“A vingança dos Sith”: Fábula e História
13 de dezembro de 2008
“A VINGANÇA DOS SITH”: FÁBULA E HISTÓRIA
(Comentário sobre o filme “A Vingança dos Sith”)
Nome original: Star Wars: Episode III – Revenge of the Sith
Produção: Estados Unidos
Ano: 2005
Idiomas: Inglês
Diretor: George Lucas
Roteiro: George Lucas
Elenco: Ewan McGregor, Natalie Portman, Hayden Christensen, Ian McDiarmid, Samuel L. Jackson, Jimmy Smits, Franz Oz, Anthony Daniels, Christopher Lee, Keisha Castle-Hughes, Silas Carson, Jay Laga’aia, Bruce Spence, Wayne Pygram, Temuera Morrison
Gênero: ação, aventura, fantasia, ficção científica
Fonte: “The Internet Movie Database” – http://www.imdb.com/
Dizer que os filmes da série “Guerra nas Estrelas” se tornaram pilares fundamentais da cultura popular mundial contemporânea não traz nenhuma novidade. Estamos aqui diante de uma rara convergência entre as expectativas do público de um lado, a ousadia de um diretor do outro e a potência da máquina promocional capitalista no meio. Essa convergência não seria tão eficaz, porém, se estivéssemos falando de um simples “blockbuster” hollywoodiano totalmente vazio de conteúdo.
Quando, aos primeiros acordes da imortal trilha sonora de John Williams, uma platéia de cinema explode como uma ensandecida torcida de futebol, numa pré-estréia com direito a exibições de esgrima com sabre-laser por fãs devidamente caracterizados; alguma coisa especial está acontecendo. Sempre que os letreiros luminosos nos transportam para “muito tempo atrás, numa galáxia muito distante”, algo mais surge no ar além de simples fumaça publicitária. Mais do que uma simples coincidência exterior nos ritmos e movimentos erráticos dos produtores e consumidores da indústria cultural, a criação de George Lucas expressa, sob uma forma dramática eficiente, uma série de questões humanas inegavelmente relevantes.
Para entender a virtude de “Guerra nas Estrelas” (a série como um todo) é preciso observar as diferenças entre o gênero da fábula e o da ficção científica. A ficção científica trata de especulações sobre o futuro da humanidade às voltas com os desafios e oportunidades colocados pelo desenvolvimento da ciência e pela incorporação da tecnologia à sociedade. As fábulas, por sua vez, trazem em forma fantástica uma figuração dramática de arquétipos morais humanos, tendendo a uma representatividade universal.
“Guerra nas Estrelas”, cuja história se passa “há muito tempo, numa galáxia muito distante”, apesar de seu apelo visual tecnológico, tende mais para o segundo gênero do que para o primeiro. A série não trata dos humanos especificamente, porque não se refere à Terra, ao seu passado ou futuro. Trata da humanidade sim, pois mesmo as criaturas das raças alienígenas mais bizarras e os próprios andróides se apresentam com características propriamente humanas, como a capacidade de exercitar julgamentos e decisões morais; mas nesse nível de fantasia só se pode falar de “Humanidade” muito genericamente.
As fábulas como “Guerra nas Estrelas” têm sempre a intenção de passar ensinamentos morais. George Lucas nunca escondeu seu objetivo de, à maneira dos narradores clássicos, transmitir uma mensagem construtiva através de seus filmes. Nessa perspectiva, o bem deve sempre vencer o mal. Os elementos típicos das fábulas estão mais evidentes no primeiro episódio a ser lançado (o IV da cronologia da série), o “Guerra nas Estrelas” propriamente dito (posteriormente rebatizado como “Uma Nova Esperança”). Ali temos um rol de personagens típicos de inspiração caracteristicamente medieval: um herói “branco” (Luke Skywalker), um cavaleiro negro (Darth Vader), um velho mestre (Obi wan Kenobi), um castelo (Estrela da Morte) onde uma princesa (Leia) é resgatada; além de alguns adendos (Han Solo, o melhor) e alívios cômicos (R2D2 e C3PO).
À medida que a série se amplia, alcançando a estrutura clássica de uma trilogia, peculiar às grandes tragédias gregas, tomamos conhecimento de que o verdadeiro herói não é Luke, mas Darth Vader, e de que a história em questão trata de sua redenção de volta do “lado negro da Força”. Essa ampliação do eixo narrativo adicionou algumas complicações para o esquema simplista da fábula (bem x mal), mas trouxe consigo a possibilidade de exploração de novos personagens e impressionantes cenários. Pegando carona nessa complicação narrativa, surge uma nova trilogia, contando a história de como, em primeiro lugar, Anakin Skywalker se tornou Darth Vader. Com quase vinte anos de lapso, a nova trilogia se completa agora com o lançamento do “Episódio III – A Vingança dos Sith”.
Diante do volume da expectativa criada a cada novo lançamento dessa próspera franquia, é fácil esquecer que estamos diante de uma narrativa criada para se encaixar como prévia de uma história já conhecida, um representante do tipo de produção para o qual a imprensa especializada cunhou o bizarro neologismo “prequel”. A função que “A Vingança dos Sith” desempenha na história limita suas possibilidades. O “Episódio III” não é um grande filme em si, mas um eficiente “prequel” para o “Episódio IV”. Dele resulta uma sensação final quase de anticlímax, um misto de alegria e insatisfação, pois mesmo se situando “meio” da história, tomamos consciência, ao final da exibição de que se trata da despedida da série.
Ao fim da sessão, o espectador experimenta a mesma sensação de vazio de quando se “despediu” das trilogias “Matrix” e “O Senhor dos Anéis”: não haverá mais filmes desse universo. Menos mal que George Lucas tenha cuidadosamente ajustado o design visual de naves, robôs e objetos ao longo do “Episódio III”, da exuberância dos mundos ainda livres da República desta primeira trilogia para o aspecto “sucatão” dos maltrapilhos rebeldes do “Episódio IV”, amenizando o impacto da transição de um filme para o outro, e atiçando o apetite consumista dos fanáticos com a perspectiva das inevitávei$ caixa$ de DVD$ na$ quai$ poderemo$ ver toda a $érie em uma $ó $eqüência.
Não é apenas o visual que muda de uma trilogia para outra, mas o conteúdo ideológico, e com ele também a qualidade cinematográfica. Na primeira trilogia, tínhamos um confronto explícito e transparente entre a facção do “bem” e a do “mal”, um confronto imediatamente inteligível por qualquer platéia em qualquer época. Na segunda, partimos de confusas intrigas políticas envolvendo elementos que somente os fãs da série conhecem. Isso explica a diferença entre o impacto revolucionário da primeira trilogia, com seu apelo universal, e o acolhimento morno da segunda (e não será apenas por culpa de Jar Jar Binks, ser rejeitado pela comunidade de fãs com um grau de unanimidade inigualado na História).
Nesse sentido, a nova trilogia está bem longe de ser uma atualização artística à altura do legado da primeira, ou mesmo dos “concorrentes” contemporâneos “Matrix” e “O Senhor dos Anéis”. Na verdade, apenas o “Episódio III” se salva na nova série e impede que a segunda trilogia se reduza a um mero caça-níqueis, como um reles videogame.
Como íamos dizendo, a distância histórica entre as duas séries trouxe incrementos importantes à sua substância ideológica, de um modo tal que ambas podem ser lidas isoladamente à luz de sua conjuntura histórica particular ou combinadas harmonicamente numa única seqüência, e ainda assim fazer sentido. Dizíamos que George Lucas tem sempre em mente a intenção pedagógica de passar mensagens positivas com seus filmes. Na forma como a fábula espacial do diretor equaciona o confronto “bem x mal”, encontramos os reflexos das situações histórico-políticas particulares.
Na primeira trilogia, situada entre os anos de 1977 e 1983, vivíamos os estertores finais da “Guerra Fria”. Naquele contexto, tendia-se a ver os Estados Unidos representados na “Aliança Rebelde” (libertários, multiculturais, multiétnicos, audazes, compassivos, solidários, alegres, etc.); e a URSS no “Império” (centralizado, burocrático, monolítico, unidimensional, mecânico e cruel). Se no caso da URSS a caracterização pode ser considerada verdadeira, quanto aos E.U.A. ela é objetivamente falsa. Mas, falsa ou não, essa é a leitura que a indústria cultural estadunidense faz da auto-imagem do país.
Naquele momento, pois, a primeira trilogia representava a expressão “inocente” e alienada do auto-confiante bom-mocismo estadunidense. Para ser conseqüente com suas intenções alegórico-figurativas de exprimir um confronto “bem x mal”, ao criar a nova trilogia, George Lucas inverteu os sinais ideológicos. No momento atual, a escalada militarista do imperialismo estadunidense sob Bush espelha a transformação da “República Galáctica” em “Império”. Ou seja, o “Império do mal”, que era a URSS, hoje são os Estados Unidos. Em termos de cinema de entretenimento, uma atualização desse porte representa um verdadeiro “salto na velocidade da luz”.
O modelo formal adotado por George Lucas para exprimir essa transformação é o da passagem da República Romana para Império. Na República Romana havia a instituição da ditadura, pela qual o Senado entregava provisoriamente o poder absoluto a um dos cônsules, tornado ditador, para, numa situação de crise, tomar decisões rápidas e inquestionáveis e salvar a pátria. Nos seus primórdios a instituição “funcionava” e os ditadores, ao fim do mandato de emergência, devolviam seus poderes ao Senado. Esse procedimento se constituiu em exemplo clássico do vigor das leis e do civismo da política romana em sua era “democrática”.
O crescimento territorial explosivo da República fez crescer proporcionalmente os interesses materiais e as disputas dentro da aristocracia patrícia-senatorial. Foi nesse cenário que emergiram generais-políticos, como Mário, Pompeu e César, que acumularam poderes sucessivamente até que surgisse o Império, sob Augusto, no século I d.C.. Foi desse modelo que se extraiu a fórmula para a transformação do Chanceler Palpatine em Imperador. Transformação que guarda óbvias relações com a doutrina salvacionista de “guerra preventiva” contra o terror de Bush. Palpatine forjou seus Dookan e Grievous, apenas para ter a guerra que lhe daria o poder, assim como o clã Bush forjou Saddam e Osama. “A liberdade se esvai debaixo de estrondosos aplausos”, lamentou a senadora Amidala. Ao escrever essa fala, talvez George Lucas tivesse em mente o discurso de posse lido por Bush/Palpatine, discurso que menciona orwellianamente a palavra “liberdade” mais de vinte vezes. Estaríamos então diante de um filme inequivocamente anti-Bush?
Provavelmente não. Convém não exagerar ao ver possíveis intenções do cinema pop de intervir no plano dos acontecimentos materialmente decisivos. Se nem mesmo o explicitamente panfletário “Fahrenheit 11/09” teve resultado como instrumento de intervenção política-eleitoral, que dizer de uma diversão para crianças? O que é certo é que aquele “auto-confiante bom-mocismo estadunidense” não é mais tão “inocente e alienado” depois do choque que os acontecimentos de 11/09/2001 trouxeram para a consciência coletiva daquele país. O povo estadunidense tem se questionado sobre o papel que deseja exercer no mundo, de República democrática ou de Império tirânico, e “A Vingança dos Sith” é parte desse questionamento.
George Lucas parece estar criticando Bush, mas ainda assim o que temos em mãos é apenas uma fábula, cujo conteúdo guarda algo de inevitavelmente atemporal. O tempo passa, levando consigo a História, mas a fábula fica. A narrativa de “Guerra nas Estrelas” guarda lições que transcendem o momento conjuntural particular no qual a trama foi elaborada, podendo ser aplicada a outras contingências históricas. A transformação de Anakin em Darth Vader pode ser lida como um exemplo negativo do que pode acontecer, genericamente, quando se deseja levar adiante a ferro e fogo as “boas intenções” de salvar o mundo. Em Anakin/Darth Vader, é o desejo de fazer o bem leva ao mal.
Anakin não nasce mau, mas cedeu às suas paixões idealistas. Ele deseja trazer a ordem e a paz a um mundo em que prevalecem a confusão, a frouxidão, o formalismo da burocracia, na qual viceja a corrupção. Anakin quer a paz e a ordem, mas não concorda com os métodos da “democracia” da República. Tornando-se Darth Vader, ele personifica a autoridade implacável capaz de impor a ordem. Assim, ele pode se considerar ainda fiel aos princípios que defendia. Do idealismo nasce o autoritarismo. Se essa relação for automática, estaremos condenados à imobilidade, pois qualquer idéia, por mais generosa que seja, pode suscitar um Darth Vader (ou um Hitler, um Stalin, um Bush, etc.) para defendê-la.
Talvez com isso George Lucas esteja considerando aceitável despertar um pouco do “Darth Vader que existe em cada um de nós”, mostrando que uma certa queda no “lado negro” é necessária para que se restabeleça o “equilíbrio da força”. Um pouco de Império é necessário, para estar sintonizado com o brutal espírito do tempo atual. É necessário também para satisfazer o apetite dos fãs, que fizeram do cavaleiro negro seu ídolo maior dentro da série. E com isso, o filme estaria fazendo apologia da era Bush, não crítica.
Se aquela relação não for automática, há um erro evidente no raciocínio de Anakin. Seria o erro de se imaginar possível atingir o bem por meio do mal. O filme não chega até essa conclusão. Seria esperar demais de uma fábula pop. Falta-lhe o fôlego para tanto, pois ainda há outra ordem de questões das quais é preciso dar conta. No meio do caminho, perde-se a resposta para o dilema. Mais importante do que salvar a República, para Anakin o que importa é sua relação com Amidala. É o seu amor possessivo que o leva a transigir com os princípios aprendidos na ordem Jedi. Passa a ser aceitável aliar-se a quem quer que seja em nome desse amor. Inclusive ao lado negro. Depois de estar interiormente conquistado por uma paixão cega, é fácil encontrar exteriormente sofismas justificadores para acreditar que os Jedis traíram a República e o “lado negro” na verdade é o único capaz de reparar a situação.
O nível filosoficamente decisivo da fábula de George Lucas é o da moralidade pessoal do herói, não o dos ideais políticos. No campo da moralidade pessoal, o mestre Yoda ensina, num espírito estóico e budista, que se deve aceitar a inevitabilidade das perdas. Aí estaria o segredo da austera moral Jedi, a renúncia ao desejo, o desapego a coisas e pessoas. Aceitar a perda de Amidala, porém, seria muito difícil para Anakin, que passa a buscar outra solução, na promessa do lado negro de superar a morte.
E no entanto, quem supera a morte são os mestres Jedis, como anuncia Yoda a Obi wan já no final. E assim o budismo junta-se à metafísica platônica-cristã da sobrevivência da alma após a morte, num eclético amálgama. A renúncia e o desapego budista/oriental são perseguidos em “Guerra nas Estrelas” com um autoritário patrulhamento de tipo cristão/puritano. Com que método se poderá alcançar a renúncia prescrita por Yoda? O rígido celibato dos Jedi? Isso está de acordo com o budismo ou com o puritanismo (e George Lucas estaria de acordo com a cruzada abstencionista obscurantista anti-sexo em voga nos EUA)? Esse processo de amálgama resulta, na pessoa de Anakin, evidentemente disfuncional e por isso mesmo é plausível sua passagem para o lado negro.
Levada às últimas conseqüências, a moral de “Guerra nas Estrelas” conduz ao moralismo. E é o moralismo que, com sua artificialidade implacável, determina a passagem do idealismo para o autoritarismo. Com isso fecha-se o circuito ideológico que permite passar da democracia para a tirania. E o círculo que nos traz de volta ao início da história. Voltamos ao começo, quando é necessário buscar “Uma Nova Esperança”.
Que a Força esteja conosco!
Daniel M. Delfino
20/05/2005