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“Rei Artur”: Cadê o cálice sagrado?


13 de dezembro de 2008

“REI ARTUR”: CADÊ O CÁLICE SAGRADO?

(Comentário sobre os filmes “Rei Arthur” e “Tróia”)

Nome original: King Arthur

            Produção: Estados Unidos, Irlanda, Inglaterra (UK)

            Ano: 2004

            Idiomas: Inglês, Latim, Gaélico

            Diretor: Antoine Fuqua

            Roteiro: David Franzoni

            Elenco: Clive Owen, Ioan Gruffudd, Mads Mikkelsen, Joel Edgerton, Hugh Dancy, Ray Winstone, Ray Stevenson, Keira Knightley, Stephen Dillane

Gênero: ação, aventura, drama, guerra

            Nome original: Troy

            Produção: Estados Unidos, Malta, Inglaterra (UK)

            Ano: 2004

            Idiomas: Inglês

            Diretor: Wolfgang Peterson

            Roteiro: Homero (poesia), David Benioff

            Elenco: Eric Bana, Orlando Bloom, Julian Glover, Brian Cox, Nathan Jones, Adoni Maropis, Jacob Smith, Brad Pitt, John Shrapnel, Brendan Gleeson, Diane Kruger, Siri Svegler

            Gênero: ação, drama, história, romance

            Fonte: “The Internet Movie Database” – http://www.imdb.com/ 

            Está em cartaz um novo filme contando a história do Rei Artur. Assim como a recente produção de “Tróia”, este novo “Rei Artur” fica bastante aquém na tarefa a que se propõe de apresentar uma versão do que teria sido a história real que deu origem às lendas. Lendas que por sua vez deram origem à literatura. No caso de “Tróia”, o fracasso é ainda mais estrepitoso, visto que a “Ilíada” é o marco fundador da literatura ocidental.

            Adaptar uma obra literária para o cinema não é uma tarefa fácil. Não é sempre que se tem disponível a paixão e a capacidade de um Peter Jackson, responsável pela monumental trilogia “O Senhor dos Anéis”, para fazer o serviço. E por falar nisso, é evidente que o sucesso artístico e comercial da saga do Um Anel foi o exemplo que inspirou aos executivos de Hollywood a idéia de revisitar alguns mitos literários clássicos e transformá-los em filmes épicos. O resultado são as produções caça-níqueis com que fomos brindados, “Tróia” e “Rei Artur”, que nem sequer arranham a densidade literária das obras em que se basearam.

            A trilogia do anel levada às telas por Peter Jackson conseguiu indubitavelmente capturar algo do espírito da obra literária de Tolkien. Se não foi possível agradar a todos os fãs do livro, foi com certeza um exemplo digno e corajoso de recriação cinematográfica de um mundo literário. O mundo fantástico tolkeniano ganhou plausibilidade e consistência nos filmes. Desde o início da série, da visita de Gandalf ao Condado dos hobbits, o espectador passa a acreditar que aquelas criaturas existem. O espectador respira a atmosfera da Terá Média, ele assimila sua lógica, ele admite um mundo onde existem magos, anões, elfos, orcs, etc. O espectador pode se identificar facilmente com aqueles personagens, humanos ou não, e se sentir mais um membro da comitiva do anel.

Isso se deve é claro à opção de Peter Jackson de produzir a adaptação mais literal possível, transpondo para as telas mesmo as criaturas mais fantásticas. O diretor neozelandês teve o suporte financeiro de grandes estúdios para produzir os efeitos especiais e criaturas fantásticas necessárias para dar realismo à adaptação. Mas esse tipo de apoio é algo do qual nenhum diretor hoje pode se queixar, pois qualquer filme como “Tróia” e “Rei Artur” tem à disposição um orçamento da ordem de 100 milhões de dólares. Não é de falta de recursos materiais que esses filmes se ressentem, mas de imaginação mesmo.

Começando por Tróia. A produção de Wolfgang Petersen optou por filmar uma versão “realista” do que teria sido a guerra dos gregos à Tróia. Uma versão em que não há deuses, nem titãs, nem criaturas fantásticas de qualquer espécie. Apenas seres humanos. Isso alivia o filme da necessidade de criar uma atmosfera mágica e fantástica, na qual os deuses olímpicos aparecessem como figuras plausíveis, intervindo no meio dos homens. Essa opção também economiza elenco, já que seria preciso contratar mais uma dúzia de grandes estrelas para dar vida aos deuses.

Seja como for, essa opção enfraquece enormemente o potencial criativo da obra, limitando a presença dos deuses a uma mera crença dos personagens humanos. E por falar em crença, o filme peca exatamente por não apresentar as crenças e idéias dos gregos e troianos tais como teriam sido na época em que a guerra aconteceu (séc. XII a. C.). “Tróia” opta por uma história apenas com humanos, mas esses humanos não são a recriação do que teriam sido os homens da Grécia arcaica. O seu pensamento está mais próximo dos homens de hoje. Os seus valores são os da contemporaneidade, não os da idade homérica.

Agamenon aparece como um conquistador obsessivo, uma espécie de George W. Bush “avant la lettre”, que quer arrebatar Tróia de qualquer jeito. Aquiles aparece como um “pop star” egomaníaco, um astro do esporte que quer a imortalidade a qualquer custo, um “Edmundo” que quer aparecer às custas do time. A relação de Aquiles com Briseida é transformada num romance de tipo moderno, o que não é absolutamente o caso da “Ilíada”. Se há algo na “Ilíada” de Homero semelhante àquilo que os modernos conhecem como amor, é a relação entre Aquiles e Pátroclo, mas isso deve ter sido considerado embaraçoso e difícil demais de ser mostrado.

O que resta então é uma aventura rasteira, uma produção grandiosa, com um elenco até respeitável, mas desperdiçado, despejando frases grandiloqüentes, protagonizando cenas espetaculares, batalhas e duelos que serão esquecidos no fim de semana seguinte. É o mesmo caso do novo filme do “Rei Artur”. Com o adicional de que esta produção comete o mesmo erro, mas com o dobro de incompetência. Se a “Ilíada” é o marco fundador da literatura ocidental, um texto estabelecido há mais de 2000 anos, os contos do ciclo arturiano, datados da baixa Idade Média, proporcionam uma flexibilidade muito maior, que poderia ser criativamente explorada.

A “Ilíada” era originalmente uma coleção de cânticos recitados por poetas ambulantes, os aedos e rapsodos, tendo sido posteriormente reunida e transcrita para o papel por um personagem semilendário, um certo Homero, que teria sido também o autor da “Odisséia”. Tanto a existência de Homero, que teria vivido no século VIII a. C., como a autoria das duas obras que lhe são atribuídas são contestadas e discutidas pelos estudiosos. Mas o que importa é que, no mundo da Grécia clássica, nos séculos VI a. C. em diante, a obra de Homero tinha se tornado o substrato comum da cultura geral popular. A “Ilíada” e a “Odisséia” eram uma espécie de Bíblia para os gregos.

Ou seja, quando se opta por fazer uma adaptação da história da guerra de Tróia que despreza as duas fontes literárias clássicas, está sendo jogada fora uma tradição de 2000 anos. No caso do ciclo arturiano, a tradição a ser manipulada é bem mais recente e menos restritiva, proporcionando talvez uma maior liberdade criativa, mas nem por isso o resultado cinematográfico a que assistimos foi melhor.

Se existe a versão definitiva da guerra de Tróia, narrada na “Ilíada” e na “Odisséia” (a Ilíada é na verdade a narração da “cólera de Aquiles”, que tem lugar durante a guerra de Tróia; alguns dizem que o poema deveria chamar-se “Aquileida”; o episódio do cavalo é descrito apenas na Odisséia), não há por outro lado uma versão definitiva da narrativa do rei Artur. A história do rei Artur aparece pela primeira vez como personagem literário na “História regum Britanniae” (História dos reis da Bretanha), de Geofroy de Monmouth, escrita em 1136 em Oxford. A história do cálice sagrado (Santo Graal) aparece em “Le conte du Graal”, parte de um ciclo de cinco romances escritos por Chretien de Troyes em 1185, em Champagne. Essas duas grandes narrativas foram posteriormente desenvolvidas por outros autores cortesãos, tornando-se o eixo da literatura cavalheiresca, superando em fama a narrativa de outros heróis medievais, como a francesa “Canção de Rolando” e o espanhol “El Cid”.

Essa história literária do rei Artur baseia-se em vagos testemunhos legados por manuscritos anteriores, que desde o século VI mencionam um herói bretão do século V que teria combatido os invasores anglo-saxões. A partir de um certo momento, as histórias incorporam o tema principal da cultura cavalheiresca medieval, o da demanda do Graal, a busca do cálice sagrado, que teria sido usado por Cristo na última ceia.

O rei Artur, mesmo tendo vivido supostamente no século V, é apresentado nessas obras literárias com as características de um rei do século XII, ou seja, da Baixa Idade Média. Na época em que o chefe bretão Artur teria vivido, não existiam castelos, como Camelot, nem cavaleiros de armadura, como os da Távola Redonda. Mas para a literatura medieval, isso não importa. Um rei bárbaro é transformado num rei cortesão. Uma tribo bretã obscura é transformada na corte de Camelot. Um líder pagão seguidor do druida celta Merlin é transformado num defensor da cristandade.

A operação ideológica que transforma um personagem histórico obscuro em mito literário faz parte do processo de consolidação das monarquias medievais, depois da longa desagregação feudal. Encontrar ancestrais mitológicos era algo bastante proveitoso na tentativa de fundar a legitimidade histórica das dinastias britânicas. Mas o ciclo arturiano era um fenômeno “pan-europeu” e não apenas britânico. A lenda do rei Artur também fez bastante sucesso na França e na Alemanha (na época essas regiões não eram países homogêneos como os que conhecemos hoje, mas mosaicos de reinos, feudos, bispados e burgos livres).

            Nessas regiões, tornou-se parte essencial do ciclo arturiano a busca do Santo Graal. Dentre os cavaleiros da Távola Redonda estariam os heróis que recuperaram o cálice para a cristandade. Em algumas versões o autor do feito teria sido Galahad, que teria sido filho de Lancelot. Em outras, o responsável pela conquista do Graal teria sido Parsifal. E ainda, de acordo com outras versões, o nome Santo Graal seria uma corruptela de “sangue real” (esse trocadilho só funciona em francês), uma alusão ao sangue de Cristo, que teria sido herdado pelo filho que o Salvador teria tido com Maria Madalena, que seria o ancestral longínquo do rei franco Meroveu, fundador histórico da primeira dinastia francesa.

As versões diferentes para uma mesma história atestam a popularidade da lenda. A popularidade experimentada pela história do Graal reflete a tentativa de afirmação ideológica dos valores da cavalaria feudal, depois do fracasso das Cruzadas. Os chefes feudais tentaram em sucessivas expedições reconquistar a Terra Santa aos muçulmanos, voltando sempre derrotados. Mas para aplacar seu sentimento de frustração, cultivaram um troféu mitológico, um cálice sagrado, que teria sido encontrado na Terra Santa e trazido para a Europa pelos bravos cavaleiros.

Os senhores feudais não foram bem-sucedidos na reconquista da Terra Santa, mas o foram na criação de uma lenda. Com essa lenda, justificaram seu papel social e legitimaram seu poder. Tornaram-se defensores da cristandade. Tornaram-se também protagonistas do chamado amor cortesão. As mulheres da nobreza, abandonadas pelos cavaleiros que foram para as Cruzadas, tornaram-se destinatárias de uma literatura amorosa protagonizada por cavaleiros e damas. O drama de Tristão e Isolda tornou-se a mais célebre dessas histórias.

            Em resumo, esses dois motivos literários, o de Artur e do Graal, se entrelaçam quase que indissociavelmente. Conforme as sucessivas adaptações produzidas pelos autores cortesãos dos séculos XIII, XIV e XV, o ciclo do rei Artur passa a incorporar outras narrativas, como a lenda de Parsifal e o romance de Tristão e Isolda. Parsifal (ou Percival, numa grafia mais aportuguesada, juntamente com Tristão, aparecem como membros da Távola Redonda)

            Com o Renascimento e o Iluminismo, a Idade Média foi denegrida como uma idade das trevas. Os temas do ciclo arturiano saíram de moda. “Dom Quixote” de Cervantes assestou o golpe de morte na literatura cavalheiresca e deu à luz o primeiro herói literário propriamente moderno. Será preciso esperar pelo “Parsifal” de Wagner, no século XIX, para assistir ao renascimento literário do Graal. A ópera do compositor alemão narra a versão em que Parsifal é o cavaleiro que encontra o Graal e representa o auge do medievalismo redivivo no romantismo europeu.

            O que se pretende mostrar aqui com essa breve digressão histórico-literária é que o universo arturiano possui um rico e flexível repertório de temas e narrativas a ser explorado pelo cinema. Mas em vez disso, os produtores do “Rei Artur” preferiram tentar uma abordagem “histórica” e não literária. Do cenário da Idade Média mitológica, somos transportados para o da queda do Império Romano na Bretanha. Ao invés de um rei bárbaro, temos um soldado romano. Ao invés de uma corte de cavaleiros, temos bárbaros sármatas incorporados ao exército romano.

O resultado dessa opção é que não temos o episódio de Excalibur na bigorna, não temos o romance de Lancelot e Guinevere, não temos a feiticeira Morgana, não temos a traição de Mordred, não temos a Dama do Lago, não temos a ilha de Avalon. O problema em relação ao presente filme “Rei Artur” é que o sabor anacrônico das recriações literárias é o que constitui a própria essência da história do rei Artur. Ele existe mais como personagem literário do que histórico. O filme “Rei Artur” opta pela versão histórica, não pela literária, e aí está sua fraqueza.

Até certo ponto isso é aceitável. Não se pode “obrigar” uma produção cinematográfica a ser fiel a uma tradição literária, como o foi Peter Jackson em relação a Tolkien. A opção pela abordagem “histórica” pode até ser considerada legítima. Mas ainda aqui, não se trata de uma abordagem rigorosamente histórica e sim anacrônica. E nesse caso, o anacronismo não é criativo e sim destrutivo. O Artur do presente filme é uma mixórdia de ideologias contraditórias amarradas de maneira confusa e superficial para se tornarem palatáveis para o espectador contemporâneo.

Artur, no filme, é quase tudo ao mesmo tempo. É soldado romano, defensor da civilização romana, mas é também um Cristão, defensor da Igreja, apesar de ser seguidor da heresia de Pelágio (que negava o Pecado Original), cujos discípulos negavam também a necessidade do batismo. Artur era também um comandante dedicado a seus homens, fiel à ética da lealdade militar, praticamente um membro da tribo sármata de “Rus”. Tribo cujos soldados, agregados ao exército romano, desejam apenas voltar para suas planícies e deixar a Bretanha, o que é bastante diferente dos ideais da cavalaria medieval, que ainda assim não deixam de ser mencionados. Artur é ainda filho de um soldado romano com uma mulher bretã, portanto é parte do povo celta dos bretões, o mesmo povo que combatia como legionário. Ele torna-se assim fundador da nacionalidade britânica.

Temos então o cristianismo herético do século V, os idéias da cavalaria do século XII, o nacionalismo britânico do século XIX, como se fossem todos conceitos intercambiáveis. Todos esses ingredientes são misturados com uma fácil palavra mágica: “liberdade!” Com essa senha, o nacionalismo britânico precoce, a nostalgia dos cavaleiros sármatas, a civilização romana, os ideais da cavalaria, a heresia de Pelágio são todos unificados. Quem pode ser contra a “liberdade”? Até George Bush faz guerra em nome da “liberdade”. Não há conceito mais vago do que esse ideal abstrato de “liberdade”, facilmente impingido a qualquer personagem de qualquer narrativa, quando não se pode mergulhar nas suas reais motivações.

Quem pode não entender o que é liberdade? Com certeza, os bretões que combateram no século V e o Artur histórico não a entendiam do mesmo modo que nós o entendemos. Não combatiam em nome da “liberdade”, muito menos da civilização, da Bretanha, do cristianismo, etc. O Artur histórico devia ser mais parecido com Átila, o huno, do que com o “Arthorius” do filme.

Ao que parece, será preciso esperar por “Alexander”, versão de Oliver Stone para a história de Alexandre Magno, para vermos um épico de verdade no cinema.

Daniel M. Delfino

27/09/2004