A Comunicação na luta de Classes: O caso Chávez e a RCTV
3 de janeiro de 2009
Daniel – Bancários SP
Tivemos oportunidade de discutir recentemente o projeto político do Presidente venezuelano Hugo Chávez no que diz respeito à sua alegada pretensão de apresentar o “socialismo do século XXI”, em artigo publicado na edição nº 19 de nosso jornal. Indicamos então que o socialismo somente pode ser construído por obra dos próprios trabalhadores, a partir de suas próprias organizações de luta, convertidas em instrumentos políticos independentes e armadas de seu próprio programa e ideologia; em completa ruptura com a institucionalidade burguesa e a forma Estado. O socialismo não será jamais uma dádiva benevolente concedida por um governante burguês como Chávez e suas limitadíssimas medidas “socialistas”, por mais que tais ações representem de fato algum avanço material e despertem o ódio da burguesia venezuelana e mundial.
A última das novidades “revolucionárias” de Chávez a provocar estardalhaço foi a não renovação da concessão da emissora RCTV, uma das redes de TV privadas que se opõem ferozmente à sua política. A concessão da RCTV, renovada pela última vez em 27 de maio de 1987, acabara de completar 20 anos, de modo que cabia ao Estado verificar a conveniência de renová-la ou não, conforme a legislação em vigor no país, a qual é anterior ao próprio Chávez e permaneceu intocada mesmo depois da nova Constituição bolivariana de 1999.
Imediatamente, porém, a mídia burguesa em todo o mundo passou a esbravejar furiosamente contra o “ditador” venezuelano, acusando-o de atacar a “liberdade de expressão”. TVs, jornais e revistas entoaram em uníssono o mesmo coro. Esse impressionante exemplo de solidariedade de classe manifestado pelas empresas de mídia (inclusive as do Brasil) diante do “perigoso” precedente aberto por Chávez demonstra o quanto o alegado compromisso desses “veículos de informação” com a verdade dos fatos não passa de uma grotesca farsa a servir de pretexto para encobrir a mais escancarada parcialidade política e ideológica.
O discurso montado para atacar a decisão de Chávez não resiste à crítica mais elementar. O fato de que Chávez tenha sido democraticamente eleito, reeleito, submetido a referendo e plebiscito é completamente ignorado quando o acusam de “ditador”. O fato de que todas as redes de TV privadas tenham trabalhado ativamente em favor do golpe de 2002 contra o presidente eleito não impede que continuem sendo tratadas como “democráticos” baluartes da “liberdade”. O fato de que Chávez tenha agido na estrita obediência à lei de seu país (aliás, muito semelhante à do Brasil, como veremos), que faculta ao governante a condição de negar a renovação de uma concessão de utilização de um bem público, também é cinicamente desconsiderado.
Todos os fatos são distorcidos para que se possa apresentar a versão fantasiosa de que um “ditador” intransigente restringiu arbitrariamente a “liberdade” dos cidadãos de seu país ao impor repentinamente uma “censura” brutal e maciça sobre os meios de comunicação que são a garantia da “democracia”. Ora, apesar de ser a mais antiga emissora do país, com 53 anos de atividade, a RCTV não era a única nem a maior, pois perdia para a Venevisión e a Globovisión, as quais continuaram funcionando normalmente e fazendo oposição ao presidente. Assim como continuam funcionando normalmente os jornais e demais veículos anti-chavistas. Ou seja, a medida de Chávez nem sequer alterou qualitativamente o sistema de comunicação de massas do país, que continua nas mãos de empresas privadas (que detém 90% da audiência) e continua a propagar a ideologia burguesa e a política das classes dominantes. Apenas alterou-se quantitativamente o quadro ao tirar de cena a mais irresponsável das redes privadas.
O nível criminoso de desonestidade desta emissora pode ser aferido a partir do exemplo do tratamento dado aos conflitos que precederam o golpe contra Chávez em 2002. A RCTV editou as imagens dos confrontos entre manifestantes nas ruas de Caracas de modo a dar a entender que os partidários do presidente eram os responsáveis por tiros disparados aleatoriamente contra uma multidão de seus opositores, quando se tratava exatamente do contrário. A mentira foi exposta no documentário “A revolução não será televisionada” (Kim Bartley e Donnacha O’Briain, 2003), obra de dois jovens irlandeses que filmavam uma reportagem sobre Chávez e tiveram a oportunidade extraordinária de registrar o golpe e a subseqüente reação popular massiva que o derrotou.
O documentário exibe ainda os militares, políticos, empresários, donos de TVs e jornalistas congratulando-se pelo sucesso aparente de seu golpe, em diálogos escandalosos que mostram o quão longe vai o ardor “democrático” dessa burguesia venezuelana com a qual a mídia mundial tão prontamente se solidariza. O fato de que Chávez, por sua vez, não tenha tomado nenhuma atitude política contra os golpistas, mas somente agora, cinco anos depois, tenha agido por um ato puramente administrativo, revela a infinita disposição do líder bolivariano para a conciliação de classes, numa via que pode até trazer melhorias limitadas para o povo venezuelano, mas jamais o levará para o socialismo, pois não rompe com a dominação burguesa.
Os pilares do capitalismo na Venezuela não foram alterados por essa decisão administrativa, pois os demais meios de comunicação continuam funcionando normalmente, ou seja, a serviço do capital. Todo o barulho que se fez em torno da decisão chavista visa apenas reforçar aos olhos do público o quanto os meios de comunicação querem ser considerados intocáveis e mostra o quanto zelam pela manutenção de seu poder quase absoluto sobre o imaginário coletivo contemporâneo. O título do documentário citado é bastante feliz neste aspecto, pois demonstra o fato elementar de que, na atual sociedade do espetáculo, qualquer revolução necessariamente se fará contra a televisão, que por sua vez se recusará a mostrá-la.
Os meios de comunicação (não apenas a televisão, mas também rádio, cinema, jornais, internet, etc.) não são ferramentas tecnológicas politicamente neutras. No contexto das relações sociais capitalistas, as técnicas de comunicação não são meios de informação, mas de ocultação da realidade. Seu papel é exibir o nada, o vazio, a nulidade, a vulgaridade e a venalidade das relações fetichizadas da sociedade burguesa. Ao mesmo tempo em que exibe o nada, a mídia oculta o real: a miséria em que vive a imensa maioria da humanidade, prisioneira da violência, da exploração, da degradação ambiental, da doença, da ignorância, da neurose, etc., que necessariamente acompanham o capitalismo.
A mídia produz incessantemente o esquecimento do passado e a negação do futuro em nome de um presente bárbaro perpetuado. Além de negar o real, negando-se a mostrá-lo, a mídia precisa substituí-lo pelo irreal, criando o seu próprio mundo imaginário, através do bombardeio maciço e ininterrupto dos valores burgueses. Os espectadores são expostos ao massacre ideológico 24 horas por dia, 365 dias por ano, em todos os canais. Nos empurram goela abaixo o individualismo, a competitividade, o utilitarismo, o pragmatismo, o imediatismo, a fragmentação, a uniformidade, a fugacidade, a incultura, o anti-intelectualismo, o misticismo, o medo, a rejeição ao diferente, o chauvinismo, o otimismo panglossiano, o escapismo infantilizante, o consumismo, o luxo imoral e irresponsável, o culto às celebridades, o padrão de beleza eurocêntrico, etc.
O resultado desse processo industrial de imbecilização coletiva é o aviltamento das consciências, a anestesia da sensibilidade, a mutilação da subjetividade e o rebaixamento do ser humano a uma condição de passividade bovina. Seja nos programas de “entretenimento”, seja nos “noticiários” e “informativos”, o conteúdo ideológico é sempre o mesmo, a defesa intransigente da ordem estabelecida, da mercantilização do mundo e da vida, da adoração ao dinheiro, da obediência ao Estado e às instituições. É esse o papel que cumprem os meios de comunicação privados a serviço do capital, seja nas nações imperialistas, seja nos países periféricos como a Venezuela e nosso próprio país.
A mídia brasileira, ciosa de seus interesses, prontamente condenou Chávez e antecipadamente pôs na alça de mira qualquer opinião que ouse considerar a sacrílega possibilidade de não renovar alguma concessão de telecomunicação no Brasil. Ai de quem ousar questionar os pilares da ordem… Nosso espectro eletromagnético está repartido em faixas de freqüência cuja utilização para transmissões radiotelevisivas também depende de concessão do poder público. O Código Brasileiro de Telecomunicação de 1962 estabelece um prazo de 15 anos para renovação das concessões de TV e 10 anos para rádio. A Constituição de 1988 tirou do Executivo e atribuiu ao Congresso a faculdade de outorgar e renovar concessões. Entretanto, entre 1985 e 88, o coronel baiano ACM, supérstite da ditadura e ministro das comunicações de Sarney, havia distribuído centenas de concessões a seus aliados políticos.
Criou-se então o fenômeno do “telecoronelismo”, por meio do qual os representantes das oligarquias mais reacionárias passaram a estar equipados dos mais poderosos recursos tecnológicos, reforçando sua supremacia política por meio do controle férreo sobre currais eleitorais eletronicamente domesticados, blindados contra a interferência de pensamentos divergentes. O fenômeno do telecoronelismo e a “bancada da mídia” prosseguiram nos governos de FHC e Lula, compondo um dos esteios políticos dos ataques imperialistas ao país na era neoliberal.
Na recente discussão sobre a escolha de um padrão tecnológico para as transmissões de TV digital, esteve em pauta a possibilidade da abertura de um número virtualmente ilimitado de faixas de transmissão a serem também disponibilizadas para emissoras comunitárias e movimentos populares. Essa possibilidade foi descartada quando Lula optou pelo padrão desejado pela Rede Globo, mantendo basicamente inalterado o esquema de exploração comercial do espectro eletromagnético. Manteve-se o monopólio dos grandes grupos de mídia sobre o espaço, que o utilizam para a transmissão de um conteúdo extremamente rebaixado, sem qualquer valor humano e cultural e cuidadosamente adequado aos interesses ideológicos e políticos da burguesia brasileira e imperialista.
Coloca-se então como uma tarefa crucial das forças populares lutar contra esse modelo de comunicação e encontrar as formas para que as vozes dos oprimidos sejam ouvidas e seus interesses históricos sejam colocados em pauta.
Abaixo o Grande Irmão!