A determinação ontológica das categorias em Hegel e Marx segundo Lukács
23 de abril de 2013
Este texto é uma contribuição individual, não necessariamente expressa a opinião da organização e por este motivo se apresenta assinado por seu autor.
Artur Bispo dos Santos Neto
Professor da UFAL
Resumo: O presente texto tem como objetivo esclarecer a natureza ontológica das categorias na teoria marxiana e como esta tem seu ponto de inflexão na consideração hegeliana das categorias, expressa na Ciência da lógica. Na teoria marxiana, as categorias comparecem como formas moventes e movidas da realidade, contrapondo-se às concepções que tentam erigir os preceitos meramente gnosiológicos como critérios fundamentais de constituição das matrizes categoriais. Apesar das insuficiências do primado hierárquico das determinações lógicas sobre as determinações ontológicas que perpassam a perspectiva hegeliana, é relevante destacar como essa perspectiva se apresenta como a primeira tentativa de constituição dum tratamento correto das categorias, o que lhe confere o posto de descobridora de territórios ainda não explorados e somente levados a sua pertinente elucidação pela mediação da dialética materialista. Nesta, é pertinente observar a relação reflexiva existente entre as categorias simples e as categorias complexas.
Palavras-chave: Determinações reflexivas. Realidade. Trabalho. G. Lukács.
Abstract: The present text has as objective clarify the ontological nature of the categories in the Marx’s theory and how this has its support in Hegel’s considerations in the categories expressed in Science of logic. In Marx’s theory, the categories stand as the moving and moved forms of reality, it opposed to the conceptions that try to raise the merely gnosiologic precepts as fundamental criterions of constitutions of the categorical matrixes. Besides the insufficiencies of the hierarchical primacy of the logical determinations upon the ontological determinations that spervades the Hegelian perspective, it is elementary highlight how this perspective the first attempt to formulate a correct treatment of the categories, what confers it the position of discoverer of territories not yet explored and only pertinently elucidated by the mediation of the materialist dialectical. For this, it is pertinent to observe the reflexive relation existing between the simple categories and the complex categories, and how the class struggle appears as the fundamental category to the explanation of the population’s abstract category.
Keywords: Reflexive determinations. Reality. Labour. G. Lukács.
Introdução
A crise que acomete as diferentes concepções filosóficas produzidas pela burguesia na contemporaneidade resulta expressamente do abandono do interesse na elucidação das determinações fundamentais que envolvem a realidade social, enquanto um complexo de complexos; nesse sentido, elas expressam a ideologia de um tempo histórico pautado pelo fim das ilusões heroicas da burguesia e de uma declarada contraposição à possibilidade de revelação da essencialidade das coisas. Resguardadas as suas devidas diferenciações e contraposições, é possível afirmar que a concepção hegeliana e a concepção marxiana se constituem como tentativas modais de esclarecimento das contradições que perpassam a realidade.
O idealismo objetivo de Hegel e a teoria marxiana partem do entendimento de que é necessário ultrapassar a percepção imediata da vida cotidiana, que se manifesta de maneira bastante multifacetada e heterogênea, para se alcançar a essencialidade das coisas; para isso é fundamental superar tanto o terreno das idiossincrasias que emanam da percepção imediata quanto do conhecimento resultante duma representação caótica do todo. Isso não implica uma desconsideração pela vida cotidiana, porque ela constitui-se como o celeiro de onde emanam as questões decisivas que perpassam a investigação científica e filosófica (LUKÁCS, 1966).
Nosso propósito nas linhas que seguem é denotar o caráter objetivo das categorias no idealismo objetivo e na teoria marxiana, deixando de lado a vacuidade das posições que concebem as categorias como entidades que subsistem de forma independente às determinações objetivas. Embora a filosofia hegeliana se movimente sobre um terreno bastante movediço, porque não consegue se desprender do processo de mistificação da realidade que envolveu as concepções filosóficas precedentes. Observa-se que, pertinentemente, ela considera as categorias como dotadas de determinantes ontológicos , ou seja, elas não se constituem como meras expressões do sujeito cognoscente, mas brotam do desenvolvimento do ser social. Na perspectiva lukacsiana, a ontologia marxiana está interessada em elucidar a gênese e o desenvolvimento dialético do ser social, enquanto ser que se constitui historicamente, e não como um ser que brota pronto e acabado. As categorias, como os homens, são produtos das relações sociais e do desenvolvimento dos meios fundamentais de produção e reprodução da existência humana.
A teoria marxiana representa um avanço na compreensão das categorias, quando entende que as categorias se constituem como enunciados diretos de uma forma específica do ser e como “afirmações ontológicas” (LUKÁCS, 1979b, p. 11). Elas emergem como “formas de ser, determinações de existência” (MARX, 2011, p. 59). A determinação (Bestimmung) deve ser compreendida como um traço essencial da realidade . A totalidade social, enquanto um complexo de múltiplas determinações, pressupõe um processo de isolamento ou abstração em que a determinação aparece como elemento essencial no movimento de apreensão da natureza constitutiva do ser. E todo processo de determinação é uma negação , à proporção que significa um adentrar nas malhas mais profundas do ser para apresentar sua verdadeira constituição interior, isso implica operar processos de distinção, captação e caracterização daquilo que subsiste como de mais específico. Por sua vez, é preciso estabelecer a conexão da parte estudada com o todo, para que este possa emergir como um todo concreto e não como uma coisa caótica. Essa perspectiva tem sua gênese na filosofia hegeliana, enquanto concepção que estabelece as bases para uma nova compreensão das questões ontológicas, à proporção que afirma as categorias como dotadas de uma realidade essencialmente dinâmica e perpassadas pela relação dialética entre unidade e multiplicidade, conteúdo e forma, aparência e essência etc.. Nesse sentido, a substância não emerge como algo estático, mas como um sujeito essencialmente dinâmico . Vejamos como G. Lukács reconstrói essas questões nas obras de G. W. F. Hegel e Karl Marx.
1 O problema da determinação hegeliana das categorias
Hegel trata da natureza das categorias no prefácio à segunda edição da Ciência da lógica, em que afirma que num sistema de lógica as categorias devem encontrar seu espaço de consideração e esclarecimento. A elucidação da natureza das categorias pressupõe a limpeza de terreno da peculiaridade da ciência da lógica, que ele considerava como bastante descuidada em sua época; por isso defende a necessidade de sua reelaboração, haja vista que esta não havia avançado um passo sequer desde a época de Aristóteles. A ausência de modificações substanciais e o distanciamento da vida efetiva dos homens conduziram a lógica ao estado de desprezo geral. Escreve Hegel:
Para vivificar, mediante o espírito, este esqueleto morto da lógica até dar-lhe substância e conteúdo, é necessário que seu método seja tal que só por meio dele a lógica seja capaz de constituir uma ciência pura. No estado em que se encontra a lógica, apenas se reconhecem nela indícios do método científico (1982, § 70).
Hegel entende que a lógica não é uma coisa extemporânea ao movimento que perpassa o tempo histórico. Apesar de Aristóteles compreender a lógica como inteiramente independente do preceito pragmático da utilidade, ele considerava que a ciência (metafísica) somente poderia florescer numa época em que um grupo de homens alcançasse “quase todo o necessário” (HEGEL, 1982, § 44), ou seja, as ciências, como a matemática, apenas puderam se desenvolver precocemente no Egito “porque ali a casta dos sacerdotes se encontrou pronta, em condições de ter tempo livre” (ARISTÓTELES, apud HEGEL, 1982, § 44).
A perspectiva hegeliana se contrapõe à desconsideração da articulação existente entre o desenvolvimento das categorias e o desenvolvimento da realidade. Hegel esclarece o caráter histórico do afastamento do pensamento em relação ao mundo nos seguintes termos: “Nas silenciosas regiões do pensamento que voltou a si mesmo e só existe em si mesmo, calam-se os interesses que orientam a vida dos povos e dos indivíduos” (HEGEL, 1982, § 45). Ele entende que é na vida cotidiana que se aplicam as categorias lógicas e matemáticas e que estas comparecem como abreviaturas da realidade, devido ao seu caráter de abrangência e universalidade. As categorias também servem como determinações mais precisas de relações objetivas, em que o conteúdo de verdade do pensamento “aparece como inteiramente dependentes do existente mesmo, sem atribuir às determinações do pensamento em-si influência alguma determinante do conteúdo” (HEGEL, 1982, § 46).
A lógica não é uma coisa distante do mundo – não é algo que paira no céu da subjetividade destituída de qualquer objetividade –; basta observar o cotidiano para perceber que a linguagem humana presume sua existência. A lógica, por exemplo, está presente na maneira como os homens sentem, consideram e desejam as coisas; pode-se dizer que está presente na vida quando também proporciona representações e finalidades. E como consegue adentrar em todas as relações e atividades naturais de maneira abstrata, o lógico parece ser uma coisa sobrenatural e distante da realidade, quando na verdade é tão somente uma abstração universal peculiar ao modo de ser da própria ciência (HEGEL, 1982).
A linguagem humana é perpassada por uma série de expressões lógicas que servem para apontar as determinações do pensamento (HEGEL, 1982). Indubitavelmente, tais expressões se inscrevem no âmbito da particularidade e das sensações que compõem a linguagem cotidiana. E o cotidiano utiliza geralmente as categorias sem ter plena consciência de sua natureza. Nesse aspecto se inscreve certa consonância com a tradição marxiana, pois as categorias podem exercer influência sobre o mundo dos homens antes mesmo de serem apropriadas conscientemente pelo ser humano. Segundo Lukács: “Independentemente de os homens terem ou não consciência do fato (na maioria dos casos não têm), isso significa ao mesmo tempo um efeito das categorias sobre as atividades, tomadas no sentido mais amplo, da vida social dos homens” (2010, p. 271).
Para a tradição marxiana, a consciência das categorias vem sempre post festum, pois os homens fazem ciência pela mediação do trabalho, sem saber que estão fazendo ciência propriamente dita; da mesma forma que se faziam operações matemáticas antes de se desenvolver uma consciência das categorias matemáticas − por exemplo, quando uma comunidade nômade, formada de pastores, conseguia identificar a quantidade de ovelhas de seu rebanho simplesmente pela especificidade ou qualidade de cada uma delas. No trabalho está contido um pôr teleológico que presume um apreender corretamente as determinações da natureza da mesma maneira que a ciência, sob pena de sua ação ser acometida pelo fracasso. Escreve Lukács: “A própria práxis impõe determinadas generalizações, ainda que somente dentro de determinados limites” (2010, p. 272). As categorias podem se tornar operantes bem antes de serem reconhecidas na práxis social ou bem antes de serem reconhecidas teoricamente. É o caso da personagem de Molière, bourgeois gentilhomme, que falou o tempo todo em prosa sem ter consciência disso . O que denota que no âmbito da história geralmente vigora o preceito de que os homens fazem as coisas sem que tenham consciência do que fazem, no entanto, eles fazem. Isso significa que o ser enquanto tal não é uma produção do pensamento como formulam Descartes e a tradição idealista. E essa não é uma afirmação de natureza hierárquica, que pretenda simplesmente apontar a superioridade do ser sobre a consciência, pois não se trata de uma questão lógica ou gnosiológica, mas de uma determinação objetiva. É o próprio movimento efetivo da realidade que mostra como a consciência vem depois do desenvolvimento do ser social.
Na Fenomenologia do espírito, Hegel afirma que “toda novidade apresenta-se inicialmente como abstrato (simplesmente em-si), para depois explicitar-se gradualmente em formas mais concretas” (apud LUKÁCS, 1979a, p. 89). O ser para-si somente é possível a partir do ser em-si, ou seja, as formas superiores do ser passam pela mediação das formas mais simples de ser. Na perspectiva hegeliana, a gênese processual da realidade fornece a chave para a compreensão de todo “resultado”; por exemplo, o absoluto é um processo de síntese concreta de movimentos reais, é identidade da identidade e não identidade. Ele não repousa numa imobilidade transcendente indiferente ao movimento efetivo da realidade, mas se constitui como quintessência das diferenciações que perpassam o mundo efetivo.
O mérito da Fenomenologia do espírito consiste em apontar que as categorias surgem na consciência dos homens enquanto expressões das determinações do modo de ser da própria processualidade das coisas. Por isso que não é nada casual que Hegel na sua Ciência da lógica trate das determinações reflexivas numa seção denominada também de “fenomenologia”. À primeira vista, tudo parece mover-se no terreno da gnosiologia, particularmente porque Hegel tenta mostrar como a razão (Vernuft) supera o entendimento (Verstand); pois enquanto esta se plasma na disjunção entre universalidade e particularidade, existe uma relação dialética entre as diferentes categorias no âmbito da razão (Vernuft). Porém, em vez de simplesmente contrapor razão e entendimento, Hegel revela como a razão emerge do próprio desenvolvimento do entendimento, constituindo-se como seu lugar de realização. Acontece então uma vinculação dialética entre as referidas categorias, o que não implica uma negação da singularidade que perpassa cada uma delas, pois a razão representa uma inexorável capacidade de manifestar outra forma de consideração da realidade, mas que sem o auxílio do entendimento jamais teria ganhado existência.
A lógica hegeliana supera a lógica transcendental kantiana , porque não se move no dualismo entre sujeito e objeto, muito menos padece da simples consideração finita e limitada do conhecimento das coisas. Nela, o pensamento deve superar as idiossincrasias das determinações da finitude operadas pelo entendimento para lograr o terreno da infinitude da razão e assim adentrar na esfera do conceito, enquanto articulação entre finitude e infinitude. A interação dialética entre entendimento e razão serve de prelúdio à compreensão hegeliana da realidade, enquanto uma totalidade dinâmica e contraditória. Realidade que os preceitos gnosiológicos dos séculos anteriores se mostraram incapazes de apreender (LUKÁCS, 1979a). Isso significa que o idealismo hegeliano considera que a essência das coisas emana do próprio desenvolvimento do ser e não simplesmente da cabeça do sujeito, como postula Kant.
O tratamento adequado da propriedade essencial das coisas presume o adentrar no reino íntimo das categorias. É nesse espaço que é possível falar da essência das coisas, porque o conceito das coisas somente pode ser logrado na esfera do pensamento. Por sua vez, não é possível afirmar as categorias como uma propriedade do sujeito, pois este não detém a propriedade conceitual das coisas. O que o sujeito realiza, pela mediação da ciência, é tão somente descobrir a lógica imanente das coisas. O conceito das coisas emana da própria essencialidade, não sendo produto de uma subjetividade transcendental centrada em-si mesma. Hegel destaca que “não podemos sobrepor a ele e tampouco podemos ultrapassar a natureza das coisas” (1982, § 47). Na perspectiva hegeliana, a atividade do pensamento comparece como força movente que “entretece todas as nossas representações, nossos fins, interesses e ações; atua, como se disse, inconscientemente (e a lógica natural); o que nossa consciência tem diante de si é o conteúdo, os objetos das representações, aquilo que preenche nosso interesse” (1982, § 48). Ele entende ainda que “as determinações do pensamento valem como formas, que estão no conteúdo, ainda que não seja o conteúdo mesmo” (HEGEL, 1982, § 48). A atividade mais elevada da ciência da lógica é libertar as categorias de uma perspectiva meramente instintiva ou fragmentada e ressaltar que o conhecimento em-si constitui-se como determinação fundamental da realidade do espírito.
Nesse contexto é que se podem compreender as categorias da identidade e da diferença. No entendimento de Lukács (1979a), essas expressões categoriais não são construtos do sujeito cognoscente, mas pertencem à própria materialidade da realidade, ou seja, o preceito da identidade (Eu=Eu) não pertence simplesmente à lógica formal, mas à objetividade em-si da coisa. A afirmação e a negação da identidade constituem-se como elementos que são imanentes à ordem do ser e não procedem da cabeça do sujeito do conhecimento. A identidade não emana de fora das coisas, mas da própria processualidade do mundo. A identidade “é uma propriedade objetiva” (LUKÁCS, 1979a, p. 86). Identidade e diferença resultam da processualidade da própria objetividade, que é perpassada pelo jogo de forças e pela ação recíproca de seus componentes. É a própria dinâmica do ser que aponta para um movimento de interação e oposição, afirmação e negação dos componentes categoriais. A lei do devir se patenteia em toda a estrutura do objeto, e a tarefa do pensamento é apenas se apropriar da razão imanente que perpassa as malhas processuais da realidade. O tornar-se outro é expressão de mudanças capilares que acontecem na própria constituição do ser objetivo.
Hegel recusa ainda qualquer formulação hipostasiante que compreenda os conceitos como puras formas separadas do conteúdo e ergue-se contra “a esterilidade das categorias puramente formais” (HEGEL, 1982, § 50). O conteúdo separado da forma é vazio, pois o conteúdo não pode existir sem forma e a forma não pode existir sem conteúdo, como pretende a lógica tradicional. A forma tem a incumbência de oferecer uma manifestação fenomênica ao conteúdo. Explica assim a implicação dessa consideração dialética: “Ao introduzir deste modo o conteúdo na investigação lógica, não são as coisas senão o essencial, o conceito das coisas, o que se converte no objetivo final” (HEGEL, 1982, § 51). O conceito é o pensamento como universal, ele é a “incomensurável abreviação diante da singularidade dos objetos, tais como se apresentam em grande número à intuição e à representação indeterminadas” (HEGEL, 1982, § 51). Na Enciclopédia das Ciências Filosóficas (ECF, 1817), Hegel afirma que o conceito tem suprassumido em si “todas as determinações anteriores do pensar” (ECF, § 160, adendo). O conceito é determinado na relação objetiva de diferenciação e contraste com outras coisas. A relação de determinação com a negatividade serve de preâmbulo para a compreensão da distinção existente entre a natureza ontológica ou intrínseca de uma coisa e sua qualidade exterior. É sua capacidade de articulação com outras formas do ser que permite a elucidação das determinações reflexivas que se constitui como força subjacente do conceito.
A relação que perpassa as determinações reflexivas não se circunscreve somente à segunda parte da Ciência da lógica, pois também é possível observar sua presença na primeira parte desta obra, quando Hegel trata da relação entre qualidade e quantidade. Essas são formas do ser que num determinado momento entram numa relação de reciprocidade. A determinação quantitativa de todo objeto está em “relação de simultaneidade com a natureza qualitativa deste” (LUKÁCS, 1979a, p. 103). É apenas pela abstração do pensamento que quantidade e qualidade aparecem como cindidas, mas na efetividade elas aparecem sempre articuladas. A separação entre qualidade e quantidade é produto do pensamento que abstrai a realidade para apreendê-la, e muitas das vezes essa separação acaba se conduzindo à mistificação da realidade. A sua separação não deixa também de expressar o lento e progressivo desenvolvimento da humanidade no sentido de elucidar o movimento dos objetos de maneira categorial; não se trata apenas de um estágio do entendimento na direção da razão, como afirma Hegel (LUKÁCS, 1979a).
Ainda é possível observar a presença das determinações reflexivas na terceira e última parte da Ciência da lógica, especificamente quando aponta o conceito como movimento dialético de singularidade, particularidade e universalidade. Para Lukács, o caminho do conhecimento “vai certamente – por meio do abstrato – do ser abstrato à essência mais concreta, enquanto na realidade, porém, a essência mais concreta e complexa constitui o ponto de partida ontológico, do qual se pode obter através da abstração o conceito do ser, que é, também ele, primariamente ontológico” (1979a, p. 81-82). No entanto, o conceito acaba padecendo de equívocos quando Hegel tenta fazer brotar de sua natureza os momentos precedentes da essência e do ser . Lukács (1979a, p. 101) entende que não dá para sustentar a tese hegeliana de que o conceito emana em-si do movimento da essência e do ser, pois os aspectos lógicos acabam desconsiderando os aspectos ontológicos, ou seja, contrapondo-se ao movimento das determinações reflexivas, em que as categorias brotam da própria processualidade do mundo objetivo. O ser para-outro e o ser para-si não brotam, nesse caso, das determinações de um mesmo processo. Para Lukács (1979a), o conceito, como o que existe de mais elevado, é fruto da tentativa de constituição da identidade sujeito-objeto e não do desenvolvimento processual do ser e da essência. Isso resulta do fato de a filosofia hegeliana conceber as determinações do pensamento como o conteúdo da suprema verdade da lógica, em que o pensamento é o sujeito e o objeto dele mesmo. Escreve Hegel: “as determinações do pensamento têm em si mesmo valor e existência objetivas” (HEGEL, 1982, § 67). Eis o cerne que impede a filosofia hegeliana de avançar no entendimento efetivo da realidade.
Para Marx, é impossível alcançar a efetividade do ser mediante a mera reversão ideal de um processo de abstração que tem o seu ponto de partida num conceito logicamente esvaziado de determinação ontológica. Não é pela mediação do movimento do pensar consigo mesmo que se chegará à objetividade da lógica, pois um ser que tem o seu ponto de partida no reino do abstrato e não no mundo concreto constitui-se como uma abstração carente de determinação (LUKÁCS, 1979a). Um ser privado de determinação (indeterminado) não passa de uma construção do pensamento . Marx destaca que não é possível alcançar a essencialidade das coisas e dos homens se afastando progressivamente de seu movimento ontológico, abstraindo do movimento processual “todos os seus pretensos acidentes, animados ou inanimados” (MARX, 1982, p. 103).
O problema da perspectiva logicista é que ela se afasta das determinações efetivas da processualidade do ser social para pairar de maneira absoluta no reino da ideia, em que o pensamento aparece como autodeterminação de si mesmo. Os preceitos lógicos pretendem desenvolver um entendimento de que a verdadeira apreensão da essencialidade das coisas passa pelo distanciamento, pois é através do afastamento que se torna possível penetrá-las com a consistência da ciência da lógica. Desse modo, “estes metafísicos têm, por sua vez, razão de dizer que as coisas aqui da terra são bordados, cujo pano de fundo é constituído pelas categorias lógicas” (MARX, 1982, p. 103-104). Os preceitos hegelianos acabam conferindo uma força descomunal ao poder de abstração, e assim se acredita poder reduzir todas as coisas que existem sobre a terra à condição de categoria lógica . Escreve Marx: “deste modo, todo mundo real passa a submergir no mundo das abstrações, no mundo das categorias lógicas – quem se espantará com isto” (1982, p. 104). Através da regressão abstrata torna-se possível subverter todo o reino da realidade objetiva existente à condição de categorias lógicas e nestas encontrar a substancialidade da totalidade do existente, em que o método absoluto de Hegel pode “tanto explicar todas as coisas como implicar, ainda, o movimento delas” (MARX, 1982, p. 104). Eis a inusitada tentativa de afirmar na abstração da ideia a síntese da realidade e do conceito, em que a razão reencontra-se em si mesma e reconhece-se em todas as coisas.
Reconstituindo o que foi apontado acima, pode-se dizer que apesar das abstrações “nada razoáveis” da primeira parte da Ciência da lógica, o representante do idealismo objetivo parece alcançar o desenvolvimento efetivo do ser na segunda etapa da referida obra, quando trata das determinações reflexivas no momento da essência, mas retorna às posições mistificadas na terceira parte, quando pretende fazer da “ideia” o que existe de mais elevado, ou seja, síntese do conceito e da realidade. Este é o problema de não levar às últimas consequências as determinações objetivas das categorias e erigir a “ideia” como momento predominante. É por isso que Hegel concebe “O que é racional é real e o que é real é racional” (HEGEL, 1997, p. 35), ou seja, é a consciência que, em última instância, acaba determinando a realidade, e esta se circunscreve à miserável condição de determinação do pensamento. A tentativa hegeliana de constituição de uma nova fundamentação filosófica acaba consistindo apenas numa nova roupagem de reprodução da velha perspectiva fundada na predominância da consciência sobre o ser, à proporção que o absoluto aparece como um processo de síntese em que todas as diferenciações são suprassumidas no nível especulativo da autoconsciência ou do espírito certo de si mesmo . Por esse motivo a determinação ontológica das categorias não pode ser levada às suas últimas consequências, e somente com Marx elas poderão comparecer verdadeiramente como determinações processuais da realidade e não como meras determinações lógicas. É tão somente a dialética materialista que poderá levar às últimas consequências as formulações de natureza objetiva da anatomia das categorias postuladas por Hegel, porque o ponto de partida da teoria marxiana é a realidade material e não os preceitos lógicos.
2 Categorias simples e categorias complexas em Karl Marx
É fundamental destacar que inexiste em Marx qualquer pretensão de encontrar o caminho da unidade lógica entre sujeito e objeto ou entre a ordem do ser e a ordem do pensamento, como em Hegel. A constituição duma teoria do conhecimento ou de “ciência da lógica” se inscreve como totalmente antípoda à perspectiva marxiana. A preocupação fundamental da teoria marxiana é ontológica e não meramente gnosiológica , ou seja, ela não tem como propósito esclarecer o processo de constituição do pensamento em si mesmo, mas tão somente quando este emana das determinações objetivas. As categorias de que trata Marx são categorias que brotam das relações sociais e não da mera especulação logicista. Por sua vez, a investigação da natureza do ser social não pode ser empreendida com os recursos das ciências naturais, que são ontologicamente limitados para esclarecer a anatomia das sociedades de classes e a peculiaridade das relações sociais que perpassam a sociedade capitalista, bem como se mostram insuficientes para elucidar a forma trabalho e suas decorrentes categorias. No prefácio da primeira edição alemã de O capital escreve Marx:
o corpo desenvolvido é mais fácil de estudar do que a célula do corpo. Além disso, na análise das formas econômicas não podem servir nem o microscópio nem reagentes químicos. A faculdade de abstrair deve substituir ambos. Para a sociedade burguesa, a forma celular da economia é a forma de mercadoria do produto do trabalho ou a forma do valor da mercadoria. Para o leigo, a análise parece perder-se em pedantismo. Trata-se, efetivamente, de pedantismo, mas daquele de que se ocupa a anatomia microscópica (1985, p. 12).
As categorias modais que realmente vão despertar o interesse do pensamento marxiano são aquelas que brotam do universo econômico. Ele não considera as categorias como uma dádiva da consciência ao ser, mas como um produto do desenvolvimento do ser social. Anota Marx (1982, p. 102-103):
Mas, a partir do momento em que não se persegue o movimento histórico das relações de produção, de que as categorias são apenas a expressão teórica, a partir do momento em que se quer ver nestas categorias somente ideias, pensamentos espontâneos, independentes das relações reais, a partir de então se é forçado a considerar o movimento da razão pura como a origem desses pensamentos.
As categorias não são frutos de uma produção a priori, mas produtos de um longo desenvolvimento processual do ser social. As formulações categoriais são predicações sociais mediadas pelos sujeitos que fazem parte de uma dada forma de sociabilidade. As categorias são tanto dadas no cérebro quanto na realidade. É preciso não esquecer que as categorias, como assinala Marx (1983, p. 57), expressam “formas de ser, determinações de existência” [Kategorien daher Daseinsformen, Existenzbestimmungen]. Diferentemente do que afirmam os preceitos gnosiológicos e logicistas, a consciência vai se pondo como uma tarefa importante no curso do desenvolvimento do ser social à proporção que o indivíduo vai afastando concretamente as barreiras naturais e superando o mutismo que domina a Natureza. A economia política não conseguiu tratar devidamente das categorias porque acabou se limitando à análise das categorias mais abstratas e desconsiderando as pertinentes mediações que existem entre as categorias concretas e as categorias mais simples. Conforme Marx (1982, p. 102): “Os economistas exprimem as relações da produção burguesa, a divisão do trabalho, o crédito, a moeda etc. como categorias fixas, imutáveis, eternas”. Os economistas não explicam o movimento histórico que engendram as categorias econômicas, concebendo-as como isentas de historicidade e contraditoriedade. E Marx consegue operacionalizar essa interpretação porque se apropriou corretamente do método de investigação hegeliano, que concebe a realidade como eminentemente contraditória.
Marx considera que o método cientificamente correto das categorias deve considerar a relação ontológica existente entre as categorias simples ou abstratas e as categorias mais concretas. O concreto, afirma Marx (2011, p. 54), “aparece no pensamento como processo de síntese, como resultado, não como ponto de partida”. Embora possa estar contido no próprio ponto de partida, ele somente aparece claramente em seu ponto de chegada, mas como algo que está tanto no começo quanto no seu final; o problema é que a consciência somente pode emergir no resultado, pois é uma atividade post festum.
A realidade é uma totalidade formada de complexos mais simples e complexos mais complexos. Não existe paradoxo entre as categorias menos complexas (simples) e as categorias mais complexas (concretas), nem hierarquização na relação entre elas; pelo contrário, ocorre um processo de desenvolvimento combinado e desigual. As categorias somente emergem nas sociedades mais complexas, ou seja, nas sociedades mais desenvolvidas, porque pressupõe um longo desenvolvimento das forças produtivas e da subjetividade humana. As categorias mais complexas são aquelas que servem de esteio para a compreensão do desenvolvimento da história da humanidade, enquanto que as categorias mais simples têm caráter contingente e servem para explicar dado momento da história da humanidade. A propriedade, por exemplo, aparece como a relação mais simples da organização da sociedade de classes, mas a propriedade não se constitui como fundamento da sociedade primitiva, porque nela as relações mais simples são aquelas que aparecem como relação de associações entre famílias, clãs e tribos . A propriedade, como categoria simples ou simples relação, pressupõe a existência de uma categoria mais complexa como o trabalho. No entanto, “as categorias simples são expressões de relações nas quais o concreto ainda não desenvolvido pode ter se realizado sem ainda ter posto a conexão ou a relação mais multilateral que é mentalmente expressa nas categorias mais concretas; enquanto o concreto mais desenvolvido conserva essa mesma categoria como uma relação subordinada” (MARX, 2011, p. 56). Por outro lado, as categorias mais simples podem expressar “relações dominantes de um todo ainda não desenvolvido” (MARX, 2011, p. 56). As categorias mais simples também têm a sua complexidade e, por isso, precisam ser esclarecidas. O dinheiro, por exemplo, que precedeu historicamente o capital, os bancos e o trabalho assalariado, parece ser uma categoria que perpassa a existência de todas as sociedades; no entanto, uma análise mais detalhada revela que existiram sociedades bastante desenvolvidas, como as sociedades pré-colombianas e as antigas comunidades eslavas, que desconheceram o uso do dinheiro. Na sociedade romana, o dinheiro ficou circunscrito ao exército e não desempenhou papel predominante no reino da produção da vida material. O dinheiro, na verdade, ocupou papel episódico no interior das sociedades antigas, tendo existência mais significativa entre as nações comerciantes. Para Marx (2011, p. 56), “essa categoria muito simples aparece historicamente em sua intensidade nas condições mais desenvolvidas da sociedade”. A relação entre as categorias mais simples e as mais complexas não é regida pelo preceito simplesmente cronológico, em que o pensamento abstrato se eleva do mais simples ao mais complexo; sua relação é bem mais paradoxal. Escreve Marx (2011, p. 57):
Desse modo, muito embora possa ter existido historicamente antes da categoria mais concreta, a categoria mais simples, em seu pleno desenvolvimento intensivo e extensivo, pode pertencer precisamente a uma forma de sociedade combinada, enquanto a categoria mais concreta estava plenamente desenvolvida em uma forma de sociedade menos desenvolvida.
A complexidade que envolve a natureza das categorias comparece de maneira expressiva no trabalho. Anota Marx: “O trabalho parece uma categoria muito simples” (2011, p. 57). Porém, ele é tanto uma categoria “abstrata” quanto uma categoria concreta. Como valor de uso, o trabalho é uma categoria concreta, pois está relacionado ao metabolismo da sociedade com a natureza enquanto necessidade eterna dos homens. A possibilidade de entender o trabalho como uma categoria emerge com o desenvolvimento do modo de produção capitalista, que revelou a natureza abstrata do trabalho. E Adam Smith realizou um grande progresso quando considerou o trabalho como “a universalidade abstrata da atividade criadora de riqueza” (MARX, 2011, p. 57). Essa descoberta foi possível somente no tempo histórico em que o trabalho singular deixou de comparecer colado ao corpo do trabalhador e o trabalhador pôde passar de um oficio ao outro, de forma bastante distinta da época histórica das corporações medievais. Mas não é somente isso, senão sobretudo o fato de que o trabalho surge como categoria determinante do valor de troca no modo de produção capitalista, ou seja, o trabalho aparece como uma coisa abstrata, como “trabalho em geral” ou como “trabalho puro e simples” (MARX, 2011, p. 57).
O trabalho, enquanto substância do valor, constitui-se como a força de trabalho que age no processo de produção de mercadorias como uma coisa “simplesmente” quantitativa. Ele funciona como uma abstração universal destituída de sua substância corpórea e singular. A relação que o trabalhador estabelece com o capitalista é uma relação em que o trabalho emerge como “trabalho simplesmente” ou como “trabalho abstrato”, em que o valor de uso passa a ser regido pelo valor de troca. Ao vender sua força de trabalho como uma mercadoria se estabelece uma cisão monumental entre o trabalhador e o produto de seu trabalho. O trabalho é valor de uso para o capitalista e valor de troca para o trabalhador, mas somente é valor de uso para o capitalista à proporção em que é possível convertê-lo em valor de troca.
A consciência de que o trabalho se constitui como a categoria concreta somente pôde emergir do desenvolvimento do modo de produção capitalista em que se superam as idiossincrasias do trabalho em sua “determinabilidade criadora de riqueza” (MARX, 2011, p. 55), ou seja, da sua mera expressão prosaica como trabalho manufatureiro, trabalho agrícola e tantas outras manifestações singulares. Escreve Marx (2011, p. 57):
A indiferença diante de um determinado tipo de trabalho pressupõe uma totalidade muito desenvolvida de tipos efetivos de trabalho, nenhum dos quais predomina sobre os demais. Portanto, as abstrações mais gerais surgem unicamente com o desenvolvimento concreto mais rico, ali onde um aspecto aparece como comum a muitos, comum a todos.
E essa forma indiferente aos aspectos contingentes e imediatos do trabalho se configura na forma trabalho abstrato. Isso somente foi possível com o desenvolvimento das relações de produção capitalista. Este desenvolvimento permitiu compreender tanto o trabalho como valor de uso quanto o trabalho como valor de troca. Embora o trabalho como valor de uso seja uma universalidade concreta que perpassa a história de todas as sociedades precedentes, sua elucidação somente foi possível pela mediação do esclarecimento do trabalho em sua universalidade abstrata, quer dizer, numa sociedade mais desenvolvida. É por isso que a sociedade capitalista fornece a chave para elucidar as sociedades precedentes, porque ela guarda em seu interior vestígios – como um grão de sal – das sociedades precedentes. Embora o trabalho concreto como valor de uso estivesse no seu ponto de partida, ele somente pode aparecer claramente em seu ponto de chegada, como algo que está tanto no ponto de partida quanto no ponto de chegada.
O trabalho pode ser esclarecido como uma categoria complexa ou abstrata mediante o desenvolvimento da sociedade capitalista, pois essa forma de sociedade permite elucidar a natureza complexa do desenvolvimento do ser social, à proporção que a realidade se constitui visivelmente como expressão das determinações sociais. A abstração do trabalho em geral é produto do desenvolvimento das condições objetivas. Afirma Marx: “A abstração mais simples, que a Economia moderna coloca no primeiro plano e que exprime uma relação muito antiga e válida para todas as formas de sociedade, tal abstração só aparece verdadeira na prática como categoria da sociedade mais moderna” (2011, p. 58). A categoria mais simples pode vir antes de categoria mais concreta no seu processo de apreensão pela consciência; mas do ponto de vista ontológico o trabalho enquanto categoria concreta vem antes do trabalho abstrato. Escreve Marx (2011, p. 57): “… a categoria mais concreta estava plenamente desenvolvida em uma forma de sociedade menos desenvolvida”. O movimento de elevar-se do abstrato ao concreto é a forma de apropriar-se do concreto pela mediação do pensamento, reproduzindo-o na forma do concreto espiritual. Isso denota que Marx se apropria do modo de investigação operacionalizado por Hegel na Ciência da lógica, resguardadas suas distinções.
Marx considera que o trabalho é uma forma exemplar para revelar “como as categorias mais abstratas, apesar de sua validade para todas as épocas – justamente por causa de sua abstração –, na determinabilidade dessa própria abstração, são igualmente produto de relações históricas e têm sua plena validade só para essas relações e no interior delas” (2011, p. 58). Por isso que não é possível entender as categorias apenas isolando-as umas das outras, como faz a economia política, mas operando por um processo de abstração, em que o processo de isolamento deve ser seguido pelo processo de articulação das partes isoladas com o todo. Isso implica que o movimento reflexivo de “ida” deve ser seguido pelo caminho de volta, em que a universalidade concreta permite iluminar e esclarecer a universalidade abstrata, em que a realidade comparece como uma totalidade concreta e não mais caótica. O “caminho de ida”, da afirmação das abstrações “isoladoras”, será “razoável” à proporção que for seguido pelo “caminho de volta”, que indica ao sujeito o verdadeiro como um processo de síntese das múltiplas determinações (MARX, 2011).
Para Lukács (1981, 2010), no nível mais simples as categorias se manifestam em relação recíproca umas com as outras (matéria/forma, parte/todo etc.). Nesse contexto, o trabalho, como valor de uso, surge como a categoria decisiva para compreender as outras categorias, pois presume um processo homogêneo e espontâneo no desenvolvimento das categorias modais. No entanto, nas etapas mais avançadas do desenvolvimento das relações sociais, enquanto um complexo de complexo, cada complexo ganha sua relativa autonomia diante do trabalho. Embora o trabalho, como valor de uso, constitua uma categoria fundante do ser social, isso não impede que nos estágios mais avançados e superiores do desenvolvimento da processualidade social as demais categorias possam aparecer como dotadas de autonomia relativa perante o trabalho. Isso pode levar à falsa consideração de que as categorias existam por si mesmas ou que constituam formas a priori. Marx destaca o perigo dessa possibilidade no “prefácio à segunda edição alemã” de O capital, quando afirma:
A pesquisa tem de captar detalhadamente a matéria, analisar as suas várias formas de evolução e rastrear sua conexão íntima. Só depois de concluído esse trabalho é que se pode expor adequadamente o movimento real. Caso se consiga isso, e espelhada idealmente agora a vida da matéria, talvez possa parecer que se esteja tratando de uma construção a priori (1985, p. 20).
O método de pesquisa ou investigação exige um árduo esforço para “captar detalhadamente a matéria, analisar as suas várias formas de evolução e rastrear sua conexão íntima”. Isso implica dizer que a matéria, que é a base e o critério de toda a investigação, não pode ser captada facilmente. A determinação externa é perpassada por uma determinação interna que presume a ciência. Marx destaca que se houvesse unidade entre essência e aparência não haveria necessidade da ciência. A determinação concreta é perpassada pela relação dialética entre interioridade e exterioridade, o que exige presumir um investigador atento para desvelar as malhas de sua substancialidade. É preciso “analisar as suas várias formas de evolução e rastrear sua conexão íntima” na sua totalidade concreta. E analisar é um avançar que significa retroceder na perspectiva da elucidação e do esclarecimento dos seus fundamentos (HEGEL, 1982). No processo de análise, a abstração comparece como momento em que é possível isolar um determinado aspecto da realidade para compreendê-la melhor; no entanto, esse isolamento não deve esquecer as articulações existentes entre as partes da matéria estudada e as ricas manifestações heterogêneas da totalidade da realidade. A realidade é uma totalidade concreta que comparece como síntese das múltiplas determinações. É através da elevação do abstrato ao concreto que o pensamento se apropria da realidade, sem que isso implique alguma espécie de identidade absoluta entre o pensamento e o ser.
A exposição do ser na forma categorial é uma etapa posterior à investigação da estrutura anatômica do objeto e representa a reprodução da estrutura da vida material no âmbito do pensamento. Nesse sentido, significa um adentrar no universo das abstrações, em que abstrair implica estabelecer a diferenciação entre o essencial e o inessencial, o fundante e o fundado, o efeito e a causa. Através da exposição se adentra no universo do espelhamento da realidade; por isso que parece tratar-se de uma construção a priori, quando na verdade a atividade da exposição do ser pela consciência é essencialmente post festum. Escreve Marx (1985, p. 73): “A reflexão sobre as formas de vida humana, e, portanto, também sua análise científica, segue sobretudo um caminho oposto ao desenvolvimento real. Começa post festum e, por isso, com os resultados definidos do processo de desenvolvimento”. O reino da lógica ou da reprodução ideal de uma conexão concreta acontece mediante a manifestação da coisa e seu desenvolvimento efetivo no mundo material, verificando-se dois complexos: “o ser social, que existe independentemente do fato de que seja ou não conhecido corretamente; e o método para captá-lo no pensamento, da maneira mais adequada possível” (LUKÁCS, 1979b, p. 35). O ser tanto pode percorrer sua existência sem ser captado idealmente pela consciência, quanto pode ser captado pela consciência.
Conclusão
O idealismo objetivo e a teoria marxiana se ergueram contra a esterilidade vazia das concepções que tentaram reduzir as categorias à condição de mera vacuidade do sujeito pensante, pois as categorias são determinações objetivas da existência. Enquanto o pensamento hegeliano enveredou pela elucidação da anatomia constitutiva das categorias, contrapondo-se à lógica antiga que simplesmente desconsiderou seus aspectos objetivos e ontológicos; a teoria marxiana buscou uma aplicabilidade prática às categorias, articulando-as ao processo de esclarecimento da anatomia do sistema do capital. No prefácio à segunda edição de O capital, Marx confessa abertamente ter andando “namorando aqui e acolá os seus modos [hegelianos] peculiares de expressão” (1985, p. 20).
É possível afirmar que a teoria marxiana comparece como a concepção que mais se apropriou da natureza das categorias contidas na Ciência da lógica. Evidentemente que essa apropriação se inscreveu de maneira bastante peculiar, porque o propósito marxiano não era constituir um novo sistema filosófico ou resolver o problema das categorias numa perspectiva meramente escolástica, mas apropriar-se das categorias hegelianas, subvertendo-as, para elucidar as conexões íntimas e as relações contraditórias que perpassam as diferentes categorias econômicas latentes no modo de produção capitalista. O processo de elucidação da realidade pressupõe um investigador atento ao movimento reflexivo das categorias e à articulação existente entre as categorias mais simples ou abstratas e as categorias mais complexas ou concretas. Pode-se dizer, sem nenhum exagero, que foi Marx quem realmente conseguiu dar um tratamento correto às categorias hegelianas e libertá-las de seu “invólucro místico”.
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