“O Retorno do Rei” e a apoteose da fantasia
13 de dezembro de 2008
“O RETORNO DO REI” E A APOTEOSE DA FANTASIA
(Comentário sobre o filme “O Senhor dos Anéis – O Retorno do Rei”)
Nome original: The Lord of the Rings: The return of the king
Produção: Estados Unidos, Nova Zelândia, Alemanha
Ano: 2003
Idiomas: Quenya, Inglês arcaico, Inglês, Sindarin
Diretor: Peter Jackson
Roteiro: J. R. R. Tolkien, Fran Walsh
Elenco: Viggo Mortensen, Sean Astin, Alexandra Aastin, Sean Bean, Cate Blanchett, Orlando Bloom, Billy Boid, Bernard Hill
Gênero: ação, aventura, fantasia
Fonte: “The Internet Movie Database” – http://www.imdb.com/
Anos atrás, vagando a esmo por uma livraria, tive meu olhar atraído por uma coleção de três volumes intitulada “O Senhor dos Anéis”. Folheei um dos exemplares ao acaso. Li alguma coisa sobre hobbits, elfos e anões. Não gostei. Àquela altura, esse tipo de criaturas fantásticas me remeteu imediatamente ao ambiente do grupo de jogadores de RPG do qual meu irmão era mestre. Uma brincadeira que àquela época eu ainda encarava com ressalvas. “Mais um livro de fantasia para adolescentes”. Fechei o livro e perdi a oportunidade de me tornar um conhecedor da obra de Tolkien naquele momento. Meus interesses literários estavam então em outra parte.
Anos depois, folheando a revista SET, me deparei com o anúncio de que uma série de filmes da trilogia “O Senhor dos Anéis” estava em produção. Imediatamente me lembrei daqueles volumes desprezados na livraria, anos atrás. A produção era descrita como um épico para ficar na história do cinema. A primeira imagem liberada era das estátuas dos Argonath. Eu que não resisto a um épico, salivei: “Será?” Nesse momento, meus interesses literários estavam suficientemente abertos a ponto de poder vir a incorporar hobbits, elfos, e anões. Graças a meu irmão e ao seu barulhento grupo de jogadores de RPG.
Subitamente, descobrimos que a obra de Tolkien já era um clássico nos países de língua inglesa, leitura obrigatória nas escolas, inspiradora de bandas psicodélicas e progressivas dos anos 60 e 70, bem como do heavy metal melódico atual. Não me restava outra escolha a não ser encarar o catatau de mais de 1.000 páginas. Para mim, leitor compulsivo, foi um banquete. Devidamente precedido da entrada, a simpática introdução intitulada “O Hobbit”, uma história prévia à saga do Um Anel. E completada pela sobremesa, o “Silmarillion”, que se tornou minha parte preferida. De modo que aos poucos todos fomos progressivamente introduzidos no assim chamado “universo” de Tolkien.
Em breve, com a aproximação do lançamento do primeiro episódio no cinema, ninguém mais estaria incólume. “O Senhor dos Anéis” invadiu os cinemas como um “blockbuster”, espalhou-se por todas as mídias, os livros de Tolkien viraram “best-sellers” nas livrarias, uma avalanche de “merchandising” e bugigangas aqueceu o consumismo dos jovens. Uma nova geração de “fãs instantâneos” surgiu.
“O Senhor dos Anéis” virou uma religião. Como toda religião, tem seus fanáticos, seus neófitos e seus hereges. Há gente que conhece Tolkien de trás para frente e cita-o em élfico fluente como se fosse a Bíblia. Há os que apenas leram o livro ao ouvir falar do filme, como este escriba. Há os fãs pipocas que ouviram falar ontem do Anel e vão ao cinema sem saber sequer o que é um hobbit. A riqueza e a pujança dessa subcultura só tem paralelo em um outro fenômeno de décadas atrás, “Guerra nas Estrelas”, o clássico dos clássicos dos filmes de aventura.
Paradoxalmente, não haveria trilogia “Senhor dos Anéis” se não tivesse havido, vinte anos atrás, “Guerra nas Estrelas”, para fazer do público adolescente o principal filão do mercado de cinema. E ao mesmo tempo, não haveria “Guerra nas Estrelas” se George Lucas não tivesse lido, como todo jovem de sua geração, o livro “O Senhor dos Anéis”, que lhe forneceu um modelo para sua própria saga do bem contra o mal. Agora, o livro vira filme e o ciclo se completa.
Menciono “Guerra nas Estrelas” para falar a respeito do aspecto comercial. Para muita gente, o critério do sucesso comercial, ou da exploração mercantilista do “merchandising” é decisivo para condenar um filme. Se o filme bate recordes de bilheteria e vende bugigangas até se tornar uma praga nauseante, esse filme automaticamente não presta. Só prestam os filmes pequenos, intimistas e que permanecem eternamente desconhecidos do grande público. Discordo desse ponto de vista. Tanto filmes grandes como pequenos podem ser bons ou ruins. Os filmes da série “O Senhor dos Anéis” são bons filmes.
Acho que essa série, como “Guerra nas Estrelas”, é tão grande que transcende a problemática do que é arte e do que é comércio. São fenômenos culturais universais. Na época de seu lançamento, “Guerra nas Estrelas” (1977) foi interpretado à luz do contexto da guerra fria. O Império seria a União Soviética e a Aliança Rebelde seriam o Estados Unidos. Hoje esse contexto está caduco, mas o filme sobreviveu, tanto que até hoje gera continuações (essas sim oportunistas). A guerra fria acabou, mas “Guerra nas Estrelas” continua. E como todos podem ver, é óbvio que hoje os Estados Unidos é que são o Império e todos os que lutam contra eles os rebeldes e Jedis.
Portanto, os filmes de George Lucas sobreviverem porque tocaram em aspectos fundamentais da trajetória humana, expondo a problemática da luta do bem contra o mal. Toda narrativa tenta fazer isso de alguma maneira, mas o fato de permanecerem ou não na memória cultural depende justamente da habilidade do artista em elaborar o tema. Habilidade que George Lucas teve (a esse respeito, remeto aos textos “Darth Vader: a realidade e a fé em Star Wars”, de Danilo José Figueiredo e “Sobre Anakin/Darth Vader e Jesus”, de minha própria autoria). E que Tolkien e Peter Jackson também tiveram.
“Guerra nas Estrelas” sobreviveu e “O Senhor dos Anéis” sobreviverá. Este escriba gostaria que fosse possível que se fizessem filmes gigantescos sobre outras narrativas e outras culturas. Por exemplo, porque não uma versão igualmente suntuosa de “Grande Sertão Veredas”? O maior romance brasileiro transformado em épico cinematográfico? Nas mãos do filosófico Terence Malick, de “Além da Linha Vermelha”, seria pura poesia. Mas isso é sonho. Sendo o mundo o que é, o comércio ainda prevalece sobre a fantasia. É preciso se contentar com o que temos. “O Senhor dos Anéis” cumpre bem o seu papel de obra universal, porque tem consistência literária em sua origem.
Antes de falar dos filmes, é preciso portanto falar dos livros. Pois “O Senhor dos Anéis”, o livro, foi uma obra seminal que tornou possível, como eu disse, o próprio “Guerra nas Estrelas”, embora o cenário possa parecer o mais diferente possível. O misticismo, porém, está todo lá. Tolkien resgatou as fábulas e histórias de fantasia para o mundo moderno. Sua obra foi o ponto de chegada de uma tradição e o ponto de partida de uma nova. Sua inspiração foram as narrativas épicas da mitologia anglo-saxã e nórdica. Como o gigantesco poema finlandês de Kalevala, monumento da cultura oral (como era a Ilíada), de milhares de anos e milhares de versos, até hoje ainda não integralmente transcrito para a forma escrita. Sua descendência inclui todos os jogos de RPG, desenhos como “Caverna do Dragão”, “Harry Potter”, etc..
A respeito das metáforas políticas e culturais de sua obra, Tolkien sempre foi o primeiro a desautorizar a interpretação diretamente ideológica de seus livros, por meio da relação com qualquer figura ou situação da época em que viveu (os livros foram escritos na época da Segunda Guerra Mundial). Não há nazistas, comunistas, Aliados, etc., em “O Senhor dos Anéis”. Sua intenção explícita sempre foi criar um mundo totalmente à parte e novo, uma mitologia original e desvinculada de nossa realidade. Na superfície evidente, é fácil concordar com Tolkien a respeito da avaliação de sua própria criação. As metáforas de qualquer natureza se aplicam muito artificialmente a “O Senhor dos Anéis”. Mas no aspecto interior, no que toca à substância filosófica e psicológica da obra, acho que os livros refletem muito da vivência de Tolkien e de seu pensamento sobre o mundo em que viveu.
Por exemplo, o vôo dos Nazgul sobre Minas Tirith e a sombra que se espalha de Mordor são lembranças do bombardeio da Luftwafe sobre a Inglaterra na II Guerra. Ou ainda, a amizade entre Frodo e Sam é o exemplo de uma relação típica de soldados que estiveram nas trincheiras. Como o jovem Tolkien esteve na Primeira Guerra Mundial. Todo ex-combatente diz que o único sentido para enfrentar a morte na guerra é a presença dos companheiros que estão ao lado. Na trincheira, desaparecem as ideologias políticas e interesses de Estado e resta apenas a amizade entre os soldados. O vínculo da compaixão e da luta contra a solidão e a finitude irremediável num mundo fundamentalmente maligno, é o substrato final de vidas humanas reduzidas a quase nada. Essa experiência foi particularmente forte na I Guerra, em que a mortandade atingiu proporções até então inimagináveis, envolvendo uma massa de jovens alienados em um verdadeiro inferno.
Diante desse inferno, a única reação possível e compreensível é o desejo de voltar para casa. Voltar para o Condado. Para o único lugar onde as coisas ainda são simples, boas e inocentes. Tolkien expressa essa nostalgia de um tempo que já se foi. A tristeza pelo mundo que se perdeu na vida real o inspira a escrever sobre um mundo fictício, para o qual ainda vale a pena voltar. Essa escrita é uma tentativa de consagrar a rejeição apolítica das ideologias na literatura. Depois do que viu nas trincheiras, Tolkien não quer saber de nazistas, comunistas e burgueses. Acha que tudo isso é bobagem. O mundo fora do Condado não lhe interessa. O mundo das pessoas grandes é objeto de lenda e fantasmagoria. Ele vai e vem, mas o Condado fica. Por isso os heróis de sua saga são hobbits. Pequenos, porque permanecem crianças e inocentes.
O idílico lar dos hobbits é uma reminiscência do ambiente campestre inglês do século XIX. O visual dos hobbits (fiel nos filmes ao que é descrito no livro), seus casacos e utensílios, não é medieval, mas relativamente moderno, industrializado. Ainda assim, bastante arcaico e rústico. Hobbits são simultaneamente caipiras e boêmios, apegados aos chamados prazeres simples da vida: uma boa mesa, uma boa cerveja, uma boa erva de fumo, boa música, boas risadas. Essa é a utopia tolkeniana. A atmosfera é pitorescamente inglesa, provinciana, tradicional, rural, radicalmente regionalista, e por isso mesmo universal (como “Grande Sertão Veredas”).
Tolkien é um inglês tradicionalista assumido e militante. O livro tem um sabor de conservadorismo vitoriano tardio. Por exemplo, é assustadoramente assexuado. Não há quase romance na saga do anel. Ele está fora do foco da trama, o que é até compreensível, de qualquer modo. As mulheres da saga, porém, aparecem por uma lente que lembra a do amor cortês do trovadorismo. São figuras idealizadas, beatificadas, como eram as damas da nobreza na literatura do século XIV. Não se podia sequer tocar nelas. Peter Jackson até que tentou remediar isso nos filmes, mas apenas parcialmente.
Tolkien é um inglês tradicionalista, por isso um conservador, mas não no sentido explícito de direita política. O tradicionalista rejeita com enfado qualquer política. Embora reze a cartilha dos iniciantes em política que a tentativa de ser apolítico acaba servindo ao interesse político conservador. A tentativa escapista de Tolkien de ser apolítico, através de uma monumental obra de fantasia, teoricamente apenas colabora para a defesa do “status quo”.
Teoricamente está correto. Mas na prática o mundo não é tão quadrado (felizmente). Por um estranho paradoxo, Tolkien foi descoberto nos Estados Unidos por universitários adeptos da contracultura. Sexo, drogas e rock n’ roll, protestos contra a guerra do Vietnã e “O Senhor dos Anéis” a tiracolo. Esse aspecto paradoxal da trajetória do livro foi para mim a descoberta mais surpreendente. Nos anos 60 o livro era lido como uma inspiração pacifista. O Condado transfigurou-se em utopia hippie. Provavelmente, foi desse caldo de cultura que se alimentou o neozelandês Peter Jackson, o mago encarregado pelos Valar de levar o livro ao cinema. Embora a estética do diretor seja mais ligada à do terror clássico (nazgul, gollum, os mortos da montanha).
Hoje, muitos tentaram associar a carga bélica da trilogia cinematográfica ao ambiente de “guerra contra o terror” de nossos dias. Tentou-se em vão encontrar metáforas no filme para os árabes, os terroristas, etc.. Felizmente, nosso medíocre contexto histórico atual também passará, mas a história da luta para destruir o anel do mal continuará na memória. A permanência do livro se explica pela sua virtude literária. Não apenas pela capacidade do autor de dar verossimilhança ao cenário, de criar paisagens, cronologias, genealogias, linguagens. Detalhes que fazem a delícia dos fanáticos que se empenham em discutí-los e que fazem o tormento dos leitores menos entusiastas, como este escriba, que são obrigados ouvir essas discussões. O livro se sustenta pela capacidade do autor de falar de modo realista sobre o mal, ainda que na forma da fantasia.
Tolkien é um autor de fantasia, mas não ilude seu público. Tecnicamente, a sociedade do anel fracassa, pois Frodo foi incapaz de arremessar o anel no fogo. Este não é destruído senão por acidente. O mal e sua sedução são mais poderosos do que se imagina. O acaso e a esperança são porém forças também atuantes neste mundo. Se a I Guerra foi a perda da inocência de uma geração, a II Guerra foi a ameaça da queda total do mundo diante do mal absoluto. A intensidade com que Tolkien descreve o mal fantástico reflete a vivência de quem testemunhou concretamente a presença do mal no mundo. O mal assolou nossas vidas, maculou nosso mundo. A ferida de Frodo, que nunca cicatriza, é uma metáfora disso. Um mundo maculado pelo mal não pode mais voltar a ser o mesmo.
A esperança está no retorno às coisas simples e ao amor sincero. Por isso, o filme e a saga terminam com Sam voltando para sua casinha de jardineiro e sua família. A trajetória de Sam, protagonista secreto da história, serve de exemplo da ascensão do homem comum, do trabalhador braçal. Peter Jackson, sabiamente, escolheu esta cena para encerrar “O Retorno do Rei” e a trilogia. O tempo da magia e das épocas heróicas passou.
O leitor percebe que eu digo o livro e a história, no singular. Isso é proposital. Faço questão de ver “O Senhor dos Anéis”, tanto o livro como o filme, como uma obra unitária. Se pudesse, assistiria às dez horas de filme em seqüência no cinema. Sonho esse que, apesar das minhas ardentes preces aos Valar, não se realizou. De certo modo, eu tentei. Antes da estréia do “Retorno do Rei”, este escriba e sua sociedade do anel empreenderam uma jornada épica a um dos únicos e distantes cinemas de São Paulo que projetava as versões estendidas da “Sociedade do Anel” e das “Duas torres”, a chamada “versão do diretor”, presente apenas no lançamento em DVD importado, para assistir a ambas num mesmo dia, numa maratona inesquecível de quase oito horas de filme.
Naquele momento amaldiçoei a indústria cinematográfica e sua tendência atual de lançar no cinema versões mutiladas dos filmes. A versão verdadeira, que no caso é chamada de “versão estendida”, está acessível apenas a privilegiados colecionadores de caríssimos DVDs. Nessa nova lógica, há um filme para a coletividade que vai ao cinema e um filme para o público elitista que consome DVDs. Mais um aspecto da desvalorização do público em função da hispostasia do privado.
Depois de assistir às versões estendidas dos dois primeiros episódios, poucos dias antes da estréia do terceiro, ficou claro para mim que “O Retorno do Rei”, em cartaz nos cinemas, é uma versão mutilada. Isso fica evidente pela forma como se dá o andamento da narrativa. A edição é caótica. O ritmo da história é oscilante. Rápido em alguns momentos, lento em outros. Se fosse um desfile de uma escola de samba, “O Retorno do Rei” daria a Peter Jackson péssimas notas no quesito harmonia. Certas partes do enredo avançam com propriedade; outras carecem de sedimentação e ambientação.
Para ter um andamento adequado, acomodando as várias tramas paralelas, “O Retorno do Rei” deveria ter pelo menos cinco horas de duração. Há cenas editadas que prejudicam claramente a perfeita contextualização da obra. Por exemplo, a loucura de Denethor permanece inexplicada se não se mostra que ele também tinha um Palantír. A redenção das almas famintas de Eowyn e Faramir, a aproximação dos dois nas casas de cura de Gondor também foi limada. O que restou foi uma leve insinuação de romance, na cena do casamento de Aragorn e Arwen, com cara de “final de novela das 8”, em que todo mundo se casa. O fim de Saruman não nos foi mostrado. O duelo entre o Rei dos Bruxos e o Mago Branco, que foi explicitamente anunciado pelo primeiro, não se realizou, para frustração geral. E assim por diante.
Toda transposição de livros para o cinema sofre de um sério problema. A imagem filmada de certo modo corrompe a faculdade que o livro tinha de inspirar a imaginação do leitor. Depois que o filme foi feito, ao ler o livro, o que se imagina é a imaginação do diretor. Os personagens do livro aparecem na tela mental com o rosto dos atores do elenco. Portanto, Peter Jackson de certo modo “estragou a brincadeira”, de um ponto de vista purista radical. Não é mais possível imaginar livremente o universo de Tolkien. Um filme a partir de um livro é uma nova obra que de certo modo suplanta a original. Como se o objetivo de todo livro fosse “chegar a ser filme” e ele morresse depois disso. O filme vulgariza o que estava restrito ao público literário. Como em toda vulgarização, algo se perde e algo se ganha.
Para um fã menos radical, como este escriba, que não se considera dono da história, o esforço de Peter Jackson foi apesar de tudo válido. Todo fã do universo tolkieniano deve ver nele seu herói. Se não fosse por ele, ninguém estaria falando na saga do anel. Se não gostarem, basta, como eu disse, não ver o filme e ficar com o livro. Não senti falta de Tom Bombadil, nem do expurgo do Condado. Não gostaria de fazer disso uma discussão entre fãs sobre o que gostaram ou não no filme, mas como qualquer leitor e espectador, tenho meus personagens e minhas cenas preferidas.
Me chamaram a atenção tanto como os protagonistas e encontraram um lugar especial nas minhas lembranças. Boromir no primeiro filme, devido à interpretação de Sean Bean; Théoden no segundo; Eowyn, com sua representação da tristeza de ser mulher num mundo dominado por homens, e Pippin, o mais hobbit dos hobbits, no terceiro. Gostei mais do povo de Rohan, com seu visual bárbaro e viking, do que de Gondor, apesar do gigantismo surreal e ensandecido de Minas Tirith. O lado maligno foi mostrado de forma um tanto barroca, exagerada, com atenção especial do diretor para as caretas e poses de orcs e monstros. Aqui Peter Jackson exercitou sua faceta mais criativa.
Considero que, de modo geral, o espírito da obra foi mantido no filme. Mesmo assim, com todos os problemas, com o lançamento de uma versão mutilada, acidente pelo qual aliás o diretor é apenas parcialmente responsável; “O Retorno do Rei” é o melhor dos três filmes. Incompleto ou não ele satisfaz. Não pode ser descrito como algo menos do que monumental. É mais um daqueles filmes para o qual todos os adjetivos são pequenos. Monumental, gigantesco, épico, colossal, avassalador, surpreendente, chocante, devastador, arrebatador, vibrante, luminoso, redentor. O “flashback” de Sméagol-Gollum, os faróis de Gondor se acendendo nas montanhas, a canção de Pippin nos salões de Denethor, a cavalgada dos rohirrim, o ataque ensandecido de Théoden contra os olifantes, o duelo de Sam e Laracna, a alegria do reencontro da sociedade, Aragorn e os homens curvando-se para os hobbits, a despedida final nos portos cinzentos, todas essas cenas são realizações magistrais.
Ao ler a SET de anos atrás, este escriba ficou intrigado com a idéia de lançar em três episódios uma história filmada de uma vez só, com intervalos de um ano entre cada episódio. Quando terminou a “Sociedade do Anel”, estava definitivamente fisgado e desesperado para ver a continuação. Percebi que ali estava se iniciando um fenômeno especial na história do cinema. A espera de um ano por cada novo filme só fazia aumentar a expectativa (os antenados irmãos Wachowski exploraram a idéia em “Matrix Reloaded” e “Revolutions”; o oportunista Quentin Tarantino fará o mesmo com “Kill Bill”).
Com “As Duas Torres”, diminui a magia e cresce o épico. Subitamente, com o fim do “Retorno do Rei”, uma estranha tristeza toma conta. Não haverá mais Terra Média no cinema. O clima é de despedida. O fim de uma maratona. O filme é uma epopéia em si e também para o público. Fosse qual fosse o final da trilogia, e ele foi exponencial, a sensação de alívio e de recompensa foi bastante palpável. A narrativa fantástica cumpriu sua função de veicular uma história exemplar e expor os valores pelos quais se deve viver. “O Senhor dos Anéis” marcou uma época na vida de cada um e todos vão se lembrar dessa época de suas vidas com saudade. Vão se lembrar da época em que acompanharam seus personagens prediletos na sua trajetória heróica contra o mal. As lágrimas são inevitáveis.
Namárië
Daniel M. Delfino
11/01/2004