“Supremacia Bourne” e a doutrina Bush
13 de dezembro de 2008
“SUPREMACIA BOURNE” E A DOUTRINA BUSH
(Comentário sobre o filme “Supremacia Bourne”)
Nome original: The Bourne Supremacy
Produção: Estados Unidos, Alemanha
Ano: 2004
Idiomas: Inglês, Russo, Alemão, Italiano
Diretor: Paul Greengrass
Roteiro: Robert Ludlum, Tony Gilroy
Elenco: Matt Damon, Franla Potente, Brian Cox, Julia Stiles, Karl Urban, Gabriel Mann, Joan Allen, Marton Csokas
Gênero: aventura, mistério, thriller, ação, drama
Fonte: “The Internet Movie Database” – http://www.imdb.com/
Os filmes do personagem Jason Bourne são uma espécie de epitáfio do gênero dos filmes de espionagem (Jason Bourne é o personagem de uma trilogia de livros de espionagem do escritor Robert Ludlum). O tipo de trama do qual o personagem em questão participa em “Supremacia Bourne” representa uma mutação temática radical dos filmes de espionagem, em direção à consolidação de um cenário pós-Guerra Fria.
O fim da Guerra Fria trouxe sérias complicações temáticas para a série 007. Complicações das quais James Bond somente se reergueu recentemente, com o último filme protagonizado por Pierce Brosnan, que só foi bem sucedido porque assumiu e confirmou definitivamente o lado “kitsch” do personagem. Jason Bourne, por outro lado, atua num cenário marcado por uma outra estrutura de plausibilidade. Uma estrutura muito mais próxima à do nosso “mundo real” que do universo de 007.
No mundo pós-Guerra Fria do agente Jason Bourne desapareceu o conflito EUA x URSS, que fornecia o pano de fundo para as tramas das disputas entre agentes secretos. A Guerra Fria era o conflito que fornecia às superpotências em oposição a justificativa para manterem uma corrida armamentista em espiral, a qual produzia, entre outras coisas, armas nucleares e agentes secretos.
A guerra é “a continuação da política por outros meios”, dizia Von Clausewitz. E a espionagem é a continuação da guerra em tempos de paz. As disputas entre os Estados se resolvem, em última instância, pela força militar, o que configura o estado de guerra declarada. Em tempos de paz, os Estados em oposição recorrem à diplomacia e à espionagem para levar adiante sua guerra não-declarada. A Guerra Fria foi um período de guerra não-declarada entre as duas superpotências e de apogeu da espionagem.
A referida disputa entre os Estados não é uma excepcionalidade acidental do sistema internacional, mas uma determinação estrutural do modo de reprodução sociometabólica do capital. O capital global é um sistema hierárquica e conflitivamente estruturado, inerentemente instável e incontrolável. O conflito faz parte de sua natureza mais íntima, manifestando-se em múltiplas dimensões de destrutividade crescente: disputa entre indivíduos, entre empresas, entre Estados e entre sistemas. As duas grandes Guerras Mundiais são o atestado definitivo da conflitividade e da destrutividade inerentes a esse sistema.
A Guerra Fria, por sua vez, pareceu um parêntesis anômalo no decurso do qual a superpotência capitalista defrontou-se com a superpotência que representava a suposta alternativa “socialista” ao capital, vivenciando então a dimensão destrutiva terminal do conflito entre sistemas. Encerrado esse parêntesis, porém, o capital continua a manifestar o nível mais elevado e terminal de sua conflitividade destrutiva estrutural, o nível do conflito intersistêmico. Não havendo mais o sistema supostamente socialista para opor-se ao capital, este passa a buscar adversários numa parte do mundo que não esteja inteiramente assimilada ao capital.
Mas o que é hoje o mundo não-capitalista? Não existe. E na ausência desse adversário concreto, é preciso criar um inimigo qualquer, mesmo que seja fictício. Em lugar da Guerra Fria como princípio totalizador/conflitivo estruturador da dinâmica política internacional, erige-se o mito de uma “guerra contra o terror”. Em lugar da URSS como adversário sistêmico, temos a “Al Qaeda”. Convenientemente, temos um adversário que não pode ser delimitado sob qualquer critério racional. O terror é ubíquo e onipresente. Está simultaneamente em toda parte e ao mesmo tempo em lugar nenhum. O terrorista é um inimigo sem rosto, sem nome e sem pátria, movendo-se num cenário sem fronteiras e sem restrições.
Qualquer elemento subitamente tornado inconveniente para a “lógica” do sistema pode ser “plausivelmente” acusado de terrorista e transformado em inimigo, sendo subseqüentemente caçado e morto pelas forças da “ordem”. Essa indeterminação pode se prolongar interminavelmente, visto que a “guerra contra o terror”, uma vez iniciada, por força das características do objeto contra o qual se define, pode nunca ter fim.
A conflitividade estrutural do sistema do capital encontra assim o pretexto complementar e necessário em função do qual sua destrutividade sistêmica pode se deslocar indefinidamente para fora de qualquer espacialidade e temporalidade concretas. George W. Bush encontra
A situação geopolítica global assim configurada dá origem a uma crise temática do universo ficcional da espionagem. Como justificar dramaticamente a atuação de agentes secretos num mundo onde a oposição ao capital não possui mais uma face racional claramente identificável?
A indústria hollywoodiana do entretenimento, trabalhando com vistas a um mercado global, não pode endossar integralmente a tese bushiana da “guerra contra o terror”, demonizando explicitamente povos, países, religiões. Esse procedimento expõe-se ao risco de atrair a hostilidade anti-estadunidense e prejudicar o mercado dos filmes. Assim, o adversário preferencial do herói/espião precisa ser identificado com algum tipo de oposição abstrata e genérica aos valores “consensualmente” aceitos do mundo globalizado.
Um ditador do Terceiro Mundo, um político corrupto, um traficante internacional, um mafioso russo, são exemplos característicos de subprodutos deletérios do sistema hierárquico-conflitivo do capital que podem ser apresentados como anomalias patológicas a serem devidamente extirpadas. São inimigos convenientes que podem ser justificadamente caçados e mortos sem que isso ofenda a boa consciência do “espectador médio global”, se é que se pode falar em algo tão abstrato.
Jason Bourne é um personagem perfeitamente assimilável a essa “consciência média global” abstrata. A sua crise dramática representa uma espécie de acerto de contas com a má consciência do mundo da espionagem pregressa. Apropriadamente, ele é um personagem amnésico, que precisa ao mesmo tempo tentar entender e combater seu passado. No primeiro filme (“Identidade Bourne”), ele tenta fugir desse passado. Em “Supremacia Bourne”, ele terá que enfrentá-lo.
O “mundo da espionagem pregressa” é aquele em que os inimigos “podem ser justificadamente caçados e mortos”. Um mundo onde é legítimo invadir qualquer país e matar qualquer pessoa para obter objetivos geopolíticos estratégicos. Jason Bourne é um agente que realizava operações desse tipo. Quem sintetiza melhor o “modus operandi” desse sistema é o personagem do veterano e competente Brian Cox, que diz, em 30 anos de agência (CIA), ter “encoberto muita @#$%& em quatro continentes.”
Entretanto, Bourne quer se afastar desse mundo. Ele corporifica o assassino com crise de culpa. Bourne faz questão de contar a verdade para a filha de um casal de vítimas suas, pois descobriu a importância da verdade ao ter vivido uma espécie de vida de mentira. Para se livrar das mentiras, ele terá que enfrentar a “banda podre” da CIA, a organização para a qual trabalhava.
Nesse sentido, Bourne é um herói que está simultaneamente dentro e fora do sistema. Ele é um herói convincente precisamente por isso. Essa ambigüidade lhe garante a independência necessária para agir. A sua independência em ação é o prato principal do filme. O jogo de gato e rato que ele disputa contra a CIA, enfrentando simultaneamente sua face oficial e sua “banda podre”, coadjuvadas pelas respectivas conexões (empresário russo corrupto, etc.), fornece a definitiva demonstração de habilidade de um espião. É então que Jason Bourne demonstra o seu “realismo” em relação à fantasia desbragada de 007. Ao mesmo tempo, ele exibe também a dose certa de raciocínio rápido e adrenalina que se requer de um bom filme de ação. Em matéria de filme de ação com neurônios, “Supremacia Bourne” está definitivamente acima da média.
A luta de Bourne à margem do sistema é uma opção dramática inteligente para o contexto do pós-Guerra Fria. Na falta de um adversário de grande porte, o sistema volta-se contra si mesmo. A tarefa da CIA no contexto do filme é “limpar a sujeira” deixada por operações fracassadas no passado. Ao invés de um objetivo estratégico de grande porte, temos a corriqueira tarefa de “por ordem na casa”. Como filme de espionagem, “Supremacia Bourne” segue assim uma linha “minimalista”, propondo ao espectador um objetivo limitado. Bourne não está tentando salvar o mundo, mas salvar a própria pele. E subseqüentemente, conseguir vingança.
A cúpula da CIA, por sua vez, está mobilizada para caçar o agente transviado Jason Bourne. Não é apenas o próprio Bourne que está em crise de consciência, mas a agência também. A disputa entre os personagens de Brian Cox e Joan Allen, representando respectivamente a “banda podre” e a nova face oficial da agência, não deixa de representar também uma espécie de acerto de contas da CIA. A agência vive a transição do “vale tudo” da Guerra Fria para o mundo “politicamente correto” da globalização.
Parece um contra-senso falar em “politicamente correto” no cenário da espionagem. Mas a escolha de uma mulher para liderar a transição não deixa de ser sintomático a esse respeito. Ao final, Bourne alcança algum tipo de entendimento com a nova manda-chuva da organização e aparentemente coloca-se à disposição para um terceiro episódio.
Em resumo, para ser bem sucedido, um filme de espionagem não pode endossar explicitamente a “doutrina Bush” da “guerra contra o terror”, mas precisa tangenciá-la sutilmente. É o que este “Supremacia Bourne” faz com competência.
Daniel M. Delfino
05/10/2004