Cidade de Deus e a miséria dos homens
13 de dezembro de 2008
CIDADE DE DEUS E A MISÉRIA DOS HOMENS
(Comentário sobre o filme “Cidade de Deus”)
Nome original: Cidade de Deus
Produção: Brasil, França, Estados Unidos
Ano: 2002
Idiomas: Português
Diretor: Fernando Meirelles, Kátia Lund
Roteiro: Paulo Lins, Bráulio Mantovani
Elenco: Alexandre Rodrigues, Leandro Firmino, Phellipe Haagensen, Douglas Silva, Jonathan Haagensen, Matheus Nachtergaele, Seu Jorge, Jefechander Firmino
Gênero: crime, drama
Fonte: “The Internet Movie Database” – http://www.imdb.com/
“Cidade de Deus” é um caso raro de filme brasileiro que não causa discussão por causa de seus sucesso de bilheteria (como “Xuxa e os duendes”) ou por causa de suas pretensões ao Oscar (como “Abril despedaçado”). Ele provoca discussão por causa de seu conteúdo, o que já é um sinal positivo na comparação com os supracitados.
Trata-se de um filme de conteúdo forte, contundente. O filme traz a barbárie cotidiana das favelas e periferias para dentro dos confortáveis multiplexes dos shoppings freqüentados pela burguesia. E vem embalado por uma campanha promocional que quer sim fazer dele um sucesso de bilheteria e também um candidato ao Oscar.
Há quem considere ilegítima essa tentativa de abordar a violência como matéria-prima do entretenimento. Há nessa tentativa, segundo dizem, o perigo de estetizar a violência e de fazer apologia do crime e das drogas. Quem vê esse perigo está na verdade dizendo que a barbárie pode existir lá nas favelas, mas não pode ser objeto de um filme. E que quem faz um filme como esse está advogando a causa dos bandidos, traficantes, seqüestradores, etc..
A intenção do filme não é essa. Mas essa percepção extremamente conservadora não está preparada para perceber suas qualidades reais. Essa sensibilidade cinematográfica educada por Hollywood só consegue enxergar mocinhos e bandidos. O bem contra o mal. A platéia não quer ver seres humanos reais no cinema. É desagradável identificar-se a tais criaturas.
Para não ter o trabalho de digerir essa sensação, é mais cômodo julgar a priori os moradores da favela como bandidos, reproduzindo a lógica da exclusão, acreditar que o filme faz a defesa do crime, desejar que se jogue uma bomba atômica na “Cidade de Deus” e condenar os realizadores do filme por expor nossa juventude à sedução da violência e das drogas. Na mesma linha de quem quer censurar a música rap.
Algo que incomoda sobremaneira a sensibilidade burguesa é a ousadia dos realizadores de tratar como objeto esteticamente válido a odisséia do tráfico de drogas e da guerra de quadrilhas no morro. Tratar como objeto esteticamente válido significa trabalhar com o melhor da técnica cinematográfica esse objeto. E não há duvida de que isso foi feito em Cidade de Deus.
Como realização cinematográfica, o filme é primoroso. A técnica narrativa, com linhas temporais sobrepostas, a agilidade, o ritmo videoclípico, a narração em off, a reconstituição de época, a música, a atuação ultra-naturalista do elenco (com destaque para os bandidos Zé Pequeno e Cenoura, este interpretado pelo sempre ótimo Mateus Nachtergaele); são vários os atrativos que fazem de “Cidade de Deus” um concorrente à altura dos melhores filmes sobre o mundo do crime, como os de Martin Scorcese.
Para a sensibilidade conservadora, é perigoso tornar atraente, agradável, divertida uma história sobre criminosos. Especialmente quando são negros favelados, à semelhança dos milhares que ameaçam as vidas de todos os espectadores no semáforo mais próximo. Mas ninguém considera perigoso um filme como “Os Bons Companheiros”, de Scorcese, porque nesse caso, os criminosos são brancos, charmosos, atraentes, sedutores, mesmo que igualmente violentos. O crime que viceja na abundância americana é aceitável; aquele que grassa na miséria carioca é repulsivo. A violência é inerente à sociedade capitalista, mas como nós somos os perdedores do jogo, aquela que nos aflige é motivo de vergonha, não de tratamento estético.
Deixando de lado o preconceito estético-moralista, é possível ver em “Cidade de Deus” personagens criarem vida diretamente das páginas do romance homônimo de Paulo Lins. Personagens que se comportam como pessoas reais, que riem, choram, desejam, odeiam, vivem, imersos nos valores que lhe são próprios. Personagens que apresentam perversões, taras, defeitos, maldade, mas o fazem como pessoas reais, não como serial-killers sobrenaturais. Na caracterização de um bandido como Zé Pequeno, “Cidade de Deus” está anos-luz à frente de qualquer filme policial enlatado estadunidense. Ali tem-se um caso típico de frustração de uma pessoa que não consegue ter prazer a não ser pela humilhação e destruição do outro.
A tentação de condená-los todos com base nos valores próprios da realidade burguesa civilizada deságua em frustração, pois do inferno que é aquela vida é inevitável que surjam demônios. Do lado oposto, surge a tentação de inocentá-los todos, levando em consideração a realidade miserável em que vivem. Mas então vem à lembrança os assaltos que cada um já sofreu, o medo dos seqüestros-relâmpago, o ódio dos trombadinhas que nos ameaçam a cada esquina.
Sentimentos assim contraditórios atravessam a alma do espectador conforme a saga da favela se desenvolve desde os anos 60 até uma época próxima de nós, com nossos Beira-Mar e Elias Malucos da vida. A reconstituição histórico-sociológica é precisa. Os criminosos “românticos”, malandros e sedutores da década de 60 são substituídos por assassinos violentos nos anos 70, que se apropriam do negócio das drogas, formando quadrilhas, que nos anos 80 entram em guerra, com o beneplácito da polícia, que lhes fornece armas e recebe suborno, indiferente ao inferno cotidiano da população favelada.
Uma realidade complexa, produto do apartheid social brasileiro, com sua perversa distribuição de renda, completada pela negligência total do Estado para com a população necessitada, entregue à sanha das quadrilhas, fardadas ou não. Poucas tentativas de abordar esse câncer social foram tão bem-sucedidas como o livro “Cidade de Deus”, de Paulo Lins, no qual o filme se baseia. A literatura, diria Marx, muitas vezes substitui com muito maior êxito a vã sociologia. E de sociólogos vãos estamos fartos…
Mas livro é livro e filme é filme. Livro é feito para a elite, mesmo que seja uma obra sobre os miseráveis. Como livro, é sempre bem-vindo, afinal aqueles que estão ali retratados nunca irão ler a si mesmos; esse prazer continuará restrito aos que podem pagar. Filme é feito para as massas, alcançando inclusive alguns dos miseráveis. E nesse caso, há o risco deles verem a si mesmos em cena, o que é extremamente positivo para sua auto-estima, mas negativo para o status quo simbólico-ideológico, outra razão pela qual o filme é objeto de repúdio.
Por falar em status quo simbólico, vem do meio cinematográfico, esse ninho de cobras repleto de vaidades mesquinhas, egos monumentais e ciúmes doentios, uma outra acusação aos realizadores: o de estarem lucrando com a estetização da miséria. Constitui falta de ética se beneficiar de tal tema. De um lado, o filme é acusado por parcela do público e da crítica de fazer apologia do crime; de outro, é acusado de ser superficial e leviano no tratamento de tema tão pesado. Esse tema comportaria talvez um sisudo documentário, nunca um vibrante filme de ação.
Entre mortos e feridos nesse tiroteio, esperamos que o filme seja visto pelo maior número de pessoas, não só para quebrar recordes de bilheteria, coisa que sem dúvida merece, mas para provocar debate; e esperamos que obtenha a merecida repercussão internacional, não só para nos dar o tão sonhado Oscar (?!!), coisa que também merece, mas para mostrar que no Brasil há gente com armas na mão, mas também há gente com idéias na cabeça para fazer bons filmes.
Daniel M. Delfino
28/09/2002