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“Hotel Ruanda”: Bem-vindo à barbárie


13 de dezembro de 2008

“HOTEL RUANDA”: BEM-VINDO À BARBÁRIE

(Comentário sobre o filme “Hotel Ruanda”)

Nome original: Hotel Rwanda

            Produção: Estados Unidos, Inglaterra (UK), Itália, África do Sul

            Ano: 204

            Idiomas: Inglês, Francês

            Diretor: Terry George

            Roteiro: Keir Pearson, Terry George

            Elenco: Don Cheadle, Desmond Dube, Xolani Mali, Hakeem Kae-Kazim, Tony Kgoroge, Rosie Motene, Nick Nolte,

Gênero: drama, história, thriller, guerra

Fonte: “The Internet Movie Database” – http://www.imdb.com/ 

            A década de 1990 entrou para a História como a década da “globalização”. De acordo com a versão “oficial”, a globalização foi o fenômeno por meio do qual as fronteiras nacionais se diluíram e formou-se uma só “aldeia global”. Esse processo foi desencadeado pela queda do “socialismo real” na URSS e no Leste Europeu, entre 1989-91. Isso supostamente teria posto um fim na secular disputa entre o socialismo e o capitalismo como modelos de organização social. Ainda de acordo com essa versão oficial, a disputa teria sido resolvida em favor do capitalismo, o que traria a conclusão necessária de que o sistema da “livre-empresa” e da “democracia” seria inquestionavelmente o melhor modelo de organização social disponível.

            Encerrada a grande disputa entre os modelos alternativos de organização social, o mundo teria chegado ao “Fim da História”, o tão esperado final feliz. Uma vez que todos os países, tanto os ex-“socialistas” como os do chamado Terceiro Mundo abrissem suas fronteiras para o mercado mundial, reformulassem suas legislações, privatizassem suas empresas, aderissem à “democracia”, etc.; o mundo caminharia inevitavelmente para uma era de paz e prosperidade inigualáveis.

            Entretanto, ao contrário do que diz o discurso oficial da globalização, o mundo passou a viver experiências que em nada corroboram as promessas de paz e prosperidade. A falsa antítese entre o sistema de capital pós-capitalista soviético e o capitalismo ocidental diluiu-se e expôs a inviabilidade do sistema do capital como tal, enquanto modo de controle da reprodução social baseado na alienação dos poderes de decisão econômicos e políticos dos indivíduos a esferas institucionais verticais e hierárquicas. A queda do socialismo real, ao deixar “sozinho” o capitalismo para dominar o mundo, deixou-o também a sós com a responsabilidade sobre as conseqüências bárbaras de sua inviabilidade material crônica estrutural.

A História continuou se movendo, como um cadáver insepulto que marcha pelo mundo e que se recusa a aceitar a própria morte tão festivamente decretada, exibindo a face horrível e incômoda de novos conflitos e tragédias que vieram importunamente perturbar o sonho idílico da celebrada globalização capitalista. Uma das mais espetaculares negações do mito da globalização deu-se na África. Lá, mais do que em qualquer outro continente, ficou provado que o capitalismo é que fracassou, deixando atrás de si um legado desastroso no qual vegetam incontáveis milhões de seres humanos, um monstruoso rastro de miséria, fome, doenças, ignorância e violência.

            O massacre da etnia tutsi pelos seus compatriotas hutus de Ruanda em 1994 proporcionou um gritante contraste contra o róseo pano de fundo do otimismo panglossiano patrocinado pelos mercados, ao colocar em evidência a plena vigência de uma barbárie globalizada. O massacre expõe a globalização como fase superior do imperialismo. Por falar em imperialismo, é conveniente destacar que a divisão da população africana nativa entre tutsis e hutus foi criada pelos próprios colonizadores belgas, como forma de levar a cabo o milenar divide et impera romano. É impossível diferenciar um hutu de um tutsi pela aparência. Do mesmo modo que não se podia diferenciar um judeu de um alemão “ariano”. A identificação era feita apenas pelos documentos que todos deveriam portar. <br><br>

Temos a oportunidade de observar essa e outras denúncias no filme “Hotel Ruanda”, um dos concorrentes do Oscar 2005 marginalizados pela mídia. Para ficarmos no plano da cinefilia, podemos apresentar “Hotel Ruanda” como uma espécie de “Lista de Schindler” africano. Como na “Lista”, trata-se de uma história real. O “Schindler” em questão seria um gerente de hotel que ajudou cerca de 1500 tutsis a escapar do genocídio, sendo ele próprio de etnia hutu.

            Paul Rusesabagina (em excelente interpretação do ótimo Don Cheadle) é o gerente do “Hotel des Milles Colines”, na cidade de Kigali. Esteticamente, a capital ruandense se parece com uma favela brasileira. A paisagem natural do restante do país, situado na faixa da savana africana, lembra o nosso nordeste. O hotel do título é parte de uma cadeia de estabelecimentos pertencentes a uma empresa belga. Ruanda foi objeto de colonização belga, de modo que a população integrada à “civilização” usava a língua francesa. Como o filme é falado em inglês, é preciso usar um curioso sotaque para assinalar a diferença, o que não prejudica as interpretações.

            Paul é casado com uma mulher tutsi, sendo responsável por uma família etnicamente mista. Sem querer acreditar no cataclismo que estaria por vir, ele acaba surpreendido pela súbita necessidade de refugiar mais de mil pessoas no hotel, correndo terrível risco pessoal para si em inúmeras oportunidades, a despeito de seus contatos anteriores com a elite hutu que freqüentava. Sobrevindo o genocídio, de pouco vale a condição de membro dessa elite, seja para entrar em acordo com esses líderes hutus, seja conseguir proteção dos brancos.

            Com a irrupção da crise, os responsáveis pela manutenção da ordem prontamente deliberam a remoção da população estrangeira. Os capacetes azuis da ONU protegem apenas os estrangeiros em Kigali, deixando a população local tutsi entregue à própria sorte. O comandante do exíguo contingente se vê obrigado a confessar com todas as letras que, do ponto de vista dos superiores a quem deve obediência, os negros são lixo humano, imprestáveis, descartáveis, o que se aplica inclusive ao próprio Paul.

Os brancos retiram-se todos, deixando o Milles Colines sob a exclusiva responsabilidade de Paul. Imediatamente, os funcionários param de trabalhar. O gerente do hotel só volta a ser obedecido como tal quando um fax da matriz na Bélgica diz aos empregados que ele agora é o patrão. Os funcionários negros estão acostumados a ver apenas um branco como patrão. Um exemplo da mentalidade colonizada que grassa na África (mas não apenas lá). Erigido em líder de seus compatriotas, caberá a Paul e ao heróico comandante da ONU tentar salvar os tutsis confinados ao hotel.

Nas ruas de Kigali, o terror corre solto. O pretexto imediato para o massacre foi o assassinato do presidente hutu, supostamente por rebeldes tutsis. Mas fica óbvio que foram os próprios senhores da guerra hutu que perpetraram o crime, com o interesse de desencadear o massacre dos tutsis. Diz-se que no período colonial, os tutsis eram privilegiados pelos belgas, originando o ódio dos hutus. Com a independência do país, a situação se inverteu. As duas etnias passaram a lutar entre si pela hegemonia do país. No período imediatamente anterior ao genocídio, os tutsis mantinham em certas regiões do país uma rebelião contra o governo hutu. Um acordo de paz com a guerrilha tutsi acabara de ser selado, desagradando o stablishment hutu, que decretou a morte do presidente “traidor”.

Mas o exército regular do país, majoritariamente hutu, não podia se comprometer diretamente no crime de genocídio. Logo, a tarefa de massacrar os tutsis coube a uma milícia chamada “Interahamwe” organizada em molde fascistas. “Hutu power”, roupas coloridas e facões na mão. Ou seja, miseráveis sem perspectivas usados para massacrar outros miseráveis por meio da instrumentalização política do ódio tribal.

A guerra civil transformada em genocídio mostra a diferença entre o modo “civilizado” e o tribal de se fazer guerra. O modo ocidental de fazer guerra é determinado pelos imperativos econômicos do capitalismo. As guerras vão e vêm, trazendo consigo destruição e morte, mas os acordos de paz entre os Estados são fechados em seguida, encerrando o conflito. Entre as tribos, a guerra se prolonga de maneira interminável, alimentada por um ciclo de vinganças e precipitada em uma espiral de sangue, ódios e rivalidades que nunca se extinguem.

Em função do caráter de conflito intertribal do genocídio ruandense não se pode cair na idéia de que algum tipo de “essência” determina a maldade dos povos. Os ruandeses agiram de maneira bárbara não porque são negros, mas porque são prisioneiros de uma exasperante miséria material ideologicamente instrumentalizada. A mesma maldade que os negros hutus estavam fazendo aos seus irmãos tutsis fora feita a não mais de 60 anos pelos civilizados alemães “arianos” de Hitler. Como os nazistas em relação aos judeus, os hutus chamavam os tutsis de baratas, negando-lhes o estatuto de seres humanos. Uma rádio propagava a ideologia fascista e comandava a milícia Interahamwe, dando dicas de onde encontrar “baratas” a serem mortas.

Quando falamos em barbárie para tratar do genocídio de Ruanda, não fazemos uso de um mero exagero retórico. Na falta de recursos industriais de assassínio como as impessoais câmaras de gás de que dispunham os metódicos nazistas, os hutus chacinaram seus compatriotas tutsis a golpes de facão. Homens, mulheres (estupradas em massa), idosos, crianças, etc, retalhados à mão. Um milhão de pessoas mortas a golpes de facão constituem uma cifra por demais eloqüente para caracterizar a barbárie. A mortandade foi desencadeada no melhor estilo das hordas medievais, mas com uma importante diferença de qualidade histórica: os facões com os quais os tutsis foram chacinados são importados da China por U$ 0,10 e revendidos a U$ 0,50 a unidade, propiciando um ganho espetacular de 400% e oferecendo simultaneamente um formidável exemplo das lucrativas oportunidades do “livre-mercado” e da “globalização”.

            Enquanto isso, na Sala de Justiça, o que faziam os super-heróis do mundo globalizado? Em vão os hóspedes do hotel-barbárie esperaram por uma intervenção salvadora dos países do “ocidente civilizado”, que jamais veio.

Na verdade, nem os colonizadores brancos, se voltassem, nem os tutsis, se vencessem, provavelmente seriam muito melhores ou menos bárbaros, dado o contexto de miséria e abandono do continente em que se situa o país. Pode-se ter a impressão de que a solução dos problemas de Ruanda seria uma intervenção de tropas dos países estrangeiros, como França ou Estados Unidos. Se isso é parcialmente verdadeiro no caso particularmente emergencial de um genocídio em curso, a generalização precipitada desse discurso para o conjunto dos países muito pobres precisa ser observada com muita cautela, em função das possíveis ações que tal discurso sub-repticiamente legitima. Já foi de fato sugerido por mais de um gaiato que a solução para países miseráveis e devastados como Ruanda seria uma “recolonização humanitária” por parte dos países ricos.

Provavelmente, podemos imaginar que isso se daria sob a égide de multinacionais sequiosas por oportunidades de lucro e protegidas por guardas mercenários, tão ou mais hostis à população local quanto as milícias tribais. Somos autorizados a levantar tal suposição em face do exemplo concreto da recente cúpula do G8 na Escócia (eclipsada pelos atentados em Londres) que propôs o perdão das dívidas dos países miseráveis, mas apenas as dívidas públicas, não aquelas contraídas junto a credores privados corporativos; e somente com a condição da aceitação de regras de liberalização econômica. Ou seja, mais neoliberalismo. A cirurgia será fatalmente bem-sucedida, a despeito de que o paciente esteja morto na mesa de operações.

Voltemos a 1994. Naquele preciso momento, os Estados Unidos estavam escaldados com o fiasco da aventura na Somália e mais preocupados com a guerra na Bósnia. A hierarquia de prioridades determinava outro tipo de atuação. Afinal, a ex-Iugoslávia abrigava uma população de raça branca e uma economia relativamente industrializada, numa localização geoestratégica importante. Já os tutsis são apenas… tutsis. Além disso, objetivamente, não há polícia global que baste para dar conta de tanta devastação.

            Em face da não-intervenção, alguma coisa tem que ser dita para apaziguar a consciência culpada dos espectadores no ocidente. Numa entrevista transmitida via rádio, uma autoridade estadunidense chega ao cúmulo de definir eufemisticamente o acontecimento em curso em Ruanda como “atos de genocídio”, ao invés de usar categoricamente a palavra “genocídio”. Quando se admita que está acontecendo um genocídio em qualquer parte do globo, é preciso intervir. Já quando se diz “atos de genocídio”, tudo se torna vago. Pode ser que seja um genocídio, pode ser que não seja. Tenta-se assim forjar um ignominioso álibi, meramente retórico, para justificar a imperdoável omissão da não-intervenção. Esse tipo de hipocrisia mostra a que ponto pode chegar a baixeza do Ocidente quando não há interesses materiais em jogo. As grandes potências candidatam-se ao posto de guardiãs da ordem, mas não assumem o ônus dessa condição quando não lhes interessa.

Quem não tem cão caça com gato. Paul Rusesabagina usa seus conhecimentos de diplomacia para amedrontar o general hutu e tentar livrar seus refugiados. Os hóspedes do Hotel des Milles Colines só estão precariamente protegidos porque o local é tratado como território belga, cuja violação está sujeita a provocar a represália do exército francês. O medo de possíveis punições fazia com que os generais do exército regular hutu mantivessem os Interahamwe à distância.

            Tal situação instável do Milles Colines não podia ser mantida indefinidamente. Muitos dos hóspedes eram tutsis de outras regiões de Ruanda que tinham pessoas conhecidas no exterior para as quais podiam pedir ajuda. Graças a essas conexões internacionais, esse pequeno grupo de hóspedes pôde se salvar, assim como os poucos refugiados que tiveram a sorte de achar esconderijo no hotel. Ou seja, salvaram-se alguns tutsis que eram ricos, e mais alguns poucos que tiveram a sorte de estar com eles.

A remoção da população do hotel para fora de Kigali foi afinal conseguida. Mas para isso, seria preciso deixar as relativamente seguras “fronteiras” do território do hotel, aventurando-se na rota dominada pelos Interahamwe. Estamos aqui em plena “Terra dos mortos”. Os zumbis estão por toda parte, sequiosos de sangue humano. Nesse momento, o filme também funciona como uma enervante aventura hollywoodiana padrão, retratando o desespero da luta nua e crua pela sobrevivência.

            Entre os hóspedes do hotel, retirados na primeira leva em que os brancos haviam escapado, estava um cinegrafista de uma rede de TV estrangeira, que captou algumas das poucas cenas do genocídio que chegaram ao ocidente. Para decepção de Paul, o cinegrafista antecipa acertadamente que os ocidentais vão ver o massacre e continuar o seu jantar, impassíveis. Ao invés de terapia de choque as cenas de violência servem como vacina para esterilizar a sensibilidade humana da audiência. A advertência do cinegrafista ecoa também na consciência dos espectadores do filme.

Daniel M. Delfino

13/08/2005