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Na guerra entre polícia e crime organizado, o alvo são os trabalhadores (versão completa)


29 de novembro de 2012

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A ideologia do policiamento

Nas últimas semanas de outubro e início de novembro, as manchetes foram tomadas por notícias de uma “onda de violência” na periferia de São Paulo, com o assassinato de policiais, de baixa e alta patente, e mortes também de alegados criminosos em supostos confrontos com a polícia. As mortes chegaram a algumas dezenas por semana, e estabeleceu-se o temor de que algo semelhante ao que aconteceu em 2006 (quando confrontos do mesmo tipo numa escala muito maior paralisaram a maior cidade do país na época do dia das mães), inclusive com toque de recolher em alguns bairros da periferia e regiões da Grande São Paulo. O governo federal e o estadual estabeleceram um acordo de cooperação para debelar a onda de violência, incluindo a presença do exército nas ruas e a transferência de líderes da facção PCC para presídios federais em outros estados. No entanto, há quase um mês, as mortes continuam.

A primeira consideração a se fazer é que nenhuma onda de violência e atividade criminosa, nem esta em particular, poderá ser refreadas apenas com recurso a mais policiamento, mais confronto, mais militarização. As razões para o estado de guerra que vigora na periferia de São Paulo e de outras grandes cidades do país são complexas e profundas, e da mesma forma devem ser as soluções. O discurso que resume tudo a falhas específicas na política de segurança pública ou na competência de seus gestores apenas arranham a superfície do problema. Esse discurso simplista sobre assunto tão complexo não é politicamente inocente, pois existe para justificar um projeto determinado, justamente o projeto de colocar mais policiais nas ruas, com maior liberdade para agir. Busca-se legitimar perante o conjunto da população a prática policial já corrente de atirar primeiro e perguntar depois. Até os paralelepípedos das ruas da periferia sabem que a polícia de São Paulo mata indiscriminadamente, de preferência se o suspeito for negro, e monta “autos de resistência” forjados, colocando armas nas mãos dos mortos para legitimar as execuções.

O reforço do policiamento, e especificamente esse tipo de policiamento ultraviolento, é feito mediante um processo de convencimento junto à população e aos trabalhadores, no sentido de que a “guerra ao crime” é a única solução para “o problema da violência”. Esse convencimento é permanente, por meio de programas televisivos estilo “mundo cão”, que se popularizaram enormemente na última década, com o método sensacionalista e oportunista de ignorar os problemas sociais profundos e prometer soluções simplistas: mais polícia e mais mortes. A população é levada a apoiar essa polícia que atira primeiro e pergunta depois, que mata indiscriminadamente, que dispensa o devido processo judicial e age simultaneamente como investigador, juiz e carrasco, que executa a pena de morte instantaneamente, que tem a tortura como método sistemático de investigação, que nunca paga por seus crimes.

Os interesses políticos e de classe

Como uma organização revolucionária que luta pela superação do capitalismo, somos contra esse discurso e o projeto que ele legitima. A polícia que ganha essa completa liberdade de ação nas ruas será a mesma polícia usada para reprimir movimentos dos trabalhadores, como greves, ocupações, manifestações e ações diretas. Ambos serão tratados com a mesma brutalidade e violência, como foram os moradores do Pinheirinho em São José dos Campos no início deste ano e os estudantes da USP em fins do ano passado. Perante a opinião pública em geral toda a repressão será legítima, seja aquela disparada contra o crime, seja contra os movimentos sociais em geral. Qualquer movimento por salário, moradia, educação, passa a ser tratado como atividade criminosa, punida com prisão e condenação judicial ou administrativa de diversos tipos. Com essa prática de criminalização e repressão armada, os movimentos são isolados da grande maioria de trabalhadores, que poderia vir a apoiá-los.

A questão social torna-se assim caso de polícia, como era assumidamente nas palavras do último presidente da República Velha. A república neoliberal que se estabeleceu no Brasil pós-ditadura, seja sob gestões do PSDB ou do PT, tem a criminalização dos movimentos sociais como método preferencial para suprimir todo o possível descontentamento que não seja suficientemente abafado pelas diversas modalidades de bolsa-esmola. Para isso, foi preciso apenas lançar mão daquilo que permaneceu como legado inalterado da ditadura, uma polícia militar montada para tratar os pobres, pretos e periféricos como inimigos. A “democracia” brasileira mostra assim a sua verdadeira face, a ditadura de uma classe, que não precisa revogar formalmente as garantias democráticas como no tempo da ditadura, basta soterrá-las debaixo de balas e cassetetes policiais, com ou sem as câmeras de TV como coadjuvantes, conforme o caso.

O recrudescimento da repressão em geral no Brasil e a “guerra ao crime” no caso em particular se baseiam em métodos, estruturas e preconceitos seculares, mas possuem razões econômicas e políticas bastante atuais, como a necessidade de “limpar a casa” para receber os estrangeiros nos megaeventos esportivos de 2014 e 2016. O Estado brasileiro precisa demonstrar que possui controle sobre o território das periferias, pois isso é crucial para vender a imagem de um país que está progredindo rumo ao “1º mundo”. Que esse suposto progresso esteja sendo alicerçado numa maior exploração sobre os trabalhadores como a que estamos vivenciando nos últimos anos, particularmente depois da crise mundial iniciada em 2008, é algo que deve ser ocultado, por meio da exposição estrondosa de alguma grande vitória, e nada melhor para isso do que uma Copa do Mundo. O sucesso em vender essa imagem é crucial para que o atual dirigente do Estado, o PT, consiga se perpetuar como gestor do capitalismo brasileiro. Daí a cooperação entre Dilma e Alckmin no caso da atual “onda de violência”.

Para completar esse ponto, é preciso assinalar que as lutas contra a repressão aos movimentos sociais, contra a violência policial, abusos de poder, maus tratos, corrupção policial e em defesa dos direitos humanos, constituem um conjunto de lutas parciais que não pode ser isolado da luta política global contra a totalidade do projeto que está em curso no país, o projeto da burguesia e do PT de gestão do capitalismo periférico brasileiro. Não existe possibilidade de vitória na luta contra a violência sem que esta seja parte da luta geral contra os demais problemas causados pelo capitalismo, e que seja uma luta não apenas contra os efeitos, mas contra as causas desses problemas, o próprio capitalismo, uma luta abertamente anticapitalista e socialista.

A militarização de São Paulo

A violência estatal ou mesmo a “militarização” que o crime organizado instaura nas periferias é uma ferramenta fundamental na manutenção da exploração, intimidando os trabalhadores para que não entrem em luta. A polícia tem como papel fundamental reprimir os trabalhadores e mantê-los sob controle. O Estado brasileiro tem um projeto para o país e para implantar esse projeto passa por cima dos direitos e das aspirações de milhões de trabalhadores. A polícia funciona como um agente direto dos setores do capital que controlam o Estado. Para favorecer a especulação imobiliária, o judiciário e a polícia realizam despejos em áreas ocupadas e favelas, remoções forçadas, caçada a moradores de rua, etc., tudo isso no sentido de “higienizar” as cidades e literalmente abrir terreno para construtoras, shopping centers, etc.

Em Janeiro de 2012 a desocupação do bairro Pinheirinho em São José dos Campos já foi uma expressão da escalada reacionária em curso no país e também uma demonstração da ligação orgânica das forças da repressão com o grande capital. Um bairro inteiro, com milhares de habitantes, foi desocupado, com a destruição das casas e do patrimônio dos trabalhadores, com enorme brutalidade despejada indiscriminadamente contra mulheres, idosos e crianças, apenas para garantir os interesses da especulação imobiliária.

Impossível não notar que estamos no momento que antecede a Copa do Mundo e há grandes áreas, como a Zona Leste de São Paulo, que estão na mira da especulação imobiliária. O Estado precisa preparar essas áreas para exploração por imobiliárias e empreiteiras. Por isso aumentam os incêndios de favelas, desocupações, remoção de moradores de rua, etc. A violência é também uma forma de afastar a população para regiões mais distantes e facilitar a exploração. Certas regiões da cidade se tornam palco de guerra entre a polícia e organizações do crime.

Esses episódios de guerra facilitam o discurso de demonização dos pobres, dos negros e da periferia em geral. Para o Estado e a burguesia, é conveniente manter certas regiões sob uma espécie de estado de sítio, fortalecendo a polícia e o aparato repressivo em geral. O próprio aparato do Estado, em nível municipal, está sendo militarizado.

Das 31 subprefeituras de São Paulo, 30 estão sob comando de ex-coronéis da PM. Esse movimento de militarização (realizado pela gestão de Kassab, ex-DEM, hoje PSD) coincide com o esvaziamento das funções das subprefeituras, que perdem atribuições sociais, e também suas verbas, que caíram de R$ 2,9 bilhões para pouco mais de R$ 1 bilhão (http://www.redebrasilatual.com.br/temas/politica/2012/09/subprefeituras-sao-desmanteladas-1); transformam-se em meras zeladorias e órgãos de fiscalização.

A militarização e o discurso de guerra não correspondem exatamente ao que apontam os números. A cidade de São Paulo é a capital menos violenta do país, de acordo com o Mapa da Violência 2012, com uma média de 13 assassinatos para cada 100 mil habitantes (dados de 2010, os mais atualizados disponíveis. A capital mais violenta é Maceió, com 109,9 assassinatos para cada 100 mil (http://mapadaviolencia.org.br/pdf2012/mapa2012_web.pdf). Para legitimar o clima de terror, é preciso algo mais.

Para avançar na militarização, é preciso um pretexto mais forte, e para isso recorre-se à guerra contra organizações criminosas como o PCC. Desde a crise de 2006 vigorava um acordo entre a polícia/governo e o crime, que mantinha a situação “estável” na periferia. Por algum motivo, esse acordo foi suspenso em 2012. Policiais começaram a ser mortos, inclusive fora de serviço, e em represália, agentes policiais começaram a matar criminosos e supostos criminosos em grande número, numa situação de guerra declarada e completamente por fora de qualquer procedimento legal (investigação, julgamento, prisão). A versão policial dos “autos de resistência” sempre prevalece e torna-se impossível distinguir entre os mortos quem realmente tinha envolvimento com o crime e quem foi pego pelo fogo cruzado de um ou de outro lado.

O que importa é que foi criada uma legitimação social para a ação violenta da polícia. A polícia de São Paulo abriga em seu interior grupos de extermínio, que cumprem esse tipo de missão com alguma “discrição” em períodos “normais” e são “liberados” para agir mais abertamente em momentos de crise como esse. O Estado aproveita a situação, criada por ele mesmo, para aumentar a repressão ao movimento social. No limite, o avanço da atual política de confronto aponta para a possibilidade de ocupação das favelas em São Paulo, tais como as UPPs do Rio.

As múltiplas dimensões do problema

Os interesses políticos e de classe que estão por trás da escalada repressiva são evidentes, mas desmontar o mecanismo ideológico que legitima a repressão às lutas sociais perante os próprios trabalhadores que poderiam se beneficiar delas não é tarefa fácil. Os ideólogos da repressão, como os “jornalistas” dos programas “mundo cão”, podem manipular as emoções da população com muita facilidade, ao tratar o crime em uma única dimensão, como um simples caso de policial-herói X bandido-monstro. Os ideólogos da repressão são sórdidos o suficiente para caricaturizar todos os críticos dos abusos policiais e defensores de direitos humanos como “amigos dos bandidos”, ou no caso dos estudantes da USP, como “maconheiros”. Trata-se de uma batalha duríssima e que está sendo vencida pelos agentes ideológicos da extrema direita. Parte disso contaminou até mesmo as artes e a cultura, como as “stand up comedies”, que fazem sucesso ridicularizando o assim chamado “politicamente correto”, o que em si não é problema, mas no atual contexto não faz mais do que inclinar os sentimentos do público mais para a direita.

Como não estamos diante de “um simples caso de policial-herói X bandido-monstro”, mas de uma escalada de violência e repressão relacionada à gestão do capitalismo periférico brasileiro no contexto da crise mundial do sistema, precisamos discutir a “onda de violência” não em seu aspecto superficial e fenomênico, mas em suas determinações sociais profundas, que se estendem por diversas dimensões da realidade:

  • ainda relacionado ao discurso da televisão, precisamos recusar o uso que se faz do termo “bandido” como algum tipo de subespécie, um não-humano que pode legitimamente ser morto, como um personagem de videogame. De acordo com esse discurso, “bandido” não pode ter acesso aos direitos humanos, pois “não é gente” (ou como dizem, “direitos humanos para humanos direitos”, uma formulação que evidentemente só poderia vir da direita). Ora, muitos dos que chamam por “bandidos” são humanos que foram desumanizados pela miséria do meio social de onde provêm, pelo convívio com a violência de policiais e outros criminosos, e desumanizados mais uma vez ao serem tratados como menos do que humanos pela TV e a opinião pública que a segue. Não negamos que os criminosos sejam extremamente cruéis e brutalizados, mas isso não justifica nenhum tipo de política de extermínio. Justifica o emprego do devido processo legal e da aplicação de todas as garantias fundamentais, podendo culminar, ao fim do processo, com a prisão, pois essa instituição abre ao menos a possibilidade, mesmo que remota, de algum tipo de recuperação. Mas, para isso, seria preciso que os presídios deixassem de ser os bárbaros depósitos de gente que existem hoje no Brasil, e que servem apenas para brutalizar ainda mais os seres já violentos que nela são despejados. Se a saúde e a educação para os trabalhadores e seus filhos recebem verbas minúsculas (em função da prioridade que é o pagamento da dívida fraudulenta aos banqueiros e o apoio ao capital), que se dirá então sobre o sistema prisional, em que os condenados são despejados como lixo, apenas para sumir da vista da sociedade, sem qualquer perspectiva de recuperação. Nos presídios, estão sujeitos a todo tipo de atrocidades, assassinatos, estupros, torturas, maus tratos, superlotação, sem qualquer possibilidade de ressocialização pelo trabalho e sem o devido isolamento para líderes de facções e criminosos de alta periculosidade. Desse modo, só podem sair piores do que entraram;
  • Como a humanização do sistema penal em geral não está entre as prioridades, é mais simples condenar todos os “bandidos” automaticamente à morte, concedendo à polícia e seus arautos na TV a prerrogativa de determinar quem é bandido e quem não é. Essa categoria fictícia do “bandido” com as características de um animal irracional ultraviolento e irrecuperável é aplicada principalmente sobre um segmento social muito real, os jovens negros da periferia. A polícia brasileira é bastante seletiva e racista, e sabe muito bem quem se encaixa nesse estereótipo televisivo de bandido, quem deve ser abordado numa ronda noturna, quem não se espera que possa estar dirigindo um carro um novo, etc. De outro lado, a mídia é hipócrita o suficiente para tratar os mortos da periferia, tanto criminosos de verdade quanto trabalhadores mortos por criminosos e pela polícia, como simples estatísticas. Os mortos da periferia não têm nome, não têm rosto, não sentem dor, não têm sentimentos, não têm sonhos, não têm entes queridos que choram por eles. Já os mortos dos bairros centrais, onde moram a pequena burguesia e a burguesia, esses sim têm nome, sobrenome, fotografia, família para lançar depoimentos emocionados na TV e até mesmo motivar passeatas “pela paz”. Essa operação de mistificação atribui a uma determinada classe social a condição de sujeito, de protagonista, de ser considerado entre os que tem direito à voz no espaço público, enquanto aos trabalhadores e pobres em geral se nega a condição de humano e se aceita por definição que possam morrer às dúzias em chacinas anônimas, merecendo nada além de notas de rodapé com o número de vítimas;
  • a naturalização do “bandido” deve ser combatida ainda por outro motivo: não é simplesmente um problema da natureza do indivíduo ou de caráter que o torna apto a cometer crimes violentos, mas uma determinada situação social, a miséria material extrema que reina nas periferias. A falta de empregos ou empregos extremamente precários e degradantes, falta de moradia, de saneamento básico, de saúde pública, de educação, de lazer e cultura, em que vivem os moradores da periferia, fazem com que o crime se torne uma opção razoável, mesmo que seja apenas para a pequena minoria que efetivamente adere ao crime. Quando se situa a causa da existência de criminosos na “natureza” violenta de alguns indivíduos, isso é pretexto para deixar de combater a miséria e sua causa, o sistema capitalista;
  • a miséria é a causa do crime, e o capitalismo é a causa da miséria. Logo, o crime é parte do capitalismo, não é um fenômeno exterior ou oposto ao modo de produção capitalista. O capitalismo estabelece o monopólio do uso da força (armas) pelo Estado, por meio das forças armadas e da polícia. Mas ao mesmo tempo, ao estabelecer a competição de todos contra todos, e criar também um exército industrial de reserva (cada vez mais permanente) de desempregados e miseráveis, o capitalismo cria também a tentação de prevalecer na competição por meio de atividades banidas pelo Estado e que envolvem o uso da força. Essas atividades criminosas são presididas pela mesma lógica da competição empresarial capitalista. O objetivo de todos os líderes criminosos é obter riqueza suficiente para entrar no mundo dos negócios “legais” e ingressar na burguesia. A ideologia dos soldados do crime ao seguir seus chefes é obter status e prestígio, comprando carros e mulheres (como se estas fossem mercadorias).
  • em relação à “ideologia policial” de resolver as questões sociais por meio da força, trata-se de uma tendência recorrente e perigosa em momentos de crise. Na Grécia, ex-policiais integram as milícias do partido neonazista Aurora Dourada, que promete resolver os problemas do país expulsando os imigrantes por meio da violência. Na Alemanha, Hitler contou com os restos do aparato militar e policial do antigo império e da República de Weimar, convertidos em desordeiros, bem como lúmpens e elementos desclassificados em geral, para recrutar as milícias nazistas das SS e SA. O fato de que esse fenômeno esteja começando a se repetir em países europeus periféricos, no bojo da crise que é a mais séria desde a de 1930, é algo que deve nos deixar em estado de alerta. As milícias paramilitares do nazismo serviram como braço armado da patronal alemã para dizimar as organizações dos trabalhadores na base da violência (a divisão entre comunistas e socialistas, por obra do stalinismo, contribuiu decisivamente para isso, mas trata-se de outra história) nos anos 1930 e abriram caminho para a subida de Hitler ao poder. Quando dissemos que a mesma polícia hoje utilizada para “combater o crime” será usada para combater os movimentos dos trabalhadores, precisamos ter esses exemplos históricos passados e atuais em perspectiva;
  • num país periférico como o Brasil, o Estado sucateado pelo pagamento da dívida não consegue exercer a sua função básica de monopólio do uso da força, pois os agentes que emprega para isso acabam agindo por conta própria e usando a força não para fins públicos, mas para seus próprios fins particulares. Tanto as forças armadas como as policiais são sucateadas, sem instalações, sem equipamento, sem treinamento, sem formação, sem recursos, com baixos salários, etc. Dessa forma, os agentes diretamente envolvidos no “combate ao crime”, os que atuam na linha de frente das periferias, acabam dando seu “jeitinho” para sobreviver. O Estado praticamente empurra os policiais para as práticas ilegais. Alguns fazem “bicos” e serviços “por fora” em empresas de segurança (muitas vezes comandadas pelos próprios oficiais e ex-oficiais da polícia) nos dias de folga. Ou o que é mais grave, fazem acordos com as próprias organizações criminosas, deixando de reprimi-las em troca de uma parte de sua renda. Os periódicos surtos e “ondas de violência” entre policiais e criminosos em geral se referem a desacordos entre os dois setores sobre a porcentagem que cabe a cada um na repartição dos lucros do tráfico. E é aqui que o crime organizado mais uma vez se revela como parte integrante do próprio sistema capitalista: é uma empresa em funcionamento; como tal, o que lhe interessa é o lucro. É nesse sentido que o tráfico é um grande negócio do mercado brasileiro. Em casos extremos, como no Rio, grupos de ex-policiais formam “milícias” que, sob o pretexto de combater o tráfico, se tornam elas próprias “donas” dos morros e extorquem dos moradores em troca dos seus “serviços”, controlando todos os pequenos negócios legais e ilegais no bairro. Ou seja, o Estado brasileiro não tem controle sobre os seus homens armados, que ao invés de combaterem o crime, tornam-se parte dele. Nesse sentido, por sua vez, o crime organizado termina por instaurar nas regiões em que controla um “Estado de viés fascista”, muito pior do que os Estados de direito oficiais. Para completar, os políticos e “jornalistas” que manipulam o medo da população e advogam “mais polícia” estão defendendo uma espécie de “indústria do policiamento”, como os coronéis do nordeste defendiam a “indústria da seca”, mais um pretexto para transformar determinados territórios em verdadeiros feudos sob controle de homens armados.
  • não são apenas os policiais na linha de frente do “combate ao crime”, mas também as demais instituições do Estado, como o judiciário, órgãos de fiscalização, etc., que se associam aos negócios criminosos. Juízes, advogados, promotores, fiscais, gerentes de bancos, etc., todos eles recebem também a sua parte da renda do crime. Sem os serviços dessa camada de “especialistas”, as organizações e lideranças criminosas não teriam como fazer a lavagem do seu dinheiro. Ao mesmo tempo, os canais que permitem a lavagem de dinheiro do crime, como as contas em paraísos fiscais, não podem jamais ser fechados, pois são os mesmos que os próprios grandes burgueses usam ordinariamente para remeter ilegalmente seu dinheiro para o exterior. O combate efetivo à lavagem de dinheiro e aos paraísos fiscais, seja para asfixiar as organizações terroristas, seja para criminosos comuns, jamais terá sucesso, pois tratam-se dos mesmos mecanismos usados por políticos corruptos, grandes empresários que sonegam impostos, banqueiros e investidores, etc. Sem esses mecanismos, também ilegais e que movimentam grandes fortunas, o capitalismo não funcionaria para os burgueses individuais, portanto, nenhum Estado nacional será capaz de extinguí-los (mesmo porque se tratam de redes mundializadas de circulação de dinheiro), e eles seguirão sendo usados também pelas organizações criminosas.
  • a “guerra às drogas” é uma versão para a América Latina daquilo que se pratica no Oriente Médio com o nome de “guerra ao terror”. É um pretexto para que o exército estadunidense controle países como a Colômbia e mais recentemente o México. Nesses países, instalam-se bases militares estadunidenses, de onde as tropas imperialistas podem ter fácil acesso às riquezas do continente, como petróleo, minérios, água potável, biodiversidade, etc. Sob o pretexto da “guerra às drogas”, o que se quer também é controlar os movimentos sociais da região, que desde o início da década passada têm sido uma força política importante.

Propostas para a questão da violência

Retomamos então a discussão apresentada no início quando indicamos que o simples aumento do policiamento não irá resolver o problema do crime e da violência. No caso brasileiro, o limite a que se pode chegar com essa política de mais policiamento é um estado de terror nas periferias, sob controle de agentes policiais extremamente violentos (e nem por isso menos corruptos, nem menos associados ao crime), que transmitam uma falsa sensação de “tranquilidade” e “paz social” por ocaisão dos megaeventos esportivos.

Os aspectos que levantamos acima em relação às múltiplas dimensões do problema social do crime e da violência colocam como soluções correspondentes as seguintes propostas:

– emprego, moradia e serviços públicos para todos os trabalhadores;
– educação, cultura e lazer para a juventude em todos os bairros;
– redução de danos para dependentes e drogas, com narcossalas, fornecimento de seringas, etc; por tratamento humanizado, fim da internação compulsória;
– humanização do sistema penal em geral sob o controle do Estado, com a construção de novas unidades e a contratação de pessoal até dar fim à superlotação dos presídios, aos maus tratos e à corrupção dos agentes carcerários;
– combate à corrupção policial e judicial, julgamento de policiais em tribunais civis, expulsão e prisão de todos os corruptos e confisco de seus bens;
– desmilitarização da PM, unificação das polícias em uma única corporação civil, com direito de sindicalização e eleição dos comandantes e sob controle democrático da população dos bairros;
– fim da lavagem de dinheiro e repatriação de todo dinheiro remetido ilegalmente para o exterior;
– campanha contra a repressão aos movimentos sociais, pelo direito de greve e de manifestação;
– campanha permanente de esclarecimento dos malefícios causados pelo uso abusivo das drogas em geral.

Boa parte dessas medidas exigirão uma luta contra a lógica do sistema capitalista como um todo, conforme assinalamos acima. Para gerar emprego, moradia e serviços públicos de qualidade para todos, seria preciso, por exemplo, inverter a prioridade do orçamento público, que hoje está comprometido em cerca de 50% com o pagamento de juros da dívida pública aos banqueiros e especuladores. Para obter o não pagamento dos juros, por sua vez, seria preciso enfrentar um dos setores mais poderosos do capitalismo brasileiro e mundial, o mercado financeiro. Seria preciso desenvolver uma luta contra o Estado e suas atuais instituições, no contexto de uma luta que acabaria inevitavelmente se colocando contra o capitalismo e projetando a construção do socialismo. O mesmo se aplica a várias das demais medidas, que devem ser compreendias como parte de um programa anticapitalista e socialista.

Para finalizar, por falar em banqueiros, como dizia Brecht, “o que é o crime de roubar um banco comparado ao de fundar um?”

Espaço Socialista, Novembro de 2012