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“X-Men 2”: Somos todos mutantes


13 de dezembro de 2008

 

“X-MEN 2”: Somos todos mutantes

 

(Comentário sobre o filme “X-Men 2”)

Nome original: X2

            Produção: Estados Unidos

            Ano: 2003

            Idiomas: Inglês, Alemão

            Diretor: Bryan Singer

            Roteiro: Zak Penn, David Hayter

            Elenco: Hugh Jackman, Patrick Stewart, Ian McKellen, Halle Barry, Famke Janssen, James Marsden, Anna Paquin, Rebecca Romijn, Brian Cox, Alan Cumming, Bruce Davison, Aaron Stanford, Shawn Ashmore, Kelly Hu, Katie Stuart

Gênero: ação, aventura, ficção científica, thriller

Fonte: “The Internet Movie Database” – http://www.imdb.com/ 

            “X-Men 2” é “X-Men” ao quadrado. Pegue-se o primeiro filme e multipliquem-se os personagens, as cenas de ação, as tramas, as revelações, as piadas e a própria duração do filme e tem-se a receita deste “upgrade”. Comparado com sua continuação, o primeiro “X-Men” era apenas um ensaio. Um tímido ensaio. O diretor Brian Singer, o mesmo de “Os Suspeitos”, era então um confesso analfabeto em “universo X”, o universo dos mutantes nos quadrinhos. Seu distanciamento e seriedade ajudaram a fazer do primeiro filme uma transposição realista e consistente do mudo dos gibis para as telas, a ponto de ter aberto as portas para “Homem Aranha”, “Demolidor”, “Hulk” e esta presente continuação do próprio “X-Men”. O gênero dos filmes-adaptados-de-histórias-em-quadrinhos, que estava semimorto, foi ressuscitado, comercialmente, em grande parte por seus méritos.

            Os executivos voltaram a acreditar que o gênero é viável e para nossa sorte, resolveram investir nele. Em time que está ganhando, não se mexe. O diretor Brian Singer, maior responsável pelo sucesso do primeiro filme, foi encarregado de comandar a cinessérie dos X-Men e espera-se que continue no cargo. Alguns anos depois, o diretor já iniciado nas leituras fundamentais do universo X, sentiu-se totalmente à vontade para conduzir a continuação. Livre de todas as amarras e constrangimentos e usando de toda sua habilidade para realizar roteiros complexos (como o oscarizado “Os suspeitos”, que o revelou), Brian Singer entregou o que este escriba considera uma das três melhores adaptações de quadrinhos de todos os tempos, ao lado de “Akira”, de 1988, adaptado do mangá homônimo e de “Heavy Metal”, de 1981, inspirado na revista francesa “Metal Hurlant”, revista que revelou o gênio Moebius e outros artistas dos quadrinhos.

Dissemos que o diretor é o maior responsável pelo sucesso dos “x-filmes” porque nunca é o bastante homenagear aqueles que acertam num meio em que tantos erram. Basta lembrar o infeliz que arruinou a história do “Demolidor”, transformando um personagem extremamente promissor numa piada, um fracasso artístico e comercial vexaminoso. Não é qualquer nerd de quadrinhos que consegue dirigir um filme. Ao exaltar o diretor, não estamos esquecendo o elenco. Em “X-Men 2” cada peça se encaixa. Há personagens e artistas para todos os gostos.

As beldades Halle Berry (Tempestade), Famke Janssen (Jean Grey) e Rebeca Romijn-Stamos (Mística), são um show à parte. Destaque para a cena em que Rebeca recebeu de presente a chance de reprisar seu personagem no triller “Femme Fatalle”, de Brian de Palma (filme regular, mas simpático), seduzindo um guarda da prisão. Hugh Jackman, o maior achado do primeiro filme, continua dando seu show como Wolverine, extremamente convincente, fazendo a festa dos fãs. Ian McKellen faz um Magneto diferente dos quadrinhos, mais velho, quase idoso, cerebral e elegante. A cena da fuga da prisão de plástico é simplesmente apoteótica. Noturno é um show à parte, desde a explosiva cena de abertura, depois com sua beatitude e sotaque germânico carregado.

Entre os vilões, o coronel Stryker interpretado por Brian Cox entrega um desempenho que não fica atrás de nenhum dos falcões do governo Bush. Sua resposta para o problema mutante é, simplesmente, exterminar os mutantes. Seu filho Jason, que nos quadrinhos é Jason Wygand, o Mestre Mental, é uma das criaturas mais assustadoras já vistas no cinema.  Um zumbi e um semideus. Sem dizer uma só palavra, apenas olhando, com seus olhos de cores diferentes (David Bowie é mutante? Será essa a explicação para seu fascínio sobre as platéias décadas afora?), ele exerce um poder sutil e profundo, em cenas de tensão psicológica muito bem desenvolvida. Destaque negativo para a personagem Lady Letal, não pelo que ela faz, mas pelo que não faz, por não ter mais cenas, por não ser melhor aproveitada ao longo do filme.

Além dos destaques individuais, o conjunto da trama funciona como um relógio. Todas as peças se encaixam. Todos os personagens estão em busca de seus objetivos, que no conjunto articulam a tapeçaria do roteiro. Wolverine está em busca de seu passado, coronel Stryker quer destruir os mutantes, Magneto quer destruir os humanos, o Professor X quer salvar a ambos, Pyro quer roubar a namorada de Bobby, mas não está disposto a ser um bom-moço para isso, Jean Grey, como toda mulher, quer um homem que esteja sempre por perto, Noturno quer ser aceito por Deus e pelos homens, e assim por diante. Os conflitos e dramas dos personagens são muito humanos e verdadeiros.

Mais do que uma simples continuação, este é o primeiro e verdadeiro filme-quadrinhos feito até hoje. Um filme-gibi. Os gibis, como se sabe, tem começo mas nuca tem fim, pois estendem a história de um personagem ou de um grupo deles por décadas à fio, como uma novela, mas sem fim. “X-Men 2” funciona como se fosse uma história em quadrinhos retirada aleatoriamente da pilha de gibis. Não há um começo, um meio e um fim fechados. Ele se situa no meio de uma história que tem um começo anterior a ele e que terá desenvolvimentos posteriores. Esse é o aspecto mais interessante da atmosfera de “X-Men 2”. Ela capta o que parece ser um momento na vida dos mutantes. Um dia na vida dos X-Men.

Os mutantes estavam lá, levavam suas vidas, produziam alguns incidentes. Num dado momento, quando Magneto está preso, Wolverine está investigando seu passado, um certo atentado é perpetrado e… Segue a trama. Exatamente como num gibi. Tome-se uma edição qualquer de uma revista mensal dos X-Men e teremos uma história como a do filme. Os personagens estão lá, envolvidos em suas relações, precedidos de um passado complexo, veteranos de muitas situações, participando de mais uma aventura, que terá desdobramentos nas edições seguintes. Assim como no filme.

“X-Men 2” tem um certo aspecto de um capítulo de novela, no bom sentido. No bom sentido, porque o que está sendo ressaltado é a competência do diretor para dar o caráter realista à história. Saímos do cinema acreditando que os mutantes existem. Os personagens na tela são tão plausíveis, verdadeiros, humanos, que não há como duvidar que os mutantes existem. Seus sentimentos e paixões, amores não correspondidos (Wolverine e Jean Grey), medos, dificuldades da adolescência (Vampira e Homem de Gelo), complexos de rejeição (Noturno), são semelhantes aos de qualquer espectador. A cena em que Bobby Drake conta aos pais que é um mutante é idêntica a qualquer cena em que um filho diz aos pais que é um homossexual. As reações são as mesmas, as falas são as mesmas, basta trocar a palavra “homossexual” por “mutante”. Talvez não seja intencional, mas a lição de tolerância foi passada.

O mérito aqui também pertence ao conceito dos X-Men em si, que é nada menos do que genial. Os X-Men não lutam contra nenhum vilão em especial, mas contra o preconceito em geral, que é um mal difuso, tanto nos E.U.A. como no restante do mundo. Os X-Men são heróis, mas são perseguidos, odiados e temidos pelas mesmas pessoas cujas vidas salvaram, se arriscando contra ameaças sem fim. O conceito é complexo e ousado. A ideologia que o preside é a mesma que orientou a criação dos personagens da Marvel Comics em geral, nos anos 1960.

Stan Lee, roteirista da Marvel, que na época era apenas uma minúscula editora iniciante, teve a idéia de criar como heróis personagens que tivessem problemas. Personagens contraditórios, complexos, multidimensionais, com os quais as pessoas comuns fossem capazes de se identificar. Os Estados Unidos dos anos 60 estavam cansados dos personagens planos, unidimensionais, unilaterais, maniqueístas, como o Super Homem e a Mulher Maravilha, da DC Comics. A editora que então vinha dominando o mercado há décadas se viu vencida pela concorrência da Marvel, derrotada pela própria perfeição imaculada. Os heróis da DC eram os ícones dos E.U.A. em sua fase áurea e incontestada, os símbolos de uma pureza irretocável. E falsa.

Nos anos 60 os E.U.A. estiveram mais do que nunca dispostos a rever sua auto-imagem, levados a isso pelo choque que foi o assassinato de Kennedy, pela descoberta de que sua intervenção no Vietnã era uma fraude, pelo movimento dos direitos civis, pela contracultura, etc. Os heróis da Marvel estavam sintonizados com seu tempo. Eram todos complexos, defeituosos, aberrantes. O Homem-Aranha era um nerd que adquiria poderes, mas não tinha dinheiro para pagar as contas, e ainda por cima odiado pela mídia. O Hulk era um monstro perseguido pelo exército. Mais subversivo impossível. O Demolidor era um advogado cego.

Dentro dessa onda criativa, Stan Lee concebeu os X-Men, aberrações genéticas, condenados a lutar para provar que, apesar de diferentes por causa de seus poderes, ainda eram humanos. Os X-Men originais, entretanto, não fizeram muito sucesso na época e amargaram um certo ostracismo. Em meados dos anos 70 o roteirista Chris Claremont assumiu as histórias e criou uma nova leva de personagens, novos alunos para o Professor X. Além disso, deu uma forma final ao argumento básico, privilegiando a luta contra o preconceito.

Ousadamente, Claremont assimilou a luta dos X-Men por reconhecimento à luta de qualquer minoria dentro do mosaico que são os E.U.A.. Os mutantes se tornaram o espelho, dentro dos quadrinhos, para os negros, os índios, os irlandeses os judeus, os homossexuais, as mulheres, os católicos, os latinos etc. A assimilação das minorias e a tolerância mútua entre elas é a ilusão heróica que preside a mentalidade dos estadunidenses progressistas e o seu projeto de sociedade. Esse projeto de assimilação, tolerância e aceitação está implícito nas histórias dos X-Men e é isso que lhes dá a sua força.

Claremont desenvolveu esse argumento e explorou as vidas de seus personagens, fazendo delas uma novela, da qual foi o autor por mais de vinte anos. No decorrer desse longo período os personagens ganharam vida própria, ganharam densidade dramática e também legiões de fãs. Pertencem a esse período as histórias escritas em parceria com os desenhistas John Byrne (que depois seria também roteirista de grande sucesso do Quarteto Fantástico e do Super Homem) e Terry Austin, entre as quais se sobressai a “Saga de Fênix”, provavelmente uma da melhores histórias em quadrinhos já escritas (e cujos primeiros sinais despontam em “X-Men 2”, para delírio dos que foram leitores do gibi).

Por força de histórias como essa, os X-Men se consolidaram como o protótipo do grupo de heróis. Nos anos 90, Claremont se retirou da Marvel. Os X-Men se tornaram mais um grupo qualquer, dentro de uma multidão de imitações produzidas dentro da própria Marvel e em outras editoras. Mas a lembrança da fase áurea persistiu na mente dos fãs, graças a personagens inimitáveis como Wolverine, Vampira, Magneto, justificando o interesse em se produzir o filme.

Como foi dito anteriormente, é tão fácil identificar-se com eles, que nos sentimos como eles. Saímos do cinema acreditando que também somos mutantes. O escriba por exemplo, acabou descobrindo que também tem um poder mutante. O poder de desvendar tramas políticas em qualquer filme, texto, idéia ou frase. Tome-se o próprio “X-Men 2” por exemplo.

A cena que considero crucial para o entender o aspecto político do filme está perto do final, quando os X-Men vão ao Presidente dos E.U.A. apresentar suas razões, mostrando que assim como há mutantes perigosos, há também humanos perigosos, que já iniciaram uma guerra entre os dois grupos, etc. e tal. Nessa cena o Professor X diz que os mutantes vieram para ficar. Wolverine diz que estarão de olho. Aparentemente, trata-se de uma cena forçada, que causa um certo constrangimento, especialmente em quem já está se acostumando a ver o Presidente estadunidense como uma figura inerentemente detestável.

            Uma cena destinada a diluir o conteúdo subversivo intrínseco ao conceito dos X-Men. O público das histórias em quadrinhos está acostumado a conviver com personagens contraditórios, anti-heróis, que não são o que aparentam. O público de cinema, mais genérico, exige personagens planos e unilaterais. Não pode restar a menor sombra de dúvida ou suspeita sobre o seu verdadeiro caráter. Os heróis tem que ser heróis e os vilões tem que ser vilões. Os heróis não podem terminar o filme com a imagem de vilões. Por isso, o Professor X faz questão de ir a Washington, limpar a barra de seu time com o Presidente. O Presidente precisa saber quem são os mocinhos. Por isso a necessidade de explicar os planos de Stryker ao Presidente. Somente depois disso o espectador (o espectador estadunidense, é claro) pode ir dormir tranqüilo. O Presidente não está mais pensando mal de seus heróis.

            A mensagem dessa cena é o contrário disso. Ela significa que há uma perseguição em curso nos Estados Unidos. Uma perseguição contra todos os que pensam diferente. Contra todos os comunistas, anarquistas, ecologistas, pacifistas, hackers, ativistas de todas as causas, militantes em geral, “refuseniks” como são chamados por lá. Essas pessoas são consideradas ameaças pelo “status quo”. Assessores de segurança (como o Stryker do filme) pedem o seu enquadramento imediato. Atentados são fabricados (como o de Noturno no filme) para justificar a perseguição das forças totalitárias aos que pensam diferente.

            No epicentro da paranóia, o Presidente dos E.U.A. com cara de retardado (como o Presidente do filme). Ele nos teme a todos, nós que pensamos diferente, nós comunistas, anarquistas, pacifistas, humanistas, racionalistas, ecologistas, nacionalistas, (assim como os mutantes do filme). Nós temos um gene que nos faz detestáveis aos olhos das autoridades de plantão. Temos o gene que nos faz perigosos, incontroláveis. O gene que eles odeiam e invejam, porque é o que lhes falta. O gene da inteligência. Nós somos temidos por que somos diferentes. Mas viemos para ficar. E estaremos de olho.

Daniel M. Delfino

24/05/2003