Lisbela e o cinema nacional
13 de dezembro de 2008
LISBELA E O CINEMA NACIONAL
(Comentário sobre o filme “Lisbela e o prisioneiro”)
Nome original: Lisbela e o Prisioneiro
Produção: Brasil
Ano: 2003
Idiomas: Português
Diretor: Guel Arraes
Roteiro: Guel Arraes, Pedro Cardoso
Elenco: Selton Mello, Débora Falabella, Virginia Cavendish, Bruno Garcia, Tadeu Mello, André Mattos, Lívia Falcão, Marco Nanini, Luisa Arraes, Paula Lavigne, Heloíse Périssé, Cláudio Renée, Zeca Veloso
Gênero: comédia, romance
Fonte: “The Internet Movie Database” – http://www.imdb.com/
Há algo de profundamente errado com o cinema nacional, quando uma megacorporação como a rede Globo precisa das leis de incentivo e de renúncia fiscal para colocar um filme em exibição. O primeiro detalhe que chama atenção em “Lisbela e o Prisioneiro”, como de resto na maioria dos filmes nacionais, é a quantidade de logotipos de patrocinadores. Um caos, uma babel de logotipos, um carro de fórmula 1, desfilam pela tela, antes e depois do filme.
No meio dos logotipos, despontam os selos do Ministério da Cultura e da Lei do Audiovisual. Símbolos que representam as iniciativas dos governos recentes de tentar fomentar uma indústria de cinema. A plêiade de logotipos e marcas ilustra a complexidade de acertos e conchavos necessários para se pôr um filme nacional nas telas. Como o esforço de uma montanha para parir um rato. Sem desmerecer o rato em questão, ou seja, o filme, o qual aliás deve ter seu valor artístico reconhecido em alguma medida, como será feito adiante. O problema que se tenta levantar aqui é a necessidade de tantos sócios para bancar um tão modesto empreendimento. Entre esses sócios, em diferentes níveis de associação, a Rede Globo e o Governo Federal. Por meio da renúncia fiscal, o Estado subsidia a Globo com dinheiro público para produzir seus filmes.
Isso é tão absurdo quanto imaginar, hipoteticamente, a CBF recebendo dinheiro do Ministério dos Esportes para mandar uma Seleção Brasileira para a Copa do Mundo. A CBF, que administra o único esporte profissional do país, tem a obrigação de conseguir rentabilidade e auto-suficiência financeira. Não poderia jamais precisar de dinheiro público para montar suas delegações. Como de fato jamais precisou. Pelo menos esse nível de dignidade os dirigentes da CBF tiveram. Ou, ao contrário, sua consumada desfaçatez não foi suficiente para chegar a tanto. Mas no caso da Globo foi. O mesmo raciocínio que interdita uma tal iniciativa deveria se aplicar à rede Globo. Uma megacorporação de mídia que concentra emissoras de TV e rádio, jornais, revistas e editora não deveria jamais precisar de incentivos fiscais para pôr um filme nacional nas telas. Deveria e poderia arcar com o custo e o dever de bancar o cinema nacional inteiro.
O processo que produziu o filme “Lisbela e o Prisioneiro” deveria ser considerado uma aberração. Talvez não seja, porque o filme é simpático e se sustenta por seus próprios méritos artísticos, sobre os quais falaremos adiante. Esses méritos acabam se sobrepondo na avaliação. Méritos do diretor e do elenco, que não podem esconder, a meu ver, o caráter viciado da produção. Para insistir na comparação entre cinema e futebol, não se pode esconder que há algo errado com o futebol brasileiro, mesmo sendo cinco vezes campeão do mundo. Porque seus melhores jogadores não jogam no Brasil e sim na Europa!
Os artistas talentosos que produziram “Lisbela e o Prisioneiro” não encontram outro meio para colocar sua arte em cena que não a condição de empregados da rede Globo. Como os jogadores brasileiros são empregados dos Euricos Mirandas e Ricardos Teixeiras da vida. O demérito não é deles, é do sistema viciado em que trabalham. Isso encerra a comparação. O foco do problema não está no filme, mas na deficiência do cinema nacional. Por que o cinema nacional não consegue se firmar como indústria?
O objetivo precípuo das leis de incentivo via renúncia fiscal era de que se criasse uma indústria nacional de cinema. Nesse aspecto os resultados foram pífios. Os filmes vem saindo, mas apenas esporadicamente. Saem como resultado da obstinação de artistas que se tornam pedintes ambulantes, mendigando verbas nos escritórios de marketing de empresas. As etapas de pré-produção, filmagem, montagem, exibição, transcorrem penosamente, consumindo esforços hercúleos em processos intrincados de captação. Filmes feitos com esse tipo de processo de financiamento acabam não tendo a obrigação de dar lucro. O filme já está pago ao chegar na sala de exibição. A empresa que o patrocinou já conseguiu o que queria, a dedução de impostos. O filme não precisa sequer ser assistido. Não há o menor compromisso com a carreira comercial do filme.
Se os filmes não concorrem no mercado, não conquistam fatias de mercado. Não formam público acostumado a ver o cinema nacional. Nem estrutura técnica, profissionais especializados, canais próprios para veiculação. O cinema é uma atividade altamente especializada. Mas os profissionais que a ele se dedicam dependem da continuidade para optar pelo cinema como profissão. E continuidade é o que menos se pode encontrar nesse regime de trabalho. Não há estúdios, não há cadeias de produção, não há canais de escoamento. Se cada projeto é fechado em si e não cria um ciclo, um movimento, uma continuidade, não se forma uma indústria. Quando acaba a vigência das leis de incentivo, volta-se à estaca zero. Devo esta análise do funcionamento do atual cinema brasileiro à revista “Reportagem”, ed. 47.
Não estamos dizendo com isso que os filmes brasileiros tem que se utilizar das mesmas fórmulas do cinema comercial estadunidense. Do ponto de vista artístico, é ótimo que um filme possa ser feito sem a preocupação de forçosamente atrair uma certa cota de público. Mas é péssimo que ele não atinja público nenhum. O cinema nacional não dialoga com o público, apenas com a própria comunidade de cinema.
Isso também não significa que seria melhor se não houvesse lei de incentivo nenhuma. O problema é que a lei é um paliativo, que não ataca o problema de frente. O problema é a indústria cultural dedicada ao ramo do cinema. As cadeias de exibidores e as distribuidoras de fitas dos grandes estúdios estadunidense não são forçadas a nenhum compromisso com o filme nacional. O problema fundamental é que o capitalista nacional, por sua vez, como em qualquer outro ramo da economia, também não quer correr riscos no cinema. Como se diz no futebol, a burguesia nacional “joga na retranca e só vai na boa”.
A política cultural é tímida demais para forçar, por exemplo, a criação de cotas de filme nacionais nos cinemas ou na TV. Ou para taxar o filme estrangeiro e financiar o cinema nacional com o produto da taxação. Muitas fórmulas podem ser discutidas. Vários países, como a França e até a falida Argentina encontraram meios de manter o vigor criativo de sua cinematografia e simultaneamente arrebatar fatias de mercado dos filmes de Hollywood. O que não se pode é admitir que a rede Globo se aproveite da “boquinha” das leis de incentivo para estender sua dominação também sobre o cinema. A Globo, que já domina TVs, rádios, jornais, revistas, etc., ao invés de exibir filmes nacionais de qualidade em sua programação, lança anualmente seus caça-níqueis estrelados por Didi, Xuxa e seus duendes. Imbecilização na tela grande acompanhando o descalabro que reina na pequena.
Mais está por vir. Anunciam-se os filmes de “Casseta & Planeta” e os “Normais”. Não está em questão o fato de que podem ser filmes eventualmente interessantes. Mas são supérfluos enquanto filmes. É admissível ver na televisão filmes que já se viu no cinema. Mas o contrário é absurdo. Qual a necessidade de se ver no cinema algo que já se viu na televisão? A necessidade, explica-se, é a necessidade da Globo de estender seus tentáculos monopolistas sobre todo e qualquer segmento da indústria cultural. A necessidade é estarmos cercados de Globo por todos os lados. Mesmo que, repito, os filmes a serem lançados eventualmente sejam bons, o fenômeno não deixa de ser grave.
Em vários países do mundo desenvolvido, especialmente na Europa, há leis que protegem a sociedade da concentração da mídia. Leis que tiranetes-de-ópera-bufa-com-pretensões-totaliárias, como Berlusconi na Itália e Bush nos E.U.A. se esforçam para burlar e revogar. Há proibições que impedem que uma mesma empresa possua empresas de TV e jornais na mesma cidade, por exemplo. Isso previne a sociedade da possibilidade de uma mesma empresa, por meio do monopólio da informação, influenciar a opinião pública. Esse filme a Globo protagoniza à perfeição no Brasil. Bush e Berlusconi nos invejam. Na Europa e nos E.U.A. há uma mídia mais independente. Algo que os dois gostariam de suprimir.
Há também naqueles países o fenômeno de que nem todas as emissoras de TV produzem sua própria programação. Há uma indústria de produtoras de programas jornalísticos e documentários, cujos trabalhos são oferecidos às emissoras. No Brasil, ao contrário, é considerada uma virtude da Globo sua capacidade de produzir e até exportar sua programação. Em certo sentido isso é verdade, pois a estrutura da Globo foi o que permitiu a muitos artistas desenvolverem trabalhos de valor, ao longo de décadas do antigo padrão Globo de qualidade. Mas num outro país, uma empresa como a Globo seria uma estatal. Uma B.B.C. nacional. E esse é na verdade o segredo da Globo. A empresa de Roberto Marinho foi a emissora oficial do regime militar e o braço televisivo da oligarquia neo-coronelista. A Globo foi a B.B.C. do regime militar. Na “democracia”, a Globo não veio a ter um mínimo sequer de controle social como o que existia sobre aB.B.C. na Inglaterra.
Agora, nos tempos bicudos do neoliberalismo, a emissora do Jardim Botânico paga os pecados da má gestão. Tal como as estatais propositadamente sucateadas que o neoliberalismo saqueou, com o beneplácito da própria Globo. Ironia da história. Com sérios problemas de caixa, o conglomerado torna-se dócil à campanha de Lula, na esperança de continuar desfrutando do poder que acumulou. Toma lá dá cá. A Globo apóia Lula para conseguir salvar seu monopólio. Lula faria melhor para ambas as partes se estatizasse a Globo em definitivo, consumando a aspiração latente da emissora.
Utopias à parte, a Vênus platinada se vira como pode. Lançando-se no mercado de filmes, por exemplo. Gerando o processo aberrante contra o qual este escriba se insurgiu.
De resto, como antecipamos, o filme é simpático. O impagável humor nordestino está mais uma vez em cena. Mas já não é o mesmo humor saboreado por exemplo em “O Auto da Compadecida”. O filme anterior do mesmo Guel Arraes baseia-se na obra de Ariano Suassuna, paladino do nacionalismo cultural. “Lisbela e Prisioneiro”, por sua vez mistura cultura nordestina e linguagem pop. Zé Ramalho com guitarras pesadas. Breguice e modernidade-fake. Jagunços-Heavy Metal.
O Nordeste de Ariano Suassuna é mais verdadeiro. O Nordeste de “Lisbela e o Prisioneiro” é mais real. O real deixou de ser verdadeiro. O Nordeste real tornou-se hoje irreal. Surreal. Em reportagem para Carta Capital, ed.260, Xico Sá descreve o Nordeste surreal. Um sertão onde antenas parabólicas enfeitam casas de taipa. Sertanejos trocam o jumento pela motocicleta. Bodegas servem o sanduíche de “macbode”. A classe média rural compra no “River Shopping”, à beira do São Francisco, entre Juazeiro-BA e Petrolina-PE. No Polígono da Maconha, a polícia é mantida à distância pelos traficantes tal e qual nos morros do Rio. Meninas se prostituem nos postos de gasolina de beira de estrada. Um verdadeiro samba do crioulo doido. Ou forró do cabra abilolado.
Este pernambucano-paulistano que vos escreve, que deixou há doze anos a cidade de Araripina-PE e tem seus pais no vilarejo de Lagoa do Barro, assina em baixo. O Nordeste está se aculturando. O sertanejo assiste “Cidade Alerta” e Ratinho. A antena parabólica leva-o a um mundo que não é o seu. Lado a lado com a miséria, o sonho da modernidade. E o seu pesadelo. Miséria, violência e consumismo, homogeneizando o Nordeste ao Brasil. E o Brasil é um país globalizado, estadunidizado e também africanizado. Quem afirma é um pernambucano. E macho!
Um indício certo desta modernidade surreal no filme é o uso do próprio cinema como eixo da narrativa. Metalingüisticamente, “Lisbela e o Prisioneiro” pode ser visto como um filme sobre o cinema. Lisbela é a moça ingênua que vê a vida através dos seriados exibidos no cinema da cidade. As convenções narrativas do filme de aventura e da comédia romântica são seu instrumento para interpretar o mundo. O mocinho, a mocinha, o vilão, tem papéis definidos, na vida como na tela. O final feliz está assegurado, mas somente depois de muito drama, dramalhão, comédia e sofrimento.
Por falar em dramalhão, o filme pode ser visto também como uma exploração do repertório do cancioneiro brega. De Elza Soares pra frente. Brega rasgado, amor desesperado, loucura incontrolável. Perda de qualquer medida, perda de si em busca do outro. Entrega total. Quem está dentro do furacão da paixão não percebe o quanto se torna ridículo. Para quem está de fora, só resta rir. Rir da breguice dos apaixonados. O amor é brega, essa é a conclusão. O cinema também é brega, quando usa e abusa da fórmula do dramalhão e do final feliz.
Lisbela espera pelo mocinho do filme de sua vida. A sua condição de espectadora à espera do final feliz reflete a condição da subjetividade presa às armadilhas da sociabilidade capitalista. O espectador vive uma vida que não é sua, assim como o indivíduo sob o capitalismo não vive sua própria vida, porque esta não lhe pertence. Pertence ao empregador que compra o uso de sua força de trabalho. O indivíduo não intervém na sua própria vida. Ele vive a vida dos outros, das celebridades, dos artistas de cinema. Tudo acaba do mesmo jeito e toda a vida continua sempre como está. A graça é descobrir como se chega no final, explica Lisbela. Devo este enfoque interpretativo ao companheiro Sérgio Domingues, do sinsprev e do site Mídia Vigiada.
O choque acontece quando Lisbela encontra Leléu. O típico malandro, o conquistador, o galinha, o artista mambembe, o cigano sem raízes nem escrúpulos. A possibilidade de viver na realidade um romance como os do cinema é atordoante para a mocinha. É atordoante, mas ela não lhe resiste. O amor é cego e também é fatal. Lisbela se entrega a esse romance com uma determinação fatalista de quem já sabe o que vai acontecer, porque já viu antes no cinema. O romance com Leléu é a saída para escapar de uma vida de mesmice e acomodação com seu noivo carioca de araque. Mas Lisbela resiste. Ela diz que não pode viver um filme porque não é estadunidense. Leléu responde na lata: “está na hora de conhecer o artista nacional”. Malandramente, com óculos escuros, à la Raul Seixas. Mutatis mutandis, está na hora do espectador conhecer o cinema nacional. O artista nacional que não estava no script adiciona o tempero de realidade à vida da mocinha.
Ficamos conhecendo então o artista nacional. Yes, nós temos cinema. O filme nacional invade o cenário dos multiplex estadunidizados. Nós temos heróis e vilões, e pícaros, e patifes, e mocinhas e mulheres fatais. Nós podemos rir de nós mesmos e ver nossa vida na tela. Não a vida dos outros. Não a vida dos estadunidenses. O cinema como plataforma de desalienação e exaltação da nacionalidade. Nosso cinema encontrou o cenário mítico da afirmação da brasilidade. Os E.U.A. tem o faroeste. Nós temos o nordeste. Nordeste dos malandros, das mocinhas, dos delegados, dos matadores de aluguel, dos maridos corneados, dos “paraíbas” que querem ser cariocas. E de um certo rock farofa.
O Nordeste como símbolo do passado brasileiro mitificado fornece o manancial inesgotável de uma nova dramaturgia cinematográfica. Como também podem fazê-lo as outras regiões do país. O Brasil poderia conhecer suas múltiplas culturas, subculturas e tradições através de um cinema renovado. Assim como na música o pop nacional leva vantagem na disputa de mercado com a música trazida pelas gravadoras estrangeiras; o cinema nacional poderia também exercer o mesmo papel e disputar espaço com os filmes estrangeiros que monopolizam nossos cinemas.
O risco é que tenhamos um cinema tão descaracterizado como está descaracterizada a música brasileira pelo lançamento de sertanejos, axés, pagodes, forrós industrializados. Talvez valesse a pena, se tivéssemos mais algumas pequenas pérolas como “Lisbela e o Prisioneiro”. Quem fala é um pernambucano. E macho!!
Daniel M. Delfino
04/09/2003