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O bom selvagem e o roubo do duplimóvel


13 de dezembro de 2008

O BOM SELVAGEM E O ROUBO DO DUPLIMÓVEL

            Este escriba acaba de ser vítima de uma contradição do capitalismo. O sistema que produz carros é o mesmo que produz também ladrões de carros. A tese e a antítese dessa dialética insana entrecruzaram-se numa síntese perversa de resultado negativo, que foi a subtração do duplimóvel: o carro que serviu bravamente de viatura oficial da Fraternidade por ocasião das três vezes em que os membros do Conselho arquitetaram um dupliencontro em São Paulo.

            Dentre os pertences pessoais subtraídos junto com o veículo constava uma pasta de fichário preta na qual havia, entre outras coisas, anotações ainda não digitadas, fragmentos e embriões de futuros artigos, manuscritos ainda a ser desenvolvidos. Rascunhos, esboços, parágrafos avulsos, indicações, observações, frases, tiradas, sínteses, sinopses, lapsos, intuições, vivências; perderam-se todos, provavelmente para sempre. Não chega a ser um tesouro; ninguém ficará rico (com certeza, não materialmente) se encontrar a pasta preta boiando no rio Tamanduateí ou apodrecendo num terreno baldio qualquer da Zona Leste; mas com certeza fará imensa falta. Sem os manuscritos, provavelmente muitos fios de raciocínio jamais poderão ser retomados e muitos artigos jamais poderão ser escritos.

A um escriba, que lhe roubem um automóvel, chega a ser indiferente (uma vez que tal espécie de bem material se encontra protegido por seguros, conforme a praxe do mercado de bens de consumo duráveis aos quais precariamente se tem acesso), mesmo se tratando de um duplimóvel; mas que lhe roubem os papiros é inadmissível! Porca miséria! Na falta de tais papiros, resta ao escriba oferecer aos leitores este lamento em forma de reflexão.

            Passemos pois aos fatos. O Boletim de Ocorrência policial, na sua linguagem peculiar, registra o seguinte: “Compareceu a vítima acima qualificada informando que transitava pelo local dos fatos, às cerca de 23:45 desta data, voltando de Santo André, quando, ao diminuir a velocidade do veículo para cruzar a ponte que separa este município de São Paulo, saltaram em sua frente dois indivíduos armados que o obrigaram a parar e roubaram seu veículo e os objetos adiante descritos”.

Rememorando “os fatos”, o acontecimento foi um tanto mais complexo. Diante da abordagem dos “dois indivíduos armados”, algumas alternativas se apresentaram.

            1. As armas são verdadeiras.

            2. As armas não são verdadeiras.

            Considerando a alternativa 2, este escriba poderia:

            3. Acelerar o carro e passar por cima dos assaltantes.

            Isso significaria:

4. Mutilar ou talvez matar uma pessoa por causa de um bem material.

Ou então:

5. Auto-defesa justificada diante de uma ameaça.

            Considerando porém a alternativa 1, os criminosos com certeza iriam atirar, de onde se segue:

            6. Os assaltantes poderiam não ter pontaria ou não ter sorte e a vítima escapar.

            7. Os assaltantes terem boa pontaria ou sorte e acertar a vítima.

            Mesmo no caso das alternativas 2 ou 6, a ação descrita em 3 poderia ter como resultado a perseguição dos criminosos, não apenas naquela noite, pois:

8. Identificado o carro e seu motorista, os criminosos poderiam tentar vingança numa outra oportunidade.

            Essa hipótese é bastante realista considerando-se o fato de que o assalto ocorreu a não muitos quarteirões da residência da vítima. Um outro complicador adicionou-se ao cenário quando o escriba se deu conta de que estava vestindo a camiseta de seu time de futebol. Diante disso:

            9. Os criminosos poderiam ser também torcedores do Corinthians (o que de acordo com os estereótipos é estatisticamente bastante provável).

            10. Os criminosos poderiam ser torcedores de outro time e fulminar o escriba apenas por essa diferença.

            11. Essa é provavelmente a coisa mais imbecil para se pensar naquela circunstância.

            Todas essas alternativas pipocaram ao mesmo tempo na mente do assustado motorista. Diz-se que o homem, na iminência da morte, numa fração de segundos, vê todas as cenas de sua vida numa espécie de filme em “flashback”. Até hoje essa hipótese não pôde ser verificada, pois seria preciso que alguém do reino dos mortos pudesse voltar para dar testemunho aos vivos a respeito, o que ainda constitui uma hipótese em discussão. Na falta dessa disponibilidade este escriba pode atestar o inverso: não vislumbrou um filme com todos os momentos passados de sua vida, mas uma projeção antecipada de todos os momentos futuros. Além das possibilidades listadas em 1, 3, 7, 8 e 10, desdobrou-se em sua tela mental uma espécie de filme de terror com as seguintes cenas:

            A. Horas infindáveis numa delegacia à espera de atendimento para dar parte do roubo.

            B. Dias ou talvez semanas de espera lidando com o seguro.

            C. Dias ou talvez semanas de aulas perdidas na faculdade, na impossibilidade de contar com o transporte público para ir até a USP.

            D. Uma dolorosa via-crúcis pelas diversas repartições públicas encarregadas de fornecer as cópias dos documentos perdidos.

            As cenas “B”, “C” e “D”, antevistas profeticamente naquela fração de segundos, materializaram-se de forma inexorável; já o horror descrito em “A” foi mitigado pelo simples exercício de escrever o presente comentário.

Comentário que constitui pois uma maneira de lidar com o episódio, se possível assimilando alguma lição dele, tentando restabelecer a normalidade psicológica. De acordo com algumas pessoas de formação religiosa, eu deveria agradecer ao Criador por não ter sido morto naquele momento e por me ter sido dada uma “segunda chance” nesta vida. É comum a reação emocional diante de acontecimentos como esse. É comum considerar que de agora em diante “ninguém está seguro” em nenhum lugar, o “crime” pode irromper a qualquer momento, a “violência” está à solta, etc..

            Adiante teremos oportunidade de discutir esses sentimentos e suas respectivas correlações político-ideológicas. Não se trata porém aqui de afetar indiferença ou frieza diante de um incidente dessa dramaticidade. Trata-se apenas de assinalar o que já é de conhecimento de todos os urbanóides confinados às grandes metrópoles brasileiras: o crime é de fato onipresente, qualquer um está sujeito a ser alvo de uma de suas manifestações, a qualquer momento. É uma questão de tempo até que a estatística macabra alcance a vítima. Cada dia que se sobrevive na selva urbana é um dia a ser comemorado, não apenas aquele em que se sobrevive a um assalto. Cada dia é um dia que merece ser vivido como se pudesse ser o último, cada momento deve ser aproveitado, cada sensação deve ser experimentada intensamente.

            Construir uma vida significativa e plena é em si uma resposta individual à barbárie coletiva em que estamos imersos, uma contribuição para virar a maré em favor do humanismo. É justamente algo que se buscava fazer naquela noite. O “bom selvagem” do título não é o próprio escriba, apesar desse seu entusiasmado idealismo ou de seu antiquado método manuscrito de registrar suas primeiras aproximações de cada tema. O “bom selvagem” é um certo personagem de filme. Para explicar do que se trata, é preciso explicar o que o escriba fazia com seu duplimóvel naquele local e naquele horário “às cerca de 23:45 desta data”. Voltava então de São Bernardo, onde um cineclube que projetava um ciclo de produções vencedoras do Oscar de melhor filme estrangeiro acabava de exibir o laureado de 1976, “Dersu Uzala”, de Akira Kurosawa.

            Trata-se de um filme “menor” de Kurosawa, diretor que não havia sido premiado com a estatueta por clássicos como “Os sete samurais” e “Rashomon” nem por superproduções como “Ran” e “Kagemusha”; o que só serve para relativizar a importância das premiações cinematográficas. Os detratores de Kurosawa o acusam de ser “americanizado” e rotulam “Dersu Uzala” de filme de encomenda produzido com financiamento do governo soviético por um diretor em “fim de carreira”.

            Mesmo prevenido por essas insinuações desabonadoras, não é difícil, no caso do filme em questão, ingressar no universo do diretor, com seus longos planos silenciosos sem diálogos, suas paisagens contemplativas, sua tentativa de integração estética entre natureza e humanidade, mediadas pela música.

            Nessa singela aventura ecológica, o caçador de etnia gold de nome Dersu Uzala serve voluntariamente de guia para um destacamento militar russo que fazia levantamento topográfico da remota região da taiga siberiana. Desenvolve-se uma bela amizade entre o caçador e o capitão que comandava o destacamento. Dersu torna-se uma espécie de pai espiritual para o capitão, ensinando-o a respeitar todas as formas de vida da floresta e também os seres humanos que dela tiram seu sustento.

Nesta fábula o que menos importa é a conjuntura histórica em questão, a expansão do império russo pelo interior da Ásia, a frieza do homem branco para com os costumes das etnias selvagens, o “avanço do capitalismo”, etc. O que importa é a capacidade de integração e de entendimento entre os indivíduos, a sabedoria e a simplicidade de quem vive em harmonia com um meio praticamente intocado.

A situação muda quando o gold siberiano é levado para a cidade natal do capitão. Não lhe parece concebível viver numa “caixa” (um quarto), alternativa diante da qual ele sugere armar uma barraca na rua. A cidade é um lugar irracional, onde não é permitido a um caçador atirar, nem que seja para cima. Onde o caçador se escandaliza com a “maldade” das pessoas que se atrevem a vender água, depois lenha para a mulher do capitão. No seu ponto de vista, os bens naturais são dádivas que estão à disposição do homem, que devem ser utilizadas por cada um na medida de sua necessidade, nunca mercantilizadas (que diria ele dos planos de privatização da água do Banco Mundial?).

            É claro que tal ideal de auto-suficiência individual não pode ser generalizado para o conjunto da humanidade como alternativa societária, mas no plano coletivo, constitui um poderoso alerta para que se considere o quanto o homem está degradando a natureza para construir um modo de vida materialmente rico (e insustentável) e paradoxalmente vazio de humanidade. Dersu Uzala sabe o que é importante na vida. Por isso, ele é sinceramente incapaz de entender porque o comerciante de vodca o embebedou e levou todo o dinheiro que o caçador acumulara numa afortunada temporada de caça de zibelinas. Para que serve o dinheiro?

            A queixa de Dersu como vítima de roubo é muito mais serena, sincera e bem-humorada e muito menos prolixa do que a aqui apresentada pelo escriba. Seja como for o conteúdo do filme forneceu uma vacina providencial para imunização preventiva contra os eventos que se seguiriam naquela noite e contra uma certa espécie de pensamento correlato, que vez por outra surge como comentário para a violência que nos assola: “Um conservador é um liberal que foi assaltado”, reza uma espécie de ditado comum nos países anglo-saxônicos.

Na nomenclatura política desses países e em especial dos Estados Unidos, o “liberal” é o que corresponde a uma pessoa “de esquerda”, de modo que é importante distinguir esse termo do epíteto de “neoliberal” tal como é usado no contexto de um país periférico. O termo “conservador” também não designa exatamente a mesma coisa aqui e alhures, mas esta segunda distinção, no caso que aqui se apresenta, não é tão importante.

            O contraste que separa “liberal” e “conservador” como alternativas político-ideológicas hegemônicas, no contexto sócio-histórico em que o dito citado articula sua inteligibilidade, é dado por aspectos que dizem respeito não ao mecanismo social fundamental totalizador (capitalismo), o qual não se considera que esteja em disputa; mas por questões de escolhas comportamentais pessoais. O liberal se caracteriza pela postura tolerante em relação a temas como homossexualidade, amor livre, aborto, eutanásia, diversidade étnica, cultural e religiosa, além de um eventual apoio a causas ambientais, desarmamento, pesquisas médicas, etc. O conservador é de modo geral contrário a todas essas causas e favorável a uma estrita rigidez moral, às vezes com base em uma observância que tende a ser literal dos textos religiosos.

            O dito citado expressa uma concepção dessa diferença entre “liberal” e “conservador” que se mede como em uma progressão, na qual, por uma espécie de evolução, o indivíduo passa de uma postura “ingênua” e benevolente para uma “realista” e desconfiada. O evento que catalisa essa passagem é o assalto, o qual introduz o “ingênuo-liberal” no reino da “realidade-conservadora”. O assalto supostamente dissolve a ilusão benevolente tipicamente “liberal” de que a “natureza humana” seja fundamentalmente benigna e converte o antigo portador dessa ilusão para a postura mais “racional” de que os homens são em essência maus e egoístas e de que somente a lei, a ordem e uma moral rígida, exercidas pela força, podem nos proteger uns dos outros e dos maus instintos de nossa própria “natureza decaída e pecadora”.

            O amargo cinismo desse ditado abre as portas para os sentimentos em que vicejam idéias perigosas como a defesa da pena de morte, mais dureza contra os criminosos, fim dos “direitos humanos para bandidos”, etc. Ou como a idéia contida na alternativa 3 acima, com a justificativa 5. Idéias que ignoram o fato de que, não importa quantos “bandidos” sejam abatidos pela pena de morte ou pela truculência policial oportunisticamente festejada, o sistema continuará produzindo novas levas de criminosos para ocupar seu lugar, indefinidamente. Para cada soldado do narcotráfico abatido, dezenas de outros esperam para cumprir o mesmo papel.

O problema não será resolvido por essa ponta, embora pudesse ser minorado se se pudesse contar com a polícia. Uma polícia que não fosse corrupta, que não tivesse uma “banda podre” e se associasse ou emulasse os criminosos como faz. Mas a polícia, como qualquer serviço público no Brasil, não passa de um simulacro, sem efetivo, sem recursos, sem equipamento, sem inteligência (não subjetiva, mas estratégico-organizativa), sem enraizamento junto ao povo. Se contássemos porém com uma polícia minimamente séria, como dizíamos acima, o problema da “violência” talvez pudesse ser minorado, mas não resolvido. E não porque o homem seja “mau por natureza”, mas porque o sistema em que vivemos é essencialmente degenerado.

Estamos tratando pois do conceito filosófico de “natureza humana”. Seria ela benigna ou maligna? É interessante notar como as posturas “liberal” e “conservadora” variaram a respeito desse tema e se entrecruzaram ao longo da história conforme suas determinações de classe. O liberalismo clássico de Hobbes e Locke registrou a idéia de que os homens são egoístas por natureza, o que significa que cada um busca seu interesse pessoal acima de qualquer coisa, inclusive por cima dos interesses dos outros. Na amarga fórmula de Hobbes, “o homem é o lobo do homem” (ver “Leviatã”). Para prevenir a inevitável “guerra de todos contra todos” do estado de natureza, cria-se o Estado civil, uma instituição estabelecida com o dever precípuo de proteger a vida e a propriedade dos cidadãos.

            O desenvolvimento do capitalismo inglês no século XVIII leva Adam Smith a acrescentar que a busca de cada um pelo seu auto-interesse pessoal leva inevitavelmente ao bem-estar coletivo por força de uma “mão invisível” que regula automaticamente os intercâmbios entre os homens. Aquilo que deveria ser tomado como uma suposição a ser provada, a duvidosa hipótese da harmonização automática dos interesses individuais num interesse coletivo, por obra de uma entidade mística (mão invisível) que dispensa intervenção racional dos homens; torna-se artigo de fé dogmaticamente inquestionável da ideologia liberal.

            No mesmo século XVIII, na França, coube a J.J. Rousseau dar uma guinada total no conceito de “natureza humana”. Para Rousseau o homem não é bom nem mau por natureza, pois não se pode observar o homem em estado natural. Pode-se observar o homem mais ou menos socializado, como o burguês e o selvagem, por exemplo. O que se pode verificar a partir da comparação entre eles é que a sociedade indubitavelmente torna o homem mau. A posteridade acabou vulgarizando o pensamento de Rousseau sem as devidas nuances e ressalvas, estabelecendo a versão de que “o homem é bom por natureza, mas a sociedade o corrompe”. O mito do “bom selvagem” acabou associado ao nome do pensador genebrino, assim como a invenção do romantismo e da democracia moderna.

            Apesar de seu violento ataque à propriedade privada (ver “Discurso sobre a Desigualdade”), Rousseau não pôde propor como remédio para a degeneração humana mais do que um novo “Contrato Social” baseado numa “vontade geral” abstrata sem as mediações sociais concretas e as determinações históricas específicas. Por conta disso, o ponto de vista geral de Rousseau é pessimista e nisso ele se destaca num século de ardentes entusiastas iluministas do “progresso”.

O desenvolvimento econômico e político da sociedade burguesa, dando à luz a Revolução Industrial e a Revolução Francesa, levou o irlandês Edmund Burke a formular, como resposta à degradação trazida pela modernidade econômico-política que se anunciava, as teses básicas do pensamento conservador, recusando o caos da nova sociedade em nome dos valores da antiga sociedade: a ordem, a hierarquia, a autoridade, a moral e a religião devem ser os sustentáculos de qualquer sociedade. Posteriormente, no século XIX, quando a própria burguesia se torna contra-revolucionária, o liberal e o conservador passam a estar unidos na defesa comum contra a ameaça representada pelo movimento socialista.

            Coube a Marx no século XIX esclarecer o verdadeiro status do conceito de “natureza humana”. Para Marx o homem não possui uma “natureza humana” abstrata, imutável e a-histórica, que seria a mesma em qualquer sociedade e em qualquer época, para ser imputada “boa” ou “má”. O homem é um ser que se origina na natureza, mas constitui um reino à parte, que se torna humano e se constitui no processo da História. O Homem se define por uma condição humana historicamente mutável, que produz homens bons e maus em quantidades variadas conforme as especificidades das formações sociais determinadas.

            Através da história elaboram-se formas mutantes de regular o metabolismo primário do homem com a natureza, formas pelas quais esta mediação primária se desdobra em “mediações sociais de segunda ordem” (ver Mészáros, 2002), como a família, a propriedade privada e o Estado, com suas múltiplas instituições. Na forma capitalista atualmente prevalecente (cujos contornos históricos plenos Rousseau não estava em condições de divisar) as relações interpessoais são mediadas pelo instituto da competição. Essa determinação objetiva se irradia somente a partir dos últimos dois séculos e somente a partir das sociedades ocidentais, alcançando a duras penas sua presente abrangência global.

            Constitui portanto no mínimo uma grosseira inverdade histórica a mitologia liberal de que o homem sempre foi egoísta, sempre foi individualista e sempre buscou seu interesse pessoal acima de qualquer coisa; e de que portanto somente o capitalismo traga em seu mecanismo de “livre competição” a tradução mais racional da “natureza humana”.

            O resultado objetivo dessa inverdade histórica maciçamente disseminada é obliteração do fato de que tanto os indivíduos como os países entram na competição em condições extremamente desiguais. Na medida em que são integrados na competição, o seu desenvolvimento prossegue de maneira desigual e combinada. A riqueza de uns é produzida pela pobreza de muitos. Riqueza e pobreza são pólos complementares necessários no sistema do capital. É nesse sentido que o sistema produz pessoas capazes de comprar carros (como o escriba) e “produz também ladrões de carros”.

            No século XX os liberais “de esquerda” podem se dar ao luxo de ostentar posições sociais humanistas e benevolentes conforme lhes seja conjunturalmente franqueada pelo ciclo de acumulação capitalista a prática de conceder políticas distributivas em favor dos “desajustados” do sistema. De outro lado, os conservadores podem assumir a defesa “realista” e autoritária do sistema quando a leniência para com os pobres e a permissividade comportamental em geral ameaçam corroer a “fibra moral” de sua austera e respeitável sociedade burguesa e puritana.

Mas um “liberal” pode ser assaltado e nem mesmo assim se desesperar da “natureza humana” e tornar-se conservador. Oferecer o próprio exemplo pessoal como contra-exemplo do ditado citado talvez tenha pouco valor como argumento probante, de vez que esse exemplo se baseia num representante notório de posturas muito mais à esquerda do que as dos citados “liberais”; por isso recorreu-se à autoridade de Dersu Uzala e seu poético humanismo. Um assalto pode roubar carros, mas não ideais.

O referido é verdade e dou fé (apesar da demora kafkiana do atendimento burocrático no distrito policial em que se deu parte do ocorrido e em que se redigiu esse comentário).

P.S. O nome “duplimóvel” se refere ao Duplipensar, site para o qual o autor escrevia na época dos fatos, conforme explicado no “Manual do usuário deste blog”.

Daniel M. Delfino

19/04/2005

Filme Comentado:

            Nome original: Dersu Uzala

            Produção: União Soviética, Japão

            Ano: 1975

            Idiomas: Russo

            Diretor: Akira Kurosawa

            Roteiro: Vladimir Arsenyev, Akira Kurosawa

            Elenco: Maksim Munzuk, Yuri Solomin, Svetlana Danilchenko, Dmitri Korshikov

            Gênero: aventura, drama

            Fonte: “The Internet Movie Database” – http://www.imdb.com/