“Kill Bill 2”: Pipoca com catchup
13 de dezembro de 2008
“KILL BILL VOL. 2”: PIPOCA COM CATCHUP
(Comentário sobre o filme “Kill Bill vol. 2”)
Nome original: Kill Bill: vol 2
Produção: Estados Unidos
Ano: 2004
Idiomas: Inglês, Cantonês, Mandarin, Espanhol
Diretor: Quentin Tarantino
Roteiro: Quentin Tarantino, Uma Thurman
Elenco: Uma Thurman, David Carradine, Lucy Liu, Vivica A. Fox, Chia Hui Liu, Michael Madsen, Daryl Hannah
Gênero: ação, crime, drama, thriller
Fonte: “The Internet Movie Database” – http://www.imdb.com/
Catchup é um folclórico apelido para o sangue cenográfico usado no cinema. Há sangue cenográfico aos litros em “Kill Bill”, especialmente no “Vol. 1”. Trata-se em ambos os episódios de uma carnificina desatada. Mas não é apenas nesse sentido que o subtítulo deste comentário se justifica. A pipoca é, na perspectiva da escola crítica aqui adotada, o complemento gastronômico indispensável da experiência estética cinematográfica. O catchup, por sua vez, põe tudo a perder, tanto no sentido gastronômico como no metafórico. Do ponto de vista deste escriba, pipoca com catchup é pipoca estragada.
“Kill Bill Vol. 2” é um filme-pipoca estragado pelo excesso de catchup. Não o excesso de violência, em que não há problema algum, mas excesso de firulas, poses, blá-blá-blás, enrolação, piadas sem graça, “climas” artificiais, interpretações caricatas, etc. O subtítulo expressa o descontentamento de quem esperava poder ver um determinado produto e o encontra totalmente degradado. Temos todos os ingredientes para uma boa diversão: personagens exóticos, uma vingança insana, katanas, tiroteios, levadas funk e baladas mexicanas (Se há algo que se salva em “Vol. 2” são as músicas, que aliás são de responsabilidade de Robert Rodriguez). O problema é que o cozinheiro mostra-se um completo inepto para lidar com esse material e transforma a receita numa arrastada chatice.
Quentin Tarantino é um amador. Diz a lenda que Harvey Keitel o encontrou atrás do balcão de uma locadora. E para nosso azar, achou que seria alguém que poderia acrescentar algo ao cinema. Um cinéfilo apaixonado não é necessariamente um cineasta criativo, aprendemos agora. Um fã de cinema não resiste à tentação de colocar no seu filme tudo aquilo de que gosta. Tarantino faltou a uma aula básica no seu curso auto-didático de cinema: edição. Não aprendeu a cortar seus filmes. Ele acha que tudo o que filma é tão bom, mas tão bom, que deve obrigatoriamente ir à tela.
“Kill Bill” é dividido em duas partes designadas como “Vol. 1” e “Vol. 2”, como se se tratasse de uma coletânea musical. Uma antologia de grandes momentos criativos. Mas não há criatividade alguma. Tarantino não cria, apenas copia. E por isso, é elogiado. Diz-se dele que seus filmes estão repletos de “referências” da “cultura pop”, como se isso fosse suficiente para sustentar tematicamente qualquer obra.
Se “Kill Bill” tivesse 30 horas de duração, não teria nada a dizer, assim como os 2 presentes volumes não tem. Seus personagens poderiam fazer tudo o que fazem na metade do tempo. Mas Tarantino não se considera um cineasta comum. Ele pensa que pode perder o nosso tempo com doses infindáveis de bobagem. Pensa que é um filósofo, que escreve os diálogos mais inteligentes do mundo. Seus personagens de repente começam a “falar difícil”, como se estivessem em “Matrix”, apenas para parecerem inteligentes.
Sua técnica básica para construir diálogos consiste em desfiar uma frase ambígua dita por alguém para produzir uma discussão palavrosa sem sentido, com base em algum mal-entendido estúpido, no pior estilo dos mais descerebrados “sitcoms”. Um personagem com poder exige explicações de seu interlocutor, por causa de algo que foi dito de maneira não suficientemente clara. Não suficientemente clara, mas perfeitamente inteligível. Apenas o personagem de Tarantino não entende, e começa a encher o saco com uma série interminável de perguntas idiotas.
Os personagens fazem toda a pose de que vão dizer algo extremamente significativo, apenas para, logo em seguida, não dizerem absolutamente nada que valha à pena. Resta apenas a pose. O cinema de Tarantino resume-se a isso: poses. Encenação, falsificação, artificialidade, estilo. Ele nos apresenta tudo isso como se se tratasse de uma gostosa brincadeira, da qual somos convidados a participar.
Não apenas os diálogos são idiotas, mas todo o desenvolvimento da trama é vazio e artificial. Todos os momentos graves são transformados em farsa. “Kill Bill” busca momentos de sentimentalismo ou de sublimidade, apenas para se desfazer deles logo em seguida, como se tivesse vergonha de ser sublime (por falar em sublimidade, há um achado em “Vol. 2”, a atriz-mirim que faz o papel de B.B.). Como se não pudesse se permitir “ser sério”, porque seriedade é coisa de “gente quadrada”. Tarantino quer ser reconhecido como um autor que tem “sensibilidade”, mas ao mesmo tempo quer continuar sendo “cool”. Sem saber se opta pela primeira opção ou pela segunda, constrangido, apela para o melodrama, com a “desculpa” de que está tirando sarro do melodrama.
Diz-se acima que ele coloca nos seus filmes tudo aquilo de que gosta como cinéfilo. Mas dizer “gosta” nesse caso não é a expressão exata. De alguém que faz o que faz com a clássica cena de treinamento-desumano-com-um-velho-mestre-ranzinza dos filmes chineses de artes marciais, transformada em piada em “Vol. 2”, não se pode dizer que gosta do cinema chinês. As convenções do gênero são exageradas e ridicularizadas. Tarantino não faz homenagens, faz caricatura, sátira, esculhambação.
Alguém poderia dizer que é justamente esse o espírito da coisa. Que um filme como “Vol. 2” não deve mesmo ser levado a sério. Que trata-se exatamente de uma comédia. A “função” de um “cineasta” como Tarantino no cenário cultural seria precisamente o de mostrar o ridículo e o caricato que há em toda a produção dita “séria”. Despir o cinema de sua sacralidade acadêmica. Mostrar que tudo é fórmula e clichê. Ao lado desse aspecto destrutivo, haveria também algo de positivo no seu estilo. Seria esse o papel das referências. Trazer ao cenário o frescor do cinema chinês, dos mangás japoneses, misturado ao tempero retrô da “black exploitation” (para Tarantino, a década de 1970 evidentemente não acabou) e mais uma salada de referências.
Entretanto, Tarantino é supérfluo nesse papel. O cinema chinês (“O tigre e o dragão”, “Hero”) e o anime japonês (“Cowboy bebop”, “Animatrix”) já invadiram o “mainstream” da indústria cultural estadunidense e mundial, para ficar apenas num exemplo. Quando se tem os originais disponíveis, a cópia é dispensável. A função de sacudir a mesmice criativa do cinema estadunidense fazia algum sentido em 1994, quando “Pulp Fiction” apareceu para disputar o Oscar contra “Forrest Gump”. Ali tivemos uma espécie de polarização entre os defensores do cinema burocrático e acadêmico e os que buscavam um sopro de renovação criativa, encarnado na ocasião por Tarantino. Hoje não mais.
Dez anos depois, o impacto da “novidade” de Tarantino é zero. Uma piada contada duas vezes perde completamente a graça. Assim como um susto não funciona duas vezes (que o diga Shyamalan). Ou um truque de marketing não pode ser usado duas vezes. Tarantino outra vez é como “A Bruxa de Blair” outra vez. O seu truque no início dos anos 90 foi fazer todos pensarem que era “cool”, que conhecia tudo o que havia de bom e de obscuro na “cultura pop”, tudo que estava “imerecidamente” esquecido (como John Travolta) ou que merecia ser descoberto (como os filmes orientais).
O mais inacreditável é que ele realmente conhece as referências certas. Apenas não tem o comedimento para trazê-las à cena de maneira apropriada. A legendagem brasileira se perdeu totalmente na hora de traduzir as frases que falavam do filme “Shogun Assassin” (título estadunidense do mangá “Kozure Okami”, publicado fragmentariamente no Brasil como “Lobo Solitário”), exemplo definitivo de uma boa referência. Trata-se de uma história em quadrinhos da mais alta qualidade literária. Ao seu modo, Tarantino também gosta de “Lobo Solitário”, mas o que ele tem de possível bom gosto é decisivamente ofuscado por seu ego. Ele não quer que admiremos “Lobo Solitário”, quer que o admiremos por ter nos mostrado que existe “Lobo Solitário”, como se ele fosse necessário para isso.
Para quem duvida que se trata de um ególatra desmedidamente pretensioso, basta lembrar que o filme tem duas seqüências de créditos finais, como se o diretor fosse patologicamente incapaz de parar de mostrar o quanto seu filme é genial.
E o que é ainda mais inacreditável é que ele ainda consegue convencer alguém de que é um gênio. Convenceu por exemplo os executivos da Miramax. Depois de tanto tempo sem filmar, ele não poderia ter feito algo diferente daquilo que fez, ou seja, uma overdose de seu estilo, um filme de mais de três horas. Ao assistir “Kill Bill”, os irmãos Weinstein, com o “timming” descalibrado em cerca de dez anos, acharam que tinham nas mãos um novo “Matrix” ou “Senhor dos Anéis”, algo que merecia ser dividido em duas partes, como se se tratasse de uma obra monumental, cuja exibição da primeira parte provocaria uma expectativa histérica pela continuação.
Ledo engano. “Kill Bill” serviu mal e porcamente como diversão. Veio a servir apenas como documento representativo da decadência “fin de siecle”. O cinema de Quentin Tarantino é uma perfeita realização do vazio. Um cinema do nada, da ausência de conteúdo, da conversa fiada, da cópia em cima da cópia. É um cinema peculiar a uma época também vazia, depois da chamada “perda das grandes narrativas”. Uma época condenada a reciclar-se perpetuamente nas turbinas da alienação capitalista, tornando-se mais precária a cada ciclo. Cada vez que é decalcada, a cópia se torna mais abjeta.
Daniel M. Delfino
19/10/2004