a produção de comida para eles não é tão rentável quanto a de artigos de luxo. Esta abstração que existe na realidade é ela mesma criada pela prática social dos homens e não um fenômeno natural e inescapável, algo independente de nossas relações. De modo similar ao que as pessoas eram atiradas à fogueira na inquisição, por conta de uma crença cega em deus oriunda da própria prática inconsciente dos homens, no capitalismo, pela própria prática por nós reproduzida (que nos aparece como algo existente por si só) milhões morrem de fome. Nossa sociedade ainda não é conscientemente administrada, mas antes guiada por um ente abstrato, o mercado, que nós mesmos criamos, mas não controlamos. Este ente derivado de nossa própria prática é semelhante ao primitivo totem, semelhante às várias divindades que guiaram nossa vida por entre os séculos, uma representação fetichista das relações que nós mesmos reproduzimos, algo que fazemos sem saber.
Assim, podemos dizer que o desenrolar histórico da religião é o desenrolar das formas de compreensão de relações sociais que lhe deram causa. Declarar a não existência do divino não basta; é necessário compreender como ele surgiu, se desenvolveu e desapareceu na história. Por detrás da representação, há uma história real das relações nas sociedades e do desenvolvimento da consciência humana. Compreendendo-se o fetiche existente na religião, facilita-se a compreensão do fetiche em suas misteriosas formas “terrenas”, como o mercado, o Estado, o direito, o dinheiro etc. Adentrar aqui em profundidade na base teórica que permite compreender conjuntamente todos estes fenômenos, a crítica do chamado fetichismo da mercadoria, no entanto, só tornaria mais confusa a explicação deste tema já muito amplo e complicado. Deste modo, contentamo-nos aqui em explicitar a inconsciência de nossa prática social, deixar evidentes as incoerências “religiosas” de nosso modo de ser no mundo, para que o ateu entenda o fetichismo de sua própria posição e liberte-se de seu preconceito.
Na luta pela superação da exploração precisamos do apoio de todas as tendências que historicamente contra ela se levantaram; precisamos de uma frente ampla a favor da socialização, da solidariedade. O cristianismo representa, em sua mensagem original, um poderoso argumento contra a exploração. Por que a esquerda crítica não consegue utilizar este discurso que a princípio lhe seria tão favorável? Entre outros motivos, isto se deve a seu preconceito de tomar o essencial do fenômeno religioso não como forma de consciência, mas como mistificação. Assim se nega a priori como ilusão, como delírio, todo o conhecimento que a humanidade reuniu por milênios na narrativa religiosa. Nega-se também a compreensão do fetichismo da mercadoria, espécie de fenômeno religioso que constitui a base de funcionamento do próprio capitalismo, e, talvez, ainda pior: nega-se ao debate ideológico por dentro da religião, deixando para a direita capitalizar politicamente os que creem e que ainda representam a esmagadora maioria da população. Ainda: isola e desmobiliza aqueles progressistas e revolucionários que tem algum tipo de crença religiosa, colocando a identidade como ateu antes da identidade como pessoa que quer superar o capitalismo. Esperamos ter contribuído para acabar com este preconceito.
*Adaptação reduzida, por Thiago Calheiros, do artigo Para a Crítica do Ateísmo, de Thiago Lion, com revisão do próprio autor.
Encarte Alagoas
Capitalismo e Violência
Marcus Vinicius
Assim como ocorre com demais assuntos que dizem respeito à sociedade, o problema da violência é percebido e explicado de formas diferentes, a depender das ideias de quem o aborda. Os três caminhos mais comuns são: 1) a violência humana como algo natural, 2) os atos violentos como frutos de escolhas de indivíduos e 3) a violência que atualmente é praticada por e contra os seres humanos como produto de nossa sociedade como um todo.
O primeiro vê a questão da violência como algo inseparável do ser humano: “somos naturalmente violentos e isso não pode ser superado”. Desse modo, as práticas violentas mais disseminadas e postas em discussão, como homicídios, violência sexual, roubos, assaltos, linchamentos, etc. são explicadas a partir da formação biológica de homens e mulheres. As pessoas furtam, brigam e se matam porque isso “está no sangue” de nossa espécie.
Já o segundo dos caminhos, que tende a ser o mais trilhado na atualidade, leva à compreensão de que não são os seres humanos de forma geral que são violentos, mas aqueles que desejam ser. Então, as agressões à integridade física de outros indivíduos e o ataque à propriedade privada são vistas como resultados de decisões individuais isoladas – em que os indivíduos com “bom senso” respeitam os outros seres humanos em suas posses, gêneros, etnias, sexualidades, nacionalidades e demais condições; enquanto, aqueles que não o fazem, decidem atropelar as individualidades dos que os rodeiam – estejamos tratando do desrespeito aos bens materiais alheios ou de outras dimensões da vida humana, como da orientação sexual ou da cor da pele, para mencionar dois curtos exemplos.
A terceira ideologia enxerga a violência como uma consequência das próprias relações sociais estabelecidas, o que nos traz o entendimento de que os variados gestos bruscos e, muitas vezes, sangrentos realizados por mulheres e homens não podem ser explicados por fatores genéticos – que naturalizam a vida social – nem individualizantes – que mascaram os laços sociais que unem cada indivíduo à sociedade de qual é parte – mas sociais. Dessa maneira, as práticas violentas dos seres humanos não são tidas como simples resultados da essência humana, nem de suas escolhas, porém de como estão inseridos no meio social e como este os influencia no cotidiano.
A perspectiva socialista faz parte desse terceiro grupo. De acordo com a nossa visão de mundo, qualquer sociedade que reúna indivíduos em relações sociais contraditórias estão sujeitas ao problema da violência.
Por se tratar de um modelo de organização socioeconômica que funciona sob a divisão de classes, a sociedade capitalista cria condições de vida que, diariamente, contrapõem os indivíduos que dela participam. Essa oposição repousa na existência de duas classes: a capitalista e a trabalhadora – que possuem uma conexão necessariamente antagônica – a primeira é proprietária dos meios de produção, enquanto a segunda possui apenas a força de trabalho, tendo que vendê-la para assegurar sua sobrevivência. Uma vez que é a partir desta relação que se produz todas as mercadorias que são consumidas no ambiente social, é ela quem fundamenta e permite a manutenção e desenvolvimento de toda a sociedade.
Embora pareça uma afirmação extremamente simples, não se encerra em si mesma. Quando é apontado como um modo de produção que se baseia na contradição entre duas classe, diz-se que o capitalismo ocasiona uma série de consequências: as relações de exploração do trabalho caminham de mãos dadas com as desigualdades sociais, que se manifestam através da pobreza, fome, analfabetismo, miséria, etc., em outros termos: é um tipo de economia que proporciona condições de vida profundamente distintas a seus indivíduos, a depender do lugar ocupado na pirâmide social das relações de trabalho.
No livro chamado A situação da classe trabalhadora na Inglaterra (1844), Friedrich Engels acompanhou as circunstâncias que os trabalhadores ingleses tiveram que enfrentar no período de grandes saltos produtivos dados pelo capitalismo durante a Revolução Industrial. Observou que, desde o seu “fabuloso” momento de desenvolvimento vertiginoso, a sociedade capitalista apresentava vivências díspares – onde a classe capitalista, vivendo em arejados bairros, sob tetos luxuosos, estava bastante afastada dos bairros da classe operária, que não possuía saneamento e ventilação, onde casebres eram amontoados, e, dentro deles, as famílias dos trabalhadores tinham que se apertar para poder garantir suas necessidades primárias… Isso quando tinham a sorte de ter cama e comida para descansar e sobreviver, a cada dia.
E porque sublinhar tudo isso, se estamos tratando do tema da violência? Engels constata que, ao lado desse degradante quadro em que se encontravam milhares de trabalhadores, na medida em que miséria avançava sob a forma do desemprego e do emprego-faminto, também aumentava o número de crimes registrados no país – esclarecia o vínculo encoberto pelo discurso da ideologia da classe dominante, que parece sentir um misto de autoperdão e prazer ao abandonar, em nome da liberdade individual e dos milagres materiais assegurados pela ordem do capital, seres humanos no sofrimento.
É muito comum encontrarmos no discurso capitalista, no Brasil ou mundo afora, o sentimento de que os duros e maléficos tempos da Revolução Industrial ficaram para trás e que vivenciamos um período em que uma maior distribuição de bens nos trouxe uma situação de conforto geral; de que o modo de produção capitalista é o cume dos modelos de sociedade que melhor satisfaz a humanidade.
Porém, se atentarmos a índices sociais, veremos que correspondem muito pouco à realidade. Dando enfoque a um caso de nosso país, podemos clarear melhor a questão: de acordo com o Mapa da Violência, em 2010, Alagoas ganhou o “troféu” de estado brasileiro com a maior taxa de homicídios – para cada 100 mil habitantes, 109,9 são assassinados. Maceió, sua capital, foi eleita como a terceira cidade mais violenta do mundo, baseada em dados colhidos por uma ONG mexicana.
De encontro com esses números, temos as seguintes informações, de 2009, do IBGE e IPEA, sobre a população alagoana: 12,1% encontram-se desempregada; 62,9% corre risco de morte por conta da fome; 47,70% vivem em condições de pobreza; 21,30% em condições de extrema pobreza; a cada 2 alagoanos, 1 vive de esmola ou Bolsa Família – todas essas estatísticas são consideradas elevadas até quando comparadas com outros estados do país.
Embora não possamos afirmar que uma condição indigente obrigue o ser humano a tomar os trilhos do crime e faça com que não tenha outra saída que não a marginalidade, não vemos qualquer sentido em dizer que a sociedade capitalista forneça oportunidades para que todas as mulheres e homens possam viver dignamente – já que o que a guia não é o bem comum da população, mas o lucro e a riqueza de uma parcela reduzida.
Acreditamos que o problema da violência não pode ser enfrentado como algo desconectado do capitalismo. Os atos de violência não surgem de uma mera decisão de indivíduos que optam por agredir outros – suas causas devem ser procuradas no meio social. Para que a violência seja combatida é essencial que os indivíduos não sejam violados rotineiramente. Mas, como no capitalismo não temos isso sendo garantido nas relações de emprego e de vida, não vemos outro remédio que possa curar os enfermos corpos dos trabalhadores, dos negros, das mulheres e de outras minorias oprimidas que não o socialismo.
A crise ambiental é, na verdade, uma crise do capital
Zilas Nogueira – Alagoas
Estudos científicos e os meios de comunicação têm noticiado, constantemente, sérios indícios de que passamos, hoje, por uma grave crise ambiental. Catástrofes naturais, poluição, desmatamento, desertificação, escassez de recursos naturais, fome, desigualdade social e violência, são apenas alguns deles.
Desastres ambientais, como a explosão e afundamento de uma plataforma da companhia British Petroleum (BP) ocorrido em 2010 no Golfo do México despejando, durante mais de um mês 2 a 3 milhões de litros de petróleo por dia no mar. Números como os apresentados pelo PNUD revelando que 968 milhões de pessoas não têm acesso a fontes de água tratada, 2,4 bilhões ao saneamento básico e que 2,2 milhões morrem anualmente por contaminação do ar, reforçam a ideia de crise do meio ambiente.
Cientistas, ecologistas, religiosos das mais variadas orientações, a juventude de classe média que, com um discurso pequeno burguês, se engaja em ONGs na luta em defesa da natureza e até políticos oportunistas, todos, sem exceção, afirmam que tal situação tem como causa central o modelo de desenvolvimento vigente, baseado no consumo exagerado. Assim, para reverter o processo de degradação ambiental existente hoje e salvaguardar os recursos naturais de forma que possam continuar sendo utilizados pelas gerações futuras seria imperativo modificar tal padrão econômico. Mas, é precisamente aqui que as coisas se complicam.
Os ecologistas e jovens de classe média, os acadêmicos e religiosos em geral, por causa de sua posição de classe, nunca poderão dar sequência às suas reflexões de maneira crítica e radical, no sentido de ir à raiz do problema. Por isso, patinam entre soluções tecnológicas mirabolantes e propostas de melhorar o funcionamento do mercado para que venha incorporar as preocupações ambientais em suas transações.
Mas, quem quer pensar as questões ambientais atuais e ser minimamente consequente tem que saber que o problema encontra-se, sim, no modelo de desenvolvimento e consumo vigentes. Deve ir além e se perguntar: qual é mesmo o fundamento deste modelo? Quem fizer esta pergunta só encontrará uma resposta: as relações de produção capitalistas. É enfadonho ouvir representantes de organizações que acham que estão lutando na defesa do meio ambiente afirmarem a todo tempo que o mal está no consumismo, ou nos políticos corruptos, ou na incompetência dos gestores públicos, etc. Mas, nunca se ouve destas pessoas uma única referência ao capitalismo.
Assim, as causas do uso predatório dos recursos naturais, bem como as soluções para tal problema vêm sendo apontadas como uma questão que depende exclusivamente de um melhor gerenciamento em relação ao uso de tais recursos, de uma postura mais responsável e ética face ao meio ambiente, de uma busca pela conscientização dos cidadãos, de uma classe política que esteja preocupada na preservação ambiental, de mais educação, etc.
No entanto, verificamos que desde os últimos trinta anos do século passado até a primeira década do atual, as tentativas de explicar e propor soluções com base subjetivista têm se mostrado ineficazes no sentido de estabelecer um consumo mais racional dos recursos naturais, sobretudo os não renováveis.
O que está equivocado e que nem os doutores das universidades nem os jovens de classe média conseguem enxergar é que o pressuposto sobre o qual formulam suas cantilenas é falso. Ao examinar os problemas ecológicos, as questões éticas e políticas não devem ser colocadas como eixos centrais da análise. A preocupação fundamental deve ser, de outro lado, apreender a lógica imanente de funcionamento da formação social em que se passam as questões ambientais em exame. E depois relacioná-la com os problemas ecológicos que estamos investigando para, só então, verificar os possíveis condicionantes éticos e políticos.
Acreditamos, portanto, que um melhor entendimento da problemática ambiental apenas pode aflorar se compreendermos da maneira mais profunda possível as leis e determinações objetivas que regem a dinâmica socioeconômica capitalista.
Se assim procedermos, perceberemos que é a lógica própria do mercado capitalista que determina, em última instância, o volume e a velocidade da produção industrial e agrária, a admissão ou demissão de milhares de trabalhadores, a apropriação de terras por latifundiários e consequentemente o êxodo de camponeses para as cidades, o uso predatório ou não de determinados recursos naturais, etc. Esta lógica é incontrolável e se estrutura em uma série de leis próprias ao funcionamento da ordem social regida pelo capital. Dentre estas, uma das mais relevantes para o debate ambiental é a lei das crises cíclicas.
Sabemos que movimento da economia capitalista se desenvolve em ciclos: expansão, estagnação, recessão e crise. Em períodos de expansão econômica as empresas e a sociedade em geral podem adotar medidas de proteção ao meio ambiente sem prejuízos às taxas de lucro. Mas, em momentos de retração e crise essa preocupação tende a desaparecer na mesma medida em que surgirem choques entre os interesses do capital e a preservação do meio ambiente. Há, portanto, uma necessidade intrínseca ao capital de manter ou elevar a taxa de lucro em períodos de crise econômica que conduz necessariamente a intensificação do consumo predatório dos recursos naturais.
E isso se agrava se pensarmos, junto com Mészáros, que desde os anos 1970 o capital passa por uma crise estrutural. Isso implica que expansões e crises periódicas representam, agora, movimentos internos de um fenômeno de maior alcance, cuja trajetória é sempre declinante.
Esta crise estrutural caracteriza-se, então, pelo seu caráter universal, seu âmbito global e sua forma permanente. Assim, todas as esferas da existência humana são afetadas. A vida cotidiana torna-se a cada ano mais instável, insegura e estranhada. Nesse contexto, é mais difícil que o capital se empenhe em ações de preservação ambiental, tendo em vista que sua própria existência está em risco.
A realidade nos mostra, ainda, que as tentativas (em períodos de crise) de elevar ou manter os lucros, mesmo tendo que pagar o preço da degradação ambiental, não é resultado apenas de escolhas subjetivas, de vontades individuais. Não é simplesmente por causa da ganância de alguns empresários ou da incapacidade de gestão de certos indivíduos que o meio ambiente vem sendo devastado de forma assustadora nos últimos trinta anos. Em outras palavras, o problema fundamental não está meramente no campo dos valores morais, políticos ou de gerenciamento.
Já os meios de comunicação e a academia colocam a questão, na maioria das vezes, como uma falha na administração da economia. E, desta maneira, bastaria que fossem corrigidas tais falhas para que os problemas ambientais fossem igualmente resolvidos. Mas, em nenhum momento a própria possibilidade de conciliação entre a lógica imanente do sistema capitalista e o desenvolvimento econômico ecologicamente sustentável é questionada.
Quando se entende os problemas ambientais em termos subjetivistas é possível buscar saídas e propostas para amenizá-los no interior da própria sociedade capitalista.
Acreditamos, por outro lado, que as respostas aos desafios socioambientais não devem ser buscadas somente no âmbito da subjetividade (ou seja, da vontade). Pensamos que as análises e reflexões a respeito da crise ambiental devem ser deslocadas da centralidade da subjetividade para a centralidade dialética da objetividade. Assim, o ponto de partida para a análise dessas questões deve ser a objetividade social, que tem em sua base as relações econômicas e não a subjetividade plasmada em questões éticas e/ou políticas.
Por isso, é importante apontar que a crise não é ambiental. A crise é da sociedade estruturada em relações sociais capitalistas que, por sua vez, repercute na esfera do mundo natural. O problema está em uma determinada forma de regular o metabolismo entre homem e natureza. Não é, repetimos, um problema moral, político, ou de consciência.
Disso tudo, inferimos que não há luta pela defesa do meio ambiente que não seja, ao mesmo tempo, uma luta pela superação do capitalismo e uma luta pelo socialismo.
Para que serve o discurso do envelhecimento da população?
Artur Bispo dos Santos Neto
Após uma década pautada pela privatização das estatais brasileiras, adentra-se no novo século sob o auspicio da hegemônica afirmação ideológica da necessidade de contrarreformas substanciais no sistema previdenciário. A pilhagem das estatais brasileiras permitiu, de um lado, a ascensão meteórica de figuras apáticas da economia nacional nos mais elevados estratos dos homens mais ricos do mundo, e, do outro, tornou ainda mais dramática a existência da classe trabalhadora, à medida que se passou a negociar a necessidade de preservação dos empregos e a abdicar das conquistas alcançadas nas décadas passadas.
Entre as ideologias apresentadas, nenhuma ganhou mais notoriedade e caráter de naturalização que a ideologia do envelhecimento precoce da população brasileira como condição fundamental de justificação da contrarreforma da previdência social. A manifestação de dados empíricos comprovando o crescimento da população idosa (acima dos 60 anos) transformou-se numa arma fundamental para dobrar os movimentos sociais resistentes às contrarreformas indispensáveis ao novo padrão da acumulação flexível.
A projeção conjectural de crescimento das taxas de envelhecimento da população nas próximas quatro décadas, passando da projeção de 20 milhões (2010) para 50 milhões (2050), consiste numa uma afirmação neomalthusiana com o propósito específico de mudar as regras da previdência social. O problema é que o reconhecimento das projeções equivocadas, pelos ideólogos do sistema do capital, não será seguido de medidas reparadoras, pelo contrário, ele será reiterado por novas abordagens apressadas da contingência histórica para se apropriar ainda mais da mais-valia operária. A argumentação do crescimento da população idosa tem semelhança com a estúpida discussão em torno da quadratura do círculo, em que o círculo não pode sair dos limites estabelecidos.
Parece claro que medidas corretivas são incapazes de alterar substancialmente o edifício estrutural do sistema do capital, já que somente num contexto de mudanças estruturais é possível garantir o prolongamento do tempo de vida da população. As tonalidades cinzentas dos discursos cataclísmicos dos ideólogos do capital acerca do crescimento da população, nas variantes antigas e modernas, apresentam-se como urgentes e inadiáveis exatamente porque não passam de afirmações dogmáticas carentes de substancialidade e articulação efetiva com o desenvolvimento dinâmico da totalidade social. No caso brasileiro, o que realmente importa é que o discurso pseudocientífico do crescimento demográfico exerça imprescindível papel no processo de efetivação das contrarreformas no sistema da previdência social e neutralize consistentemente o potencial de resistência da classe trabalhadora.
É mister considerar que o discurso do envelhecimento populacional cumpriu papel nodal para a efetivação tanto da contrarreforma encetada pelo Governo FHC (1998) quanto da contrarreforma promovida pelo Governo Lula (2003). Essas contrarreformas encontraram seu coroamento na aprovação da Funpresp (Fundação de Previdência Complementar do Servidor Público Federal), que acabou com a aposentadoria integral dos servidores públicos e estabeleceu o teto do INSS para os referidos trabalhadores. Com isso se repassa para o setor privado o direito de controle duma parte substancial da riqueza produzida pelos trabalhadores, de forma que a seguridade social deixa de constituir-se como direito para assumir declarado caráter de investimento financeiro e mercadológico.
No prazo de oito meses (agosto de 2003), o governo Lula conseguiu aprovar a segunda reforma da previdência, com a qual se extinguiu o direito dos servidores públicos à aposentadoria integral, a paridade entre os reajustes dos servidores ativos e inativos, estabelecendo-se o teto para o valor dos benefícios aos servidores (novos ingressantes) equivalente ao do RGPS (Regime Geral da Previdência Social), a taxação dos servidores inativos e dos pensionistas etc. Assim, os aposentados passaram a ter seus salários reduzidos numa etapa da vida em que mais careciam de recursos financeiros para cuidar de sua saúde.
É importante destacar que qualquer perspectiva de crescimento da população idosa não pode desconsiderar o crescimento substancial da miséria e da pobreza, que ultrapassam os índices de 2,4 bilhões de pessoas no mundo, ou seja, assolam um terço da humanidade. Os cínicos ideólogos do capital precisam esclarecer a paradoxal combinação de longevidade da vida com desemprego e baixos salários, pois o desenvolvimento da sociedade capitalista revela exatamente o contrário, isto é, que existe uma relação intrínseca entre acumulação de riqueza e acumulação de pobreza, acumulação de capital e expropriação do tempo de trabalho dos trabalhadores, pobreza e encurtamento da vida. Torna-se difícil acreditar nas perspectivas otimistas de longevidade das pessoas, quando se aprofundam os problemas estruturais e são alteradas as regras da aposentadoria, para que assim os trabalhadores se vejam condenados a morrer trabalhando e os capitalistas transformem o sistema previdenciário numa fonte inesgotável de lucro.
Os dados apresentados servem para apontar o desafio que é posto à classe trabalhadora no campo do crescimento demográfico. Essa luta deve ser operada em duas frentes. A primeira, contra a ideologia da manipulação dos dados acerca do crescimento da população idosa, em que as contrarreformas na previdência social são seguidas de interpretações subliminares que concebem os velhos como ameaça permanente ao sistema produtivo e não como seres humanos que precisam de cuidados após dedicação exclusiva ao trabalho assalariado. Segundo, que além de querer prolongar o tempo da aposentadoria e penalizar os idosos, o sistema retira dos jovens a possibilidade de trabalho e vida decente, abreviando seu tempo de existência mediante práticas coercitivas e violentas.
Parece evidente que uma análise séria sobre as taxas de crescimento da população idosa deve ressaltar o genocídio de jovens que acontece no país, bem como que as absurdas perspectivas de crescimento populacional hão de ser seguidas também de absurdas taxas de crescimento nas taxas sociais de homicídios na população jovem (além do aumento da população carcerária), certamente bem acima das taxas de crescimento populacional. No presente momento, não é possível separar o crescimento das taxas de uma geração sem considerar as causas da queda de crescimento da outra geração, uma vez que elas estão conectadas. O crescimento da taxa da população idosa deve considerar, de um lado, o genocídio dos jovens, e do outro, a crise social que acomete a população idosa e que certamente irá se aprofundar com as contrarreformas da previdência social, já que elas tornam mais difícil a vida dos trabalhadores acima dos 60 anos. Finalmente, é preciso esclarecer os subterfúgios das classes dominantes e apresentar respostas que superem as idiossincrasias ideológicas que exprimem a necessidade de contrarreformas, de um lado, e a necessidade de mais investimento na segurança pública, do outro. Faz-se necessário reconhecer que todas as mudanças apresentadas pela burguesia e pelo Estado burguês não passam de manobras para perpetuar tão somente o tempo de existência do capital em contraposição à existência efetiva dos seres humanos.