Encarte Rebeldia Socialista – número 01
3 de janeiro de 2009
OCUPA USP
GREVE, OCUPAÇÃO, PASSEATAS: O MOVIMENTO ESTUDANTIL EM AÇÃO
Daniel M. Delfino, estudante de filosofia.
Os ataques de Serra
No início de janeiro de 2007 o governador de São Paulo José Serra (PSDB) lançou uma série de decretos que modificavam a estrutura organizacional das universidades estaduais paulistas (USP, UNESP, UNICAMP, FATECs). Os decretos criavam uma Secretaria de Ensino Superior acima dos reitores, na qual foi acomodado um aliado político de Serra, o médico José Aristodemo Pinotti, do PMDB. A nova Secretaria passaria a centralizar a administração das universidades, controlando seu orçamento, o que entre outras coisas impediria a contratação de professores e servidores, investimentos em assistência (moradia estudantil), e a própria pesquisa e extensão das universidades.
Mais do que apenas recompensar um aliado político com uma sinecura, trata-se de um violento ataque contra a educação pública, pois fere diretamente a autonomia universitária. A possibilidade das universidades disporem sobre suas necessidades cotidianas fica prejudicada com a perda de controle sobre o orçamento. Esse projeto é coerente com a atual visão de gestão pública hegemônica no Brasil na era PSDB/PT: o Estado deve cada vez mais se retirar dos serviços públicos (educação, saúde, transporte, comunicações, etc.) e deixar tudo para a iniciativa privada.
A situação das universidades
Na visão neoliberal, as universidades devem ser colocadas diretamente a serviço das empresas. A lógica do mercado, e não o interesse científico, passa a determinar o que deve ser estudado, e a pesquisa aplicada é privilegiada em detrimento da pesquisa básica. Os promotores desse modelo de gestão revelam aqui toda a sua miopia histórica, pois sem uma forte estrutura de pesquisa científica básica (na qual as universidades paulistas ocupam posição de liderança no Brasil e na América Latina) para formar novas gerações de cientistas, acadêmicos e técnicos, a própria pesquisa aplicada a longo prazo será asfixiada, e o Brasil continuará sendo um país eternamente dependente e um perpétuo importador de tecnologia.
Se a pesquisa básica nas áreas de matemática, física, química, biologia, etc., é considerada um “luxo” ou “desperdício”, que dizer então dos estudos em ciências humanas? Os setores da universidade que desenvolvem o pensamento crítico sobre a sociedade brasileira são os mais sucateados: não se contratam professores, os prédios são precários, as bibliotecas são pobres, não há laboratórios de informática, as salas de aula são superlotadas, etc. As condições para que estudantes oriundos de escolas públicas se mantenham na universidade (moradia, alimentação, transporte, etc.) também são as piores possíveis, o que contribui para que as universidades públicas continuem sendo um “oásis” privativo da elite, praticamente vedado aos estudantes vindos da classe trabalhadora, aos negros, nordestinos e moradores da periferia.
A resposta dos estudantes
A situação de sucateamento do ensino público se agravaria ainda mais com a implantação dos decretos. Diante disso, os estudantes da USP, maior e mais importante universidade do país, também aquela que concentra a maior parte dos problemas de inclusão, e a mais diretamente visada pelos decretos, foram à luta. Exigiram a abertura de discussões com a reitora Suely Vilela, que no entanto se recusou a uma audiência pública, numa clara demonstração de que a burocracia universitária trabalharia pela implantação dos decretos. Diante da recusa da reitora em debater as suas reivindicações, os estudantes ocuparam a reitoria da USP, no dia 3 de maio.
A partir da ocupação da reitoria, o movimento se expande e toma corpo. As assembléias passam a receber milhares de estudantes, algo que não acontecia há muitos anos. No dia 16 de maio é declarada greve dos estudantes e no mesmo dia os trabalhadores da USP também entram em greve. No dia 23 de maio é a vez dos professores da USP entrarem em greve. Com a greve dos três segmentos da universidade, o movimento alcança seu apogeu. Grandes atos, assembléias e passeatas com milhares de participantes colocam o problema da universidade no primeiro plano dos debates.
A força do movimento
A mobilização da universidade integrou-se aos movimentos dos servidores estaduais em campanha salarial, principalmente professores – também alvejados pela política de Serra –, bem como a setores do funcionalismo federal, MST e movimentos populares em geral, numa jornada de lutas que teve seu auge no dia 23 de maio. Ocupações e passeatas aconteceram em todo o país, numa tentativa de despertar a sociedade para a necessidade de lutar contra as reformas neoliberais em implantação pelos governos do PT e PSDB.
Cabe destacar que, assim como os sindicatos da CUT boicotaram as lutas em curso contra as reformas do governo Lula, o DCE (Diretório Central dos Estudantes) da USP, ligado à UNE (controlados por PT/PC do B/MR8-PMDB) boicotou a ocupação e a greve da universidade, sendo maciçamente rechaçado pelos estudantes e praticamente expulso das assembléias.
Cultura de greve
Os melhores momentos do movimento estiveram nas grandes passeatas e manifestações, e também nas formas de organização inovadoras desenvolvidas para administrar o cotidiano da ocupação. Formaram-se comissões de limpeza, alimentação, segurança, informática e comunicação, desenvolveram-se atividades de “cultura de greve” com a presença na ocupação de professores como Paulo Arantes, Osvaldo Coggiola, Aziz Ab’Saber e Dalmo Dallari, que realizaram palestras e participaram de debates; e também contamos com artistas como Tom Zé, Bnegão, e a Cooperifa (cooperativa de artistas de periferia).
A maior parte das atividades foi tocada por estudantes não filiados a correntes políticas, os chamados “independentes”. A esquerda organizada, e principalmente os partidos mais reconhecidos, como PSOL e PSTU, atuou de forma superficial e dispersa, não ajudando a construir a ocupação. Como reflexo de uma concepção política que separa trabalho braçal e intelectual, a esquerda se dividiu entre uma ala dos que “carregam o piano”, tocando as atividades cotidianas (fazendo comida, lavando os banheiros, cuidando da limpeza, compondo as rondas de segurança) e a ala dos que “aparecem na foto”, falando à imprensa e comparecendo nas assembléias para dizer aos outros o que fazer. Os independentes erraram por sua inexperiência, e os organizados erraram por seu sectarismo e distanciamento, mas ainda assim houve acertos que se refletiram no fortalecimento do movimento.
A tática da burguesia
Naturalmente a imprensa burguesa esteve contra a ocupação e a greve: os ocupantes e grevistas foram apresentados nos jornais e na TV como baderneiros, bagunceiros, irresponsáveis, vândalos, autoritários (porque “cercearam o direito dos que querem estudar”) ou como loucos, utópicos e dinossauros, porque muitos dos participantes do movimento defendem o socialismo como resposta para os problemas da sociedade.
A resposta do governo Serra foi a repressão. A polícia foi acionada mais de uma vez para reprimir manifestantes, o governador – que já foi presidente da UNE na década de 60 – ameaçou usar a tropa de choque para desocupar a reitoria pela força e também ameaçou invadir o campus da USP, algo que aconteceu pela última vez em 1968, no momento mais duro da ditadura militar. O custo político dessa medida extrema mostrou-se tão elevado que forçou Serra a desistir. A ameaça de invasão mostrou-se um blefe. Os estudantes pagaram para ver, mantiveram-se na reitoria, e venceram a aposta.
Incapaz de usar sua arma derradeira, Serra recuou, fazendo ser publicado no dia 31 de maio um “decreto declaratório” com uma “nova interpretação” das medidas que provocaram a mobilização. Na prática, os decretos de ataque à universidade ficaram sem efeito. A partir daí, o movimento uspiano entrou num relativo refluxo: professores e funcionários saíram da greve em função de suas próprias pautas, a maior parte dos cursos aprovou fim da greve estudantil e a ocupação começou a ficar isolada na própria USP.
Contradições e desafios futuros do movimento
No mesmo momento em que a greve refluía, a situação nacional estava justamente refletindo a repercussão dos acontecimentos da USP. O exemplo dos estudantes uspianos começou a ser seguido. Em várias faculdades do estado e universidades federais pelo Brasil afora pipocaram greves estudantis, ocupações de reitorias, greves de funcionários e de professores. Várias dessas ações enfrentaram-se com a repressão policial. Outras obtiveram conquistas em face dos governos reacionários. Reivindica-se aumento de salários, contratação de professores, melhorias na moradia e assistência estudantil, democratização e participação dos três segmentos na gestão das universidades. No geral, todas essas pautas formam uma luta pela defesa do ensino público, contra o sucateamento e privatização das universidades.
No dia 16 de junho realizou-se na própria USP um Encontro Nacional das Faculdades em luta, expressando um grau de mobilização em nível nacional que não era vivenciado há muito tempo no movimento estudantil, mas mesmo em face desse cenário nacional, a assembléia do dia 21 de junho votou o fim da ocupação, depois de 51 dias.
Apesar de suas limitações, que são as limitações da nossa esquerda em geral, como o aparelhismo, o fracionamento, o distanciamento das bases e a falta de programa, o movimento iniciado na USP apontou a única via capaz de enfrentar os ataques do imperialismo e dos governos neoliberais ao país: a luta direta. Os estudantes (com os partidos, sem os partidos ou apesar dos partidos) se articularam, debateram e construíram seu movimento, suas formas de organização, de decisão e de ação. Aceitaram o desafio e foram para a ação, erraram e acertaram, aprenderam e ensinaram, fortalecendo-se e crescendo na própria luta, mostrando que é possível.
A ocupação terminou, mas como disse um grafite nos muros da USP, “ocupe a reitoria que existe dentro de você.”
HÁ VAGAS
MAS…
A. M. D.
Sim, eu escolho se você vai sair ou vai ficar. Se você vai entrar ou vai ficar de fora. Eu decido seu futuro, seu presente, seus sonhos. Eu sou mais rico que você, mais bonito que você, mais poderoso que você. Eu sou aquele que diz: “Pule!”, e você pula. Eu digo: “Estude!”, e você vai estudar. Cadê seu diploma? Cadê seu histórico profissional? Cadê seu trabalho voluntário?
Não, você não é bom o suficiente para mim. Você é pequeno, tímido, muito pouco incisivo. Me convença, me faça perceber que você é melhor que os outros. Melhor que eu não, isso você não pode ser, pois eu dou o veredito. Eu escolho seus próximos passos e decido até as roupas que você vai vestir.
Sim, eu decido. Decido se você come maçã ou sorvete, porque um deles engorda e você não vai querer ser gordo, não é? Quem vai olhar para você? Quem vai namorar você? Quem vai te contratar?
Não, não seja feio. Nâo seja ultrapassado. Aceite a homossexualidade, nem que seja só um pouquinho, para ser aceito pelo grupo. Aceite os negros. Afinal, eles estão por toda parte. Portanto, seja discreto e não demonstre preconceito porque isso está fora de moda.
Sim, eu sou bonito, glamouroso e perfumado. Eu sei o que falar e como falar, na hora certa. Você ainda não aprendeu? Entre para o meu clube e aprenda. Só depende de você querer. Você vai conseguir. Tudo depende de sua força de vontade e de sua capacidade de adaptação às mudanças e às exigências sociais. Por isso, repito, não seja preconceituoso, mesmo que apenas aparentemente. Isso está fora de moda.
E não confunda as coisas: hoje eu estou aqui te impulsionando, para que cresça comigo. Se você não quiser, terá que voltar ao fim da fila e reaprender tudo de novo, pois não posso parar. A fila é grande, é enorme, e grita neurótica e anônima.
Sou seu amigo, sim. Por isso, te sugiro: recicle-se, faça caridade, faça pós-graduação e academia. Não duvide do seu potencial. Você é capaz. Convença-se disso. Não deixe que os outros te abatam. Ao contrário, passe por cima deles e mostre a que veio. Afinal, é cada um por si e Deus por todos.
Eu decido seu futuro. Eu escolho sua postura sexual. Eu escolho o sim ou o não. Eu alterno entre um e outro, pois sou onipotente e onisciente. Mas eu sou bom. Eu só quero o bem de todos, a igualdade de todos, por isso dou iguais oportunidades para todos vocês, sem distinção. Não sejam ingratos. As portas estão abertas para todos os currículos. Mas os melhores não vão para o arquivo.
Você ainda está desempregado? A culpa é sua, porque as vagas chegam aos montes nas minhas mãos. E as profissões estão exigindo pessoas qualificadas. Seu inglês já é muito pouco, sua experiência é pequena. E sua estabilidade? Requisito básico: três anos na mesma empresa, para que eu perceba sua habilidade para lidar com problemas e situações inevitáveis de uma empresa. Mas não seja muito velho, porque o prazo de sua graduação terá expirado. Você tem que ser um jovem de muita experiência.
Quem você pensa que eu sou? Você pensa que eu sou o capital?
Não, eu sou apenas uma psicóloga recém-formada que ingressou numa empresa de recursos humanos como selecionadora, uma jovem que se sente cúmplice de um estilo de vida irreal e infeliz, subjetivamente falso e hipócrita; uma jovem que precisa pagar as contas e que ouve essas vozes, subliminarmente, em cada entrevista e a cada vez que uma pessoa é dispensada. Uma pessoa que vive nesse mundo, que também faz parte dele, e que também ouve muitos nãos, que também ouve que não está pronta, que não é boa o suficiente.
Na empresa em que trabalho, chegam jovens com cursos universitários, procurando por empregos que não correspondem à área de suas formações. Eles simplesmente querem trabalhar. Eles simplesmente precisam trabalhar. A maioria desses jovens trancou a faculdade. Parou no terceiro semestre. Abandonou no quarto ano. Motivo? Sempre a mesma resposta: não podia mais pagar. Mas ele não consegue uma oportunidade de emprego, porque ele não terminou a faculdade. E como ele vai trabalhar para dar continuidade ao curso se ele não termina o curso? É uma ciranda patética, sem sentido e alucinada, que provoca em todos uma sensação de culpa e impotência, capaz de aniquilar qualquer senso de direito e de dignidade. Por isso, certo dia entrevistei uma aluna de direito que estava procurando por um emprego em telemarketing. Isso a frustra? Não tive tempo de descobrir ou perguntar. Tinha outras entrevistas a fazer, e a ciranda continuava rodando com volume altíssimo, nas ruas do centro, de onde vem a gritaria que ouço, alucinada e neurótica, da sala do prédio onde trabalho. Mas a culpa é dela, não é?
Nesse mesmo emprego, devo sugerir às pessoas encaminhadas, essas sortudas “pessoas certas que apareceram no lugares certos”, que façam a barba e cortem o cabelo. Sim, eu olho para elas e sugiro que a maguiagem seja discreta, mas visível e interessante. Aconselho que o terno e a gravata sejam utilizados na entrevista da empresa para a qual a pessoa será encaminhada. E sugiro às garotas que usem salto. Afinal, o gerente que fará a entrevista quer saber mais da habilidade da garota de caminhar sobre dois finos saltos de 9 centímetros do que nas qualificações para a vaga.
O que fazer diante dessa constatação? Continuo me prostituindo para pagar as contas ou exerço com isonomia e respeito a profissão na qual me formei, e que eu acabei gostando? Será possível driblar a diferença no tratamento que se dá a um especialista que vale 11.000 reais e um telefonista de 550? Será possível perceber, diante de tanta massificação, exploração e competitividade a humanidade sofrida e subjetivamente destroçada de cada pessoa que me procura atrás de um emprego, independente do salário, e tratá-los igualmente? Ao mesmo tempo, também não posso odiar o trabalhador que recebe um salário de 11.000 reais. Isso é preconceito e limitação de pensamento. Somos todos humanos e todos temos o mesmo valor como seres humanos. Certo? Sim, será possível para mim. Será possível ao capital perceber essa desigualdade e sensibilizar-se com ela? O que você acha? Também sou aquele que pergunta e não tem respostas, e pede a você me ajude a pensarmos juntos.
Ainda acredito que posso fazer diferente dentro dessa podridão. Esse discurso perverso que separa os “capazes dos incapazes” é ouvido por todos nós, todos os dias. Por mim, como psicóloga, por você, estudante, trabalhador, empregado ou desempregado. Eu sou um enorme “mais um” no meio dessa multidão, não “apenas” mais um. Você é tão grande quanto a humanidade, independente da bandeira que hastear. Escolha uma, pois o tempo não pára. Não importa a sua profissão. O que importa é a sua posição.