“Sr. e Sra. Smith”: Guerra dos sexos no cinema
13 de dezembro de 2008
“SR. E SRA. SMITH”: GUERRA DOS SEXOS NO CINEMA
(Comentário sobre o filme “Sr. e Sra. Smith”)
Nome original: Mr. & Mrs. Smith
Produção: Estados Unidos
Ano: 2005
Idiomas: Espanhol, Inglês
Diretor: Doug Liman
Roteiro: Simon Kinberg
Elenco: Brad Pitt, Angelina Jolie, Vince Vaughn, Adam Brody, Kerry Washington, Keith David, Chris Weitz, Rachael Huntley
Gênero: ação, comedia, romance thriller
Fonte: “The Internet Movie Database” – http://www.imdb.com/
“Sr. e Sra. Smith” é um filme de ação misturado com comédia de costumes. O casal do título (Brad Pitt e Angelina Jolie) é formado por dois assassinos profissionais que escondem a profissão um do outro. O filme parece tentar especular com uma questão do tipo: o que aconteceria com James Bond se ele se casasse com uma das bondgirls? A estabilidade do casamento destruiria a vida subjetiva do casal? Um seria anulado pelo outro? Ou ainda, como seria se, no casal de “True Lies”, os dois fossem espiões?
Evidentemente, no filme em questão, algo dá errado, a mentira é revelada, os dois pegam em armas um contra o outro e haja tiroteio. O confronto armado coincide com a crise da estagnação do casamento no estágio de seus cinco (ou seis) anos de duração. Este filme de uma piada só tenta explorar ao extremo a seguinte situação-problema: até que ponto um casal pode viver junto sem que um saiba a verdade sobre a vida do outro (ou especificamente, sua profissão)?
O título “Sr. e Sra. Smith” nos remete para a sua tradução em português, que daria algo como “Sr. e Sra. Silva”. A conotação com que o mais comum dos sobrenomes assim aparece indica a tentativa de jogar com um efeito de identificação imediata, em função da sua disseminação. “Sr. e Sra. Smith” significa nesse caso algo mais ou menos como “Sr. e Sra. Qualquer Um”, no sentido de se dizer que os dilemas do filme são aplicáveis a qualquer casal. Essa tentativa expressa no título se coaduna com a estratégia de desenvolver a narrativa como uma discussão dos problemas de um relacionamento comum. Com direito a diálogos com um terapeuta de casais.
É claro que a tentativa de apresentar um casal composto pela dupla Angelina Jolie e Brad Pitt como um “casal comum” é algo que só funciona no cinema. Colocar dois símbolos de beleza desse porte num mesmo filme é um óbvio chamariz de público. Em alguns casos, o tiro sai pela culatra: o comentário sobre o relacionamento entre os astros durante a filmagem atrai mais a atenção da audiência do que o próprio produto da filmagem. Fofocas em tablóides são capazes de torpedear qualquer estratégia publicitária de lançamento. “Sr. e Sra. Smith” escapou de raspão desse perigo.
O título também tem algo a dizer sobre a forma como a sociedade hierarquiza os indivíduos conforme o sexo. O modo de tratamento usado na expressão com que se denomina o casal confere uma clara precedência ao sexo masculino. “Smith” é o sobrenome de um dos dois, mas se aplica a ambos. O patriarcado se expressa no sobrenome. O casal “Sr. e Sra. Smith” é concebido como uma unidade na qual o papel definidor cabe ao elemento masculino. Cabe à mulher adotar o sobrenome do marido. Especialmente nos Estados Unidos, é comum se usar a forma “Sra. Fulano de tal”, eclipsando o nome da mulher no do homem.
Entretanto, o que aparece na tela é algo diferente. Na medida em que um filme de entretenimento pode servir como recorte sociológico da realidade, o objeto em questão apresenta uma situação ligeiramente diferente. Na estrutura do casamento pós-moderno e pós-feminista, a mulher se encontra numa posição credora em relação ao homem. No novo “status quo” é o homem que deve fazer concessões para manter a estabilidade do casal. Os milênios de opressão que o patriarcado infligiu às mulheres pesam sobre as consciências masculinas e legitimam as exigências femininas. A narrativa de que as mulheres foram oprimidas já se encontra consolidada no senso comum e a idéia de que se deve fazer-lhes justiça já opera num plano inconsciente e mediato como força legitimadora de uma nova posição relativa entre os sexos.
Evidentemente, estamos longe, tanto no filme como na realidade (muito mais na realidade) de uma relação de igualdade substantiva entre os sexos. Isso não significa que não exista uma camada de mulheres profissionalmente independentes para as quais o casamento deve oferecer mais do que aquilo que oferecia a uma dona de casa à moda antiga. O casamento (e a constituição de uma família) não mais define essa mulher, ele se lhe oferece como uma possibilidade entre outras. E aparentemente, os homens não estão culturalmente preparados para oferecer esse grau de complementaridade. É claro que estamos falando, como foi dito, de uma certa camada da população, e é preciso acrescentar que se trata de uma camada bastante restrita. Como convém a uma produção hollywoodiana, trata-se de um casal burguês estadunidense típico. Tanto o Sr. como a Sra. Smith são protagonistas e não reles coadjuvantes em seus respectivos ambientes profissionais e esferas de relacionamento pessoal.
Na medida em que um filme de entretenimento não serve como recorte sociológico da realidade, a mencionada inversão formal das posições hierárquicas relativas entre os sexos no casal do filme em questão pode ser creditada apenas à correlação de forças contingente entre as assimétricas capacidades expressivas da dupla de astros escalados como protagonistas. Brad Pitt não convence quando precisa expressar algo mais maduro do que um símbolo de beleza juvenil, como deve ser o Sr. Smith, ainda que em outras ocasiões tenha demonstrado talento como ator. Neste confronto, ele está claramente inferiorizado em relação à Angelina Jolie, a qual, ainda que não tenha o mesmo talento dramático, possui carisma de sobra para representar o tipo misterioso de mulher fatal da Sra. Smith. O seu tipo de beleza foge ao padrão clássico do rosto perfeito, mas insinua um tipo peculiar de fascinação que faz com que, mesmo que em alguns momentos ela consiga parecer feia, sempre deixa a certeza de que na verdade é muito bonita (e o desejo insaciável de observá-la sempre mais para confirmar essa certeza).
Mas aqui corre-se o risco de resvalar para as apreciações subjetivas, pelo que é conveniente voltar ao tema da relação entre os dois. O casal está em crise e tenta resolver a situação com a ajuda de um terapeuta. Para que o processo funcione, como convém à mentalidade estadunidense, os dois terão que trocar alguns tiros. A guerra dos sexos não é conotativa, mas literal. Depois que partem para as vias de fato (e põem a casa abaixo, para espanto dos vizinhos), a química volta a funcionar. A atração se sobrepõe à competição.
Decerto tudo também está envolto num clima de comédia, embalado pela trilha sonora de inspiração latina, que nunca deixa escapar a certeza de que a competição do casal não passa de mera provocação mútua (com auge na cena de tango). A comédia e o romance se diluem infelizmente na banalidade dos filmes de ação, quando os tiroteios começam a passar da conta, já depois da reconciliação. E como filme de ação, não temos um produto bem resolvido, já que o “plot” é um mero pretexto para o confronto do casal. Obtida a reconciliação, não há mais motivos para os tiroteios. E assim como eles continuam injustificadamente além do que seria aceitável, encerram-se injustificadamente de maneira abrupta antes do que se poderia prever.
No final das contas, o casal volta triunfante para a sessão de análise. Se no começo da história a constatação de que o casal não mais fazia sexo com freqüência era um claro sintoma de crise da relação, a novidade de que voltaram a fazê-lo (com bastante freqüência) é a evidência de que venceram o “desafio” proposto pelo terapeuta. É interessante que o filme coloque o sexo como critério de uma relação saudável, mas é curioso que apresente a prática do sexo como uma atividade a ser medida apenas quantitativamente. Mas talvez aqui se esteja exigindo mais sutileza do que se pode esperar desse tipo de filme.
(Talvez a avaliação irregular se deva ao fato de que o escriba fosse o único solitário numa audiência composta de casais. Em sua defesa, este espectador solitário pode alegar que tal programa não foi sua opção inicial. E agregar a essa defesa uma acusação. A rede de cinemas “Cinemark” não tem respeito pelos cinéfilos que freqüentam seus “multiplex” [caso deste que vos escreve], pois muda a programação de suas salas a despeito daquilo que está anunciado no seu website e mesmo nas telas que informam os horários das sessões na própria bilheteria. O alvo inicial deste crítico não era “Sr. e Sra. Smith”, mas seus planos tiveram que ser mudados de última hora porque a sala que exibiria o filme visado estava indisponível por conta de outro “evento”. E isso a despeito de que, conforme assinalado acima, nem o website da rede nem as telas que anunciam a programação na própria bilheteria davam conta de tal mudança. A gravidade da mudança repentina reside em que, ao contrário dos críticos de cinema profissionais, que recebem convites para pré-estréias, o acima assinado é um amador anônimo que trabalha e estuda. Sendo assim, o fato do único cinema da rede, numa cidade nada pequena como São Paulo, a exibir determinado filme em versão legendada, em determinado dia da semana [o único dia disponível na agenda], mudar sua programação na última hora e sem o devido aviso ao público, constitui um contratempo nada desprezível!!!! E para além da acusação, passa-se a uma consideração de ordem estético-sociológica. O pessoal de atendimento mostrou-se incapaz de compreender a indignação deste consumidor, pois parece não ser capaz de perceber que é possível subjetivamente preferir um filme ao outro. Para a rede de cinemas, não faz sentido que este cinéfilo prefira assistir o filme A ao B, pois do seu ponto de vista são todos iguais. São meros produtos de linha de produção, mercadorias indiferenciadas, como os pacotes de pipoca. O mais triste é que, provavelmente em 90% dos casos, os atendentes têm razão. Sendo assim, como este comentário não é assinado por um Rubens Ewald Filho, é conveniente encerrar o chilique e enfiar a viola no saco. Ou, como se diz hoje em dia, calçar as sandálias da humildade).
Daniel M. Delfino
21/07/2005